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3.1 CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO

3.1.1 Biologia do Conhecer

Há pouco mais de meio século, surgiram as primeiras teorias localizadas no que chamamos de ciências cognitivas, que envolvem diversas áreas do conhecimento a exemplo da psicologia, da sociologia, da biologia e da filosofia. Porventura, um dos pensadores que contribuiu significativamente para a difusão das ciências cognitivas tenha sido Humberto Maturana, que juntamente com Francisco Varela, nos anos de 1970, trouxe a teoria da

Autopoiesis, e a Biologia do Conhecer, nos anos de 1980.

O conceito de autopoiesis – poiesis de si próprio, é o poder autocriativo, inspirador, imaginativo, de autocomposição rítmica, harmônica e recursiva... é o devir38, chegar a tornar-se, começar a ser o que não era antes (MATURANA; VARELA, 2008). Este conceito é apresentado inicialmente, em 1973, no livro De máquinas y seres vivo: autopoiesis: la

organización de lo vivo. Os autores centram-se na noção epistemológica da organização da

vida (autopoiesis) e caracterização dos sistemas vivos como máquinas autopoiéticas, que estão sempre na produção de si mesmos. Para os autores, os seres vivos são tal como redemoinhos de produção de autocomponentes, que ao retirar ou receber substâncias do meio em que vivem, participam transitoriamente da “initerrupta renovação de componentes que determinam seu contínio revolver produtivo” (MATURANA, 2002, p. 197). Essa obra, é, sobretudo, fruto de inquetação de Humberto Maturana ao longo de sua experiência como pesquisador e docente na Universidad de Chile desde 1960. Nela, os autores propõem uma nova perspectiva da compreensão dos seres vivos, sob o viés da fenomenologia biológica em sua totalidade, rompendo com alguns mitos da biologia, e envolvendo ainda outras áreas

38 Fluxo permanente, movimento ininterrupto, atuante como uma lei geral do universo, que dissolve, cria e

de conhecimento, como a filosofia e a sociologia. Eles formalizaram, através de um quadro teórico, que a característica essencial dos sistemas vivos está na propriedade de produção contínua de seus próprios componentes, mantendo sua organização, propriedade esta designada pelos autores de Autopoiesis (MATURANA; VARELA, 2005, 2008).

Para eles, a autopoiesis representa aos seres vivos condição de contínua e recursiva produção de si mesmos, através da contínua produção e renovação de seus componentes, movidos pela adaptação, representação, variação e congruência estrutural que os caracteriza, e que se perde com o fenômeno da morte. Ou seja, como mostra a Figura 3.1, a autopoiesis se constitui envolvida no fluxo contínuo e cíclico de congruência estrutural e adaptação do indivíduo com o ambiente, movido pelas variações de ambos e novas representações do indivíduo sobre si mesmo e sobre o ambiente, na condição de observador e observado. É, então, uma crítica à abordagem mecanicista da realidade biológica, na qual os sistemas vivos são explicados em termos das relações de produção e não das propriedades de seus componentes (MATURANA; VARELA, 2005, 2008).

Figura 3.1 – Devir da Autopoiesis

Em uma organização autopoiética, um organismo permanece vivo em sua estrutura, independente de quaisquer mudanças nele ocorridas, enquanto for possível conservar essa organização – congruência estrutural. Ou seja, como afirma Maturana (2002, p. 198), “o vivo de um ser vivo está determinado nele, e não fora dele”.

Em A árvore do conhecimento: as bases biológicas do conhecimento humano, de 1984, Maturana e Varela mostram como os seres vivos conhecem o mundo, a partir da interação deles com o mundo. A vida é apresentada como um processo de conhecimento,

Autopoiesis Congruên- cia estrutural Represen -tação Variação Adapta- ção

contínuo e cíclico, a partir de constatações da própria vida dos seres vivos e de como estes conhecem o mundo. Surge aí a teoria da Biologia do Conhecer ou Biologia da Cognição. Nessa obra, são apresentados seus principais conceitos (humano, conhecimento, domínio,

autopoiesis, observador, objetividade etc.), de forma clara e precisa, possibilitando

compreensão ampla de teoria. Segundo Humberto Mariotti, no prefácio dessa obra, eles sustentam que “o conhecimento não se limita ao processamento de informações oriundas de um mundo anterior à experiência do observador, o que se apropria deles para fragmentá-lo e explorá-lo”. (MATURANA; VARELA, 2005, p. 14). Para eles, a percepção da realidade sempre está associada ao modo como o observador a vivencia, e que portanto, não se pode objetivar a verdade, sem relativizá-la e colocá-la em suspensão.

Para Maturana e Varela (2005), toda ação de conhecer é um fazer, e todo fazer representa a ação de conhecer. Logo, é possível concluir que o cognoscer envolve necessariamente um fazer, entrelaçado ao processo natural do viver, diferente da abordagem trazida pela psicologia cognitiva, que restringe a cognição a percepções sensoriais e memórias.

Maturana (2002, p. 291) afirma que por equívoco, “chamamos de aprendizagem àquela parte da ontogenia de um organismo que nós, enquanto observadores, vemos ocorrendo como se o organismo estivesse se adaptando a alguma circunstância nova e incomum do ambiente”39. O humano, com um ser vivo, é estruturalmente organizado, e, portanto, não se se altera por uma simples adaptação progressiva ao meio; é influenciado por um fenômeno denominado de deriva natural,

[...] sob contínua seleção filogenética, na qual não há progresso nem otimização do uso do ambiente. O que há é apenas a conservação da adaptação e da autopoiese, num processo em que o organismo e ambiente permanecem num contínuo acoplamento estrutural. (MATURANA; VARELA, 2005, p. 130).

Ou seja, a deriva natural é um produto da invariância da autopoiesis e da adaptação, intrínseco ao organismo, na convivência deste com o meio e do meio com ele, como resultado de suas interações recorrentes, recursivas, em contínuo acoplamento estrutural, a que os autores chamam de ‘coordenações consensuais de coordenações consensuais de ações’ (MATURANA; VARELA, 2005, 2008) (cf. Figura 3.1).

Não há dentro nem fora, e não há espaço operacional como tal para fazer uma representação do que um observador vê como externo a ele. Então, o que um

39 Ontogenia é a história de mudanças estruturais de uma unidade, sem que esta perca a sua organização. Essa

contínua modificação estrutural ocorre na unidade a cada momento, ou como uma alteração desencadeada por interações provenientes do meio onde ela se encontra ou como resultado de sua dinâmica interna. (MATURANA; VARELA, 2005, p. 86).

observador chama de aprendizagem, quando observa a história de interações de um organismo, é um simples processo de epigênese. (MATURANA, p. 2002, p. 291).

Logo, a cognição está entrelaçada ao processo natural do viver. “Conhecemos porque somos seres vivos e isso é parte dessa condição. Conhecer é condição de vida na manutenção da interação ou acoplamentos integrativos com os outros indivíduos e com o meio” (MATURANA, 2002, p. 8).

Ao usar a palavra cognição na vida cotidiana em nossas coordenações de ações e relações interpessoais quando respondemos perguntas no domínio do conhecer, o que nós observadores conotamos ou referimos com ela deve revelar o que fazemos ou como operamos nessas coordenações de ações e relações ao gerarmos nossas afirmações cognitivas. (MATURANA, 2006, p. 127, grifo nosso).

Esse domínio é o espaço no qual estão definidos a dinâmica de interações e transformações dos componentes que constituem um determinado organismo, associadas aos seus possíveis estados com unidade. O conceito de unidade, para esses autores, é também fundamental, pois é o que caracteriza os organismos autopoiéticos; eles procuraram não tratá-lo de modo reducionista, e sim pelo seu caráter singular e independente – seus limites e possibilidades dependem somente dele próprio, e não de um observador. É preciso também ressalvar que as interações a que se referem os autores não são quaisquer ou simplesmente arbitrárias, sem propósito algum, “ya que sus posibilidades quedan

determinadas por las propriedades de los componentes”, com uma trama “en que pueden entrar los componentes al funcionar la máquina que ellos integran” (MATURANA;

VARELA, 2008, p. 65).

Em outras palavras, a aprendizagem, considerada como um processo contínuo, consiste na transformação, através da experiência, do comportamento de um organismo de maneira que, direta ou indiretamente, está ligada à manutenção da sua autopoiesis – auto(re)transformação. É, logo, um processo socio-histórico-cultural, onde cada comportamento constitui a base sobre a qual um novo comportamento se desenvolve. Desse modo, a evolução de um determinado organismo está sujeito a um processo de mudanças especificado através de uma sequência initerrupta e interminável de interações, na con-

vivência com entidades independentes que as selecionam, mas não as determinam. É assim

que, para Maturana e Varela, se dá o conhecer; é pela experiência social, histórica e cultural, e não somente pela mera contemplação do mundo.

Con-vivência implica na interação entre indivíduos distintos, possibilitando a manutenção do devir cognitivo natural dos seres vivos. Para Maturana e Varela, essa interação entre seres vivos é potencializada através da linguagem, num comportamento

coordenado ou mutualmente disparado entre os membros de uma unidade social. Quando dois ou mais organismos interagem recorrentemente criam um domínio linguístico, através de comportamentos adquiridos, gerando um acoplamento social.

Assim, cada vez que um agrupamento de indivíduos constitui

[...] uma rede de interações que opera para eles como um meio no qual eles se realizam como seres vivos e no qual eles, portanto, conservam sua organização e adaptação, e existem em uma coderiva contingente com sua participação em tal rede de interações, temos um sistema social. (MATURANA, 2002, p. 199, grifos nossos).

Embora a constituição de um sistema social dependa de um coletivo de seres vivos, nem sempre tendo esse coletivo, estabelece-se um sistema social. Tomando como exemplo o caso dos humanos, um sistema social somente se configura quando há incorporação da conservação da vida de seus membros como parte de sua definição operatória como sistema. Percebe-se, desse modo, que a coordenação estrutural de um sistema social está diretamente ligada à coordenação estrutural dos seres vivos que o compõem

[...] como as propriedades e características de cada ser vivo estão determinadas por sua estrutura, uma vez que as estruturas dos seres vivos que integram um sistema social mudam, mudam suas propriedades, e o sistema social que estes seres vivos geram com as suas condutas também mudam. (MATURANA, 2002, p. 200). Por outro lado, “a estrutura de cada ser vivo é, em cada instante, o resultado dos caminhos das mudanças estruturais que seguiu a partir de sua estrutura inicial como consequência de suas interações no meio em que lhe coube viver” (MATURANA, 2002, p. 197). O que Maturana quer dizer com isso, é que nós, os seres humanos não somos sempre seres sociais; somente o somos na dinâmica das relações de aceitação mútua. Os sistemas sociais exigem componentes acoplados estruturalmente em domínios linguísticos, condição necessária para a realização da linguagem (MATURANA; VARELA, 2005). Tais domínios linguísticos são campos consensuais onde dois organismos acoplados se orientam reciprocamente em sua conduta. Logo, sem ações de aceitação mútua não somos sociais.

Os organismos requerem um acoplamento estrutural não-linguístico entre seus componentes; os sistemas sociais exigem componentes acoplados estruturalmente em domínios linguísticos, nos quais eles (os componentes) possam operar com a linguagem e ser observadores. Em consequência, para o funcionamento de um organismo o ponto central é ele próprio – e disso resulta a restrição das propriedades de seus componentes. Já para a operação de um sistema social humano, o ponto central é o domínio linguístico gerado por seus componentes e a ampliação das propriedades destes. Essa condição é necessária para a realização da linguagem, que constitui seu domínio de existência. O organismo restringe a criatividade individual das unidades que o integram, pois estas existem para ele; o

sistema social humano amplia a criatividade individual de seus componentes, pois esta existe para eles. (MATURANA; VARELA, 2005, p. 221, grifo nosso).

Então, considerando que o conhecer acontece nas interações em que os seres vivos realizam com o meio, e sobretudo com outros seres vivos, o desenvolvimento cognitivo humano estaria necessariamente dependente da constituição de um sistema social, ao menos, porém não limitada a este somente. Maturana (2002) afirma que os componentes que integram determinado sistema social podem e geralmente participam de outros sistemas sociais simultaneamente, o que potencialmente amplia as possibilidades de mudanças estruturais de cada indivíduo dos sistemas sociais dos quais eles fazem parte. O autor diz ainda que:

se, como resultado de tais interações, a estrutura dos componentes de um sistema social mudar, de modo que sua maneira de integrá-lo mude sem destruir sua organização, a estrutura do sistema muda, e aparece, para um observador, como sendo o mesmo sistema, porém constituído com uma rede de condutas diferente. O mesmo pode ocorrer com a incorporação, em um sistema social, de novos membros com uma história prévia de interações independentes dele. (MATURANA, 2002, p. 201).

Ou seja, pode-se dizer que é tal como uma Autopoiesis social, que perdurará enquanto houver um acoplamento estrutural recíproco decorrente de interações colaborativas expressadas no operar dos seres vivos constituintes de determinado sistema social. Isso implica em considerar que o indivíduo inserido no social integra em sua história e em sua cultura, a própria história e cultura ancestral, que se constituem como estruturas fundamentais na construção de seu desenvolvimento, através das experiências, situações, hábitos, atitudes, costumes, valores, comportamentos e linguagem daqueles com quem interage - sejam pessoas ou instituições (MACEDO, 2006; MORIN, 2007). Este não é um processo determinístico muito menos definitivo, uma vez que o indivíduo participa ativamente da construção de seu círculo de interações, modificando-o e provocando transformações. Ou seja, não é somente uma questão de adaptação ao meio; é uma construção do meio, tendo o indivíduo como autor e ator de sua autopoiesis. Maturana (2002) registra que o humano, como um ser vivo, é estruturalmente organizado, e, portanto, não se se altera por simples adaptação progressiva ao meio; é influenciado por um fenômeno denominado de deriva natural, onde apenas há “a conservação da adaptação e da autopoiese, num processo em que o organismo e ambiente permanecem num contínuo acoplamento estrutural” (MATURANA; VARELA, 2005, p. 130).