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OS ENCANTOS DO DOCUMENTÁRIO E DA FICÇÃO

No documento O CIRCO ELETRÔNICO EM FELLINI (páginas 52-56)

“Num documentário você fotografa pessoas reais e histórias reais, mas não apenas para retratar a superfície visível do real. Na montagem, na justaposição de detalhes, você cria uma interpretação dessas histórias”

John Grierson

Atualmente a discussão sobre o que define um filme documentário e um filme ficcional é uma constante. As distinções e congruências entre ambos são abrangentes, gerando controvérsias inacabáveis entre realizadores e teóricos.

Segundo Evaldo Mocarzel:

“cinema é sem dúvida manipulação e documentário; é logicamente uma ficção, mas uma ficção que tem o ato de documentar como ponto de chegada, ‘a realidade’, ‘o real’, o tema a ser focalizado, enfim, fazer um documentário é de alguma maneira assumir um compromisso com algo que nos escapa, com alguma coisa que nos transcende, que está além do nosso umbigo autoral.” (MOCARZEL, 2003:72).

No cinema, documental ou ficcional, a representação subjetiva do filme é evidenciada por alguns elementos inerentes à linguagem do audiovisual, na pré- produção, produção e pós-produção: a pesquisa da temática; as captações de imagens e sons; a direção, que em geral escolhe o lugar onde as cenas serão realizadas, ensaiadas ou não; a autoria, a intervenção do realizador que imprime a intenção do filme; e por último, a montagem, determinação da “ordem” das cenas, que também contribui para a construção da intencionalidade. Esses elementos, associados ou não, aproximam o documentário da estética ficcional.

A autoria no cinema é sempre algo questionável, pois um filme é a confluência de muitas vozes, imagens e propósitos, que se imprime tanto no documentário como na ficção. No documentário isso aparece nas extenuantes horas

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de filmagem que perpassam por várias mãos e cabeças pensantes, tornando-o uma realização a partir de diversos jeitos e modos de captar imagens e sons. Mesmo quando apreendidos por apenas uma pessoa, como no caso de Entreatos (2001), de João Salles, em que poucas cenas não tiveram sua captação, sente-se que, dentro do filme editado, existem outras participações.

Em alguns casos, o tempo e o espaço também imprimem uma outra voz ao documentário, como no caso de 33, de Kiko Goifman. Kiko é quem conduz todo o processo de filmagem, entretanto há uma forte intervenção do tempo e do espaço, pois Goifman estipulou 33 dias para filmar seu documentário, que seria uma missão para tentar localizar sua mãe biológica. Caso não a encontrasse dentro dos 33 dias, o final do filme seria como foi: ele não a encontrou nos dias pré-determinados e o prazo expirou. Entretanto, se ele a encontrasse no décimo dia, por exemplo, o que provavelmente seria bem difícil, o que faria com os outros 23 dias? Essa pergunta foi feita a ele na apresentação que fez de seu filme, no Cinusp, em março de 2004. Kiko respondeu que reorganizaria a ordem dos fatos, do tempo e do espaço. Confessou que, nesse caso, as filmagens da procura durariam menos tempo e os outros dias seriam utilizados para filmar os fatos decorrentes do encontro com sua mãe. Teria que reformular o tempo e o espaço do filme, encaixando outras cenas no começo, dando mais suspense e substância a ele.

Portanto é óbvia a necessidade de condução do realizador num documentário, mas também é evidente a necessidade de um compromisso com a temática a ser desenvolvida. De qualquer forma, Kiko poderia burlar o fato de que, na verdade, ele não a encontrou; nesse caso, porém, se fosse seguir seu compromisso com o público, após o filme contaria de alguma forma que realmente não a encontrou. Se não fosse assim, o filme se configuraria como um falso documentário; esse é o ponto chave do documentário: ele deve, em algum momento, falar daquilo que aconteceu, seja como for.

É perceptível o sucesso de filmes que representam a realidade, geralmente antecipados pelos dizeres “baseado em fatos reais”. Podemos dizer que a necessidade de veracidade, própria de uma cultura ocidental, ou de aproximar a ficção ao mundo real, fez com que explodissem os realities shows por todo mundo.

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A emissora People & Arts trabalha nesse sentido, colocando em sua grade programas que mostram a realidade como ficção, alimentando essa vontade de ver o real. Entretanto, já se podiam perceber lampejos dessa tendência nos primeiros programas de auditório que levavam um fato corriqueiro para a frente das câmeras, dramatizando-o de tal forma que poderia ser visto como um show. Essa imbricação do real com a ficção se cristalizou como um estilo de linguagem audiovisual, tanto no cinema quanto na TV.

“Os filmes que compõem a tradição do documentário são uma outra maneira de definir o gênero. Para começar, podemos considerar o documentário como um gênero como o faroeste ou a ficção cientifica. Para pertencer ao gênero, um filme tem que exibir características comuns aos filmes já classificados como documentário ou faroestes, por exemplo. Há normas e convenções que entram em ação, no caso dos documentários, para ajudar a distingui-los: o uso de comentário com a voz de Deus, as entrevistas, a gravação de som direto, os cortes para introduzir imagens que ilustrem ou compliquem a situação mostrada numa cena e uso de atores sociais, ou de pessoas em suas atividades e papéis do cotidiano como personagens principais do filme. Todas estão entre as normas e convenções comuns a muitos documentários.” (Nichols, 2005 p. 54).

Assim, o corpus do documentário inserido na ficção parece dar ao espectador a sensação de um filme com mais credibilidade, autenticidade e dinamismo. Fellini, atento a esse fato, desmistifica a linha tênue entre documentário e ficção estabelecendo uma outra lógica fílmica, utilizando esse debate como questionamento em muitos de seus filmes.

Na verdade, nem sempre essa distinção entre documentário e ficção foi tão nítida. Historicamente falando, esse fator falso ou verdadeiro não foi sempre tão relevante. Como as imagens são uma representação de uma idéia, de um conceito ou de uma temática, a autenticidade dos fatos ficava para segundo ou terceiro plano.

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No documento O CIRCO ELETRÔNICO EM FELLINI (páginas 52-56)