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3 O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA E AS CLÁUSULAS GERAIS

3.4 A OPERABILIDADE DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA

3.4.1 A boa-fé e o abuso de direito

Na aplicação da boa-fé objetiva encontram-se dificuldades para lidar com o abuso do direito, pois as situações de quebra de confiança, lealdade, solidariedade e dignidade estão muito próximas do agir com abuso no exercício dos direitos subjetivos. Existe mesmo uma ligação forte entre a violação da boa-fé objetiva e o abuso de direito. Neste, explica Nelson Rosenvald, “alguém aparentemente atua no exercício de um direito subjetivo. O agente não desrespeita a estrutura normativa, mas ofende a sua valoração. Conduz-se de forma contrária aos fundamentos materiais da norma, por negligenciar o elemento ético que preside a sua adequação ao ordenamento. Em outras palavras, no abuso do direito não há desafio à legalidade estrita de uma regra, porém à sua própria legitimidade, posto vulnerado o princípio que a fundamenta e lhe concede sustentação sistemática”212.

O verdadeiro critério do abuso do direito, no campo das obrigações, “parece localizar-se no princípio da boa-fé, pois em todos os atos geralmente apontados como de abuso do direito estará presente uma violação ao dever de agir de acordo com os padrões de lealdade e confiança, independentemente de qualquer propósito de prejudicar”213.

Estamos de acordo com Nelson Rosenvald quando afirma: “Não pretendemos de forma alguma afirmar que a boa-fé absorve o abuso do direito. Como sugere Coutinho de Abreu, é preferível distinguir as duas figuras e autonomizar os princípios

211

La buona fede nell’esecuzione del contratto. Torino: G. Giappichelli, 2004. p. 90.

212 Dignidade humana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 123. 213 ROSENVALD, Nelson. Op. cit., p. 131.

da boa-fé e do abuso do direito. O que nos parece evidente é que, a par da necessária individualização de cada instituto – que, aliás, é evidente intuito do novo Código Civil brasileiro –, há uma área que é comum a ambos.”214

Diante da ordenação contratual, “o princípio da boa-fé e a teoria do abuso de direito complementam-se, operando aquela com o parâmetro de valoração do comportamento dos contratantes: o exercício de um direito será irregular, e nesta medida abusivo, se consubstanciar quebra de confiança e frustração de legítimas expectativas. Nesses casos, o comportamento formalmente lícito, consistente no exercício de um direito, é, contudo, um comportamento contrário à boa-fé e, como tal, sujeito ao controle da ordem jurídica”215.

Na verdade, “se bem atentarmos nos atos geralmente apontados como de abuso de direito, veremos como em todos está presente uma violação do dever de agir de acordo com a boa-fé. Esta violação é patente desde logo nos casos de abuso de direito reconhecidos pelas concepções subjetivistas: quando se escolhe, com o propósito de prejudicar, o modo do exercício do direito que é mais danoso para a contraparte, é manifesta a violação do dever de agir com moderação, imposto pela boa-fé. Mas a violação do mesmo dever de agir conforme a boa-fé é visível também nos demais casos de abuso de direito, caracterizados apenas por desvio da sua finalidade, independentemente de qualquer propósito de prejudicar. Nestes casos, é preciso, todavia, sermos cautelosos antes de dar como verificado um abuso de direito, porque a boa-fé não exige certamente que ninguém proceda de modo altruísta em relação à contraparte”216.

O princípio da boa-fé, seguindo a lição de Judith Martins-Costa, “por seu significado primacial de correção e lealdade, por sua inscrição em uma tradição

sistematizadora, pela relativa vagueza semântica que o caracteriza – permitindo, em

seu entorno, uma área de franja hábil a captar novas hipóteses não ainda tipificadas legal ou socialmente –, mostra-se um instrumento de maior utilidade para resolver o „dilema do abuso‟, a saber: o de demarcar, no caso concreto, a extensão dos direitos

214 Dignidade humana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 132.

215 NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé.

Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 141.

216 NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada,

boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 173. Realmente importante é saber, de acordo com o autor, “que o verdadeiro critério do abuso de direito parece estar no princípio da boa-fé: o que importa assinalar é, primeiro, que a boa-fé exige de cada parte que, ao exercer os seus direitos, aja com moderação e, segundo, que se a discricionariedade concedida aos particulares constitui a sua esfera de autonomia privada, a boa-fé, agora, terá uma função de limite a tal autonomia” (Idem).

e faculdades que não foram objeto de maior precisão legislativa. Mais do que isso, a boa-fé permite até mesmo ultrapassar a noção de abuso do direito – „construído, na doutrina, como conceito dogmático residual, para abranger situações de fato não enquadráveis no ordenamento jurídico – mas de definir causa de ilicitude‟. Por essa razão, há quem sustente que a boa-fé não é apenas a mais importante das balizas do exercício jurídico: o princípio englobaria a categoria do abuso que, subsumido no princípio da boa-fé objetiva, não teria „existência autônoma‟, mas demarcaria uma das três zonas funcionais do princípio”217.

A figura do abuso do direito sempre teve vocação para um conceito residual, de modo a autorizar sua invocação quando outra solução não é encontrada no ordenamento. É certo que, em face das novas preposições inerentes à boa-fé objetiva, o campo de incidência do abuso do direito é reduzido em relação aos contratos e obrigações, mas não está determinado o seu desaparecimento.