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5 DEVERES ACESSÓRIOS E DE COOPERAÇÃO PRESENTES NA

5.1 DEVERES ACESSÓRIOS, LATERAIS E SECUNDÁRIOS

Os vínculos obrigacionais, segundo Menezes Cordeiro, “oferecem ligações abstratas entre as partes. Duplamente irreais: por um lado, esquecem que, quando duas pessoas se encontram como credor e devedor, o entrecruzamento das esferas é, em regra, mais intenso do que o expresso pela obrigação linear; por outro, desconsideram toda a inserção dos sujeitos no meio social. O irrealismo em causa é uma fatalidade: limitados pela linguagem, os seres humanos só são capazes de comunicar e, logo, de raciocinar, em planos bidimensionais muito simples. A simplificação daí resultante reflecte-se no regime aplicável, sendo fonte de injustiças. Estas são empiricamente perceptíveis, pelo que, desde sempre, se procuraram soluções. Tais soluções, pelo que hoje sabemos, passam por uma ideia simples: quando envolvidas numa relação obrigacional, as partes, para além dos direitos e deveres inerentes à prestação principal e às prestações secundárias, resultantes do vínculo, ficam ainda adstritas a uma série de deveres que visam: acautelar materialmente o vínculo obrigacional; proteger as partes, nas suas pessoas e no seu patrimônio; proteger terceiros que, com a obrigação, tenham um especial contato”254.

Se o Direito Civil, e mais particularmente o direito das obrigações, era marcado pelo individualismo, afirma Giovanni Ettore Nanni, “com a concepção socializada ele passa a ter a preocupação com outros valores, especialmente o espírito de salvaguardar a essência da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da justiça social, que, jungidos pela noção de solidariedade, cominam o exercício dos direitos de acordo com a sua finalidade social, próprios da convivência em sociedade. Assim, neste espírito solidarista, as relações obrigacionais não se limitam apenas ao dever de prestação principal da obrigação, objetivando somente a tutela do credor e de seu crédito, mas implicam, além de deveres secundários ou acidentais, que são complementares à prestação primária, deveres acessórios ou

254 Tratado de Direito Civil português

– 2º v.: direito das obrigações, 1º t.: introdução, sistemas e

laterais de conduta, os quais, derivados da boa-fé objetiva, criam condições necessárias para a consecução do objeto da prestação, protegendo o credor e o devedor. Tais deveres, condensados no dever de cooperação, têm atribuição de impor que as partes da relação obrigacional atuem em colaboração para atingir o adimplemento, ou seja, a satisfação da obrigação”255.

Decorre da ideia de obrigação como processo e do princípio da boa-fé, aplicado ao direito obrigacional, o reconhecimento de que as partes têm deveres secundários e que abrangem toda a relação jurídica. Assim, de acordo com Clóvis do Couto e Silva, “podem ser examinados durante o curso ou desenvolvimento da relação jurídica, e, em certos casos, posteriormente ao adimplemento da obrigação principal. Consistem em indicações, atos de proteção, como dever de afastar danos, atos de vigilância, de guarda, de cooperação, de assistência”256.

Esta visão dinâmica e realista do contrato, afirma Claudia Lima Marques, “é uma resposta à crise da teoria das fontes dos direitos e obrigações, pois permite observar que as relações contratuais durante toda a sua existência (fase de execução), mais ainda no seu momento de elaboração (de tratativas) e no seu momento posterior (de pós-eficácia), fazem nascer direitos e deveres outros que os resultantes da obrigação principal. Em outras palavras, o contrato não envolve só a

obrigação de prestar, mas envolve também uma obrigação de conduta”257.

Os deveres acessórios de proteção, de acordo com Menezes Cordeiro, “nada têm a ver com a regulação contratual e com a sua execução fiel pelas partes. Visam, na verdade, obstar a que, na ocasião do efectivar das prestações e dadas as possibilidades reais de agressão e ingerência provocadas por essa conjuntura, as partes se venham a infligir danos mútuos. A relação com o contrato, caso exista e seja ela qual for, não explica nem orienta esses deveres: eles radicam em níveis diversos da ordem jurídica, profundos sem dúvida, mas alheios à autonomia privada”258.

Esses deveres laterais, derivados de uma cláusula contratual, de dispositivo da lei ou do princípio da boa-fé, afirma Almeida Costa, “já não interessam

255 NANNI, Giovanni Ettore. O dever de cooperação nas relações obrigacionais à luz do princípio

constitucional da solidariedade. In: ______ (Coord.). Temas relevantes do Direito Civil

contemporâneo: reflexões sobre os cinco anos do Código Civil – Estudos em homenagem ao professor Renan Lotufo. São Paulo: Atlas, 2008. p. 318.

256 A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2007. p. 93.

257 Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5. ed.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 218.

diretamente ao cumprimento da prestação ou dos deveres principais, antes aí exato processamento da relação obrigacional, ou, dizendo de outra maneira, à exata satisfação dos interesses globais envolvidos na relação obrigacional complexa. Os deveres laterais encontram-se sistematizados pelos autores em vários tipos, como os deveres de cuidado, previdência e segurança, os deveres de aviso e informação, os deveres de notificação, os deveres de cooperação, os deveres de proteção e cuidado relativos à pessoa e ao patrimônio da contraparte”259.

Embora não se possam conhecer previamente os deveres secundários e laterais da obrigação, porquanto não se vinculam ao momento genético da relação, visto que o respectivo nascimento decorrerá das circunstâncias fáticas do desenvolvimento da relação260, são deveres de natureza obrigacional que, desrespeitados, caracterizam violação positiva do contrato. Ocorre nesse caso uma espécie de alargamento da noção de inadimplemento contratual261.

É certo, como conclui Nelson Rosenvald, que “os deveres de conduta são emprestados pela boa-fé ao negócio jurídico, destinando-se a resguardar o fiel processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra. Eles incidem tanto sobre o devedor como sobre o credor, mediante resguardo dos direitos fundamentais de ambos, a partir de uma ordem de cooperação, proteção e informação, em via de facilitação do adimplemento pelos meios menos onerosos ao devedor, tutelando a sua dignidade”262.

Esses deveres acessórios ou laterais de conduta não podem ser determinados previamente. A incidência da boa-fé nas relações obrigacionais representa uma fonte indeterminada de deveres que serão definidos concretamente. É da própria essência da cláusula geral que o seu conteúdo seja determinado em cada caso, sem que se possa criar surpresa para as partes, porque na verdade a

259 COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das obrigações. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1994. p. 59-60. 260 É o que observa Jorge Cesa Ferreira da Silva (A boa-fé e a violação positiva do contrato. Rio de

Janeiro: Renovar, 2002. p. 104).

261 A doutrina distingue na obrigação os deveres principal, de conduta e os secundários ou

acessórios. Anota Nelson Rosenvald: “A par da distinção entre o dever principal – localizado na prestação – e os deveres de conduta, há um espaço no qual penetram os chamados deveres

secundários ou acidentais da prestação. Nesta terceira categoria se incluem os deveres acessórios

da obrigação principal, ou seja, aqueles cujo objetivo é assegurar a perfeita execução das prestações de dar, fazer ou não fazer (v.g., na compra e venda o dever de conservar a coisa vendida, ou de acondicioná-la). Entre os deveres secundários também se inserem aqueles relativos às prestações complementares da obrigação principal (v.g., dever de indenizar prejuízos decorrentes da mora).” (Dignidade humana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 96-7) É certo que não há consenso na doutrina a respeito da classificação e do uso da designação dos deveres anexos ou laterais ou secundários na relação obrigacional.

boa-fé, aproveitando a lição de Díez-Picazo, se traduz em um comportamento ou modelo de conduta social que a consciência social exige em cada caso conforme um imperativo ético dado263. O que não se pode fazer, adverte o jurista espanhol, é impor deveres que nenhuma pessoa na mesma situação poderia esperar264.