• Nenhum resultado encontrado

3 O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA E AS CLÁUSULAS GERAIS

3.1 A BOA-FÉ E O CÓDIGO CIVIL DE 2002

Se é das fontes que as obrigações provêm, afirma Jorge Cesa Ferreira da Silva, “também é da regulação delas que se delimitam os princípios jurídicos aplicáveis às relações específicas. São elas, portanto, os veículos próprios dos princípios aplicáveis a todo o campo obrigacional, além de oferecerem as regras mais diretamente incidentes”128.

Ao lado dos princípios particulares, aplicáveis à concreta espécie de relação obrigacional, outros, os princípios gerais, têm incidência nas obrigações. São princípios, anota Jorge Cesa Ferreira da Silva, que oferecem os nortes valorativos de conteúdo amplo, como, por exemplo, os princípios da autonomia privada, da função social dos contratos, da boa-fé objetiva e do equilíbrio. Por isso, “a

127 LARENZ, Karl. Derecho civil

– parte geral. Versão espanhola de Miguel Izquierdo y Macías- Picavea. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1978. p. 58.

128 Princípios de direito das obrigações no novo Código Civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O

compreensão do direito obrigacional a partir do novo Código parte da análise desses princípios gerais, capazes que são de não só regular as relações como também propiciar aberturas e conexões a outros domínios normativos, tanto internos ao Código quanto externos a ele, do que se destaca as pontes com a Constituição”129.

Para a compreensão adequada do que representa a boa-fé no direito privado brasileiro é necessário recordar algumas das proposições levadas a efeito no projeto que resultou no Código Civil de 2002.

O Supervisor da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil de 2002, o jurista Miguel Reale, destacou na exposição de motivos dirigida ao Ministro da Justiça, Doutor Armando Falcão, a preocupação de o projeto assegurar o sentido de “socialidade”130 e “concreção”131, princípios fundamentais na obra programada.

129 Princípios de direito das obrigações no novo Código Civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O

novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 101. O autor faz

importante observação quanto à natureza desses princípios: “é necessário divisar internamente esses princípios, na medida em que a divisão permite melhor compreendê-los. Conforme a origem da normatividade, pode-se distingui-los em princípios de normatividade exógena ou endógena. Dois deles têm uma origem exógena à relação obrigacional formada, ou seja, constituem imperativos do ordenamento para a relação. É o caso da autonomia privada e da função social. Por sua vez, a boa-fé objetiva e o equilíbrio têm uma origem endógena: são as características específicas da relação concreta, no que se inclui a conduta das partes, que determinam as suas aplicações. A distinção é importante porque os dois primeiros possuem função eminentemente funcionalizante” (Ibidem, p. 102).

130

Miguel Reale explica que: “O „sentido social‟ é uma das características mais marcantes do Projeto, em contraste com o sentido individualista que condiciona o Código Civil ainda em vigor. Seria absurdo negar os altos méritos da obra do insigne Clóvis Beviláqua, mas é preciso lembrar que ele redigiu sua proposta em fins do século passado, não sendo segredo para ninguém que o mundo nunca mudou tanto como no decorrer do presente século, assolado por profundos conflitos sociais e militares. Se não houve a vitória do socialismo, houve o triunfo da „socialidade‟, fazendo prevalecer os valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundante da pessoa humana.” (O projeto

do novo Código Civil: situação após a aprovação pelo Senado Federal. 2. ed. São Paulo: Saraiva,

1999. p. 7)

131

Concreção, ou princípio da “concretitude”, como prefere Miguel Reale, é, nas suas palavras: “a obrigação que tem o legislador de não legislar em abstrato, para um indivíduo perdido na estratosfera, mas, quanto possível, legislar para o indivíduo situado: legislar para o homem enquanto marido; para a mulher enquanto esposa; para o filho enquanto um ser subordinado ao poder familiar. Quer dizer, atender às situações sociais, à vivência plena do Código, do direito subjetivo como uma situação individual; não um direito subjetivo abstrato, mas uma situação subjetiva concreta. Em mais de uma oportunidade ter-se-á ocasião de verificar que o Código preferiu, sempre, essa concreção para a disciplina da matéria” (O projeto do novo Código Civil: situação após a aprovação pelo Senado Federal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 12). Este princípio está implícito no de operabilidade, também aplicado na elaboração do projeto. Escreveu Reale: “toda vez que tivemos de examinar uma norma jurídica, e havia divergência de caráter teórico sobre a natureza dessa norma ou sobre a conveniência de ser enunciada de uma forma ou de outra, pensamos no ensinamento de Jhering, que diz que é da essência do Direito a sua realizabilidade: o Direito é feito para ser executado; Direito que não se executa – já dizia Jhering na sua imaginação criadora – é como chama que não aquece, luz que não ilumina. O Direito é feito para ser realizado; é para ser operado. [...] o princípio da operabilidade leva, também, a redigir certas normas jurídicas, que são normas abertas, e não normas cerradas, para que a atividade social mesma, na sua evolução, venha a alterar-lhe o conteúdo através daquilo que denomino „estrutura hermenêutica‟. Porque, no meu modo de entender, a estrutura hermenêutica é um complemento natural da estrutura normativa. E é por isso que a doutrina

Escreveu Miguel Reale: “Não se compreende, nem se admite, em nossos dias, legislação que, em virtude da insuperável natureza abstrata das regras de direito, não abra prudente campo à ação construtiva da jurisprudência, ou deixe de prever, em sua aplicação, valores éticos, como os de boa-fé e equidade.”132

Ao defender o projeto, Miguel Reale criticou o excessivo rigorismo formal do Código de 1916, que pouquíssimas referências fazia à equidade, boa-fé e demais critérios éticos. Sustentou a aplicação do princípio da eticidade: “Não acreditamos na geral plenitude da norma jurídica positiva, sendo preferível, em certos casos, prever o recurso a critérios ético-jurídicos que permita chegar-se à „concreção jurídica‟, conferindo-se maior poder ao juiz para encontrar-se a solução mais justa ou equitativa. O novo Código, por conseguinte, confere ao juiz não só poder para suprir lacunas, mas também para resolver, onde e quando previsto, de conformidade com valores éticos, ou se a regra jurídica for deficiente ou inajustável à especificidade do caso concreto.”133

A respeito do direito das obrigações, o projeto procurou, segundo Reale, “tornar explícito, como princípio condicionador de todo processo hermenêutico, que a liberdade de contratar só pode ser exercida em consonância com os fins sociais do contrato, implicando os valores primordiais da boa-fé e da probidade. Trata-se de preceito fundamental, dispensável talvez sob o enfoque de uma estreita compreensão positivista do Direito, mas essencial à adequação das normas particulares à concreção ética da experiência jurídica”134.

O que se tem em vista é, em suma, explicou Reale, “uma estrutura normativa concreta, isto é, destituída de qualquer apego a meros valores formais e abstratos. Esse objetivo de concretude impõe soluções que deixam margem ao juiz e à doutrina, com frequente apelo a conceitos integradores da compreensão ética, tal como os de boa-fé, equidade, probidade, finalidade social do direito, equivalência de prestações etc., o que talvez não seja do agrado dos partidários de uma concepção

é fundamental, porque ela é aquele modelo dogmático, aquele modelo teórico que diz o que os demais modelos jurídicos significam” (Ibidem, p. 11-2).

132 O projeto do novo Código Civil: situação após a aprovação pelo Senado Federal. 2. ed. São Paulo:

Saraiva, 1999. p. 52.

133 REALE, Miguel. Op. cit., p. 8. Judith Martins-

Costa, nesse sentido, defendeu “um modelo de código pelo qual, mantida a concepção sistemática, permita-se a sua abertura aos elementos externos e mobilidade para enfrentar a mutabilidade da vida, possibilitando à prática jurisprudencial coordená-lo com os demais elementos do sistema, notadamente os valores constitucionais” (A boa-fé

no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

p. 26).

mecânica ou naturalística do Direito, mas este é incompatível com leis rígidas de tipo físico-matemático”135.

É certo que a boa-fé objetiva, como preceito de natureza ética, não está confinada ao direito das obrigações, espraiando-se por outros ramos do direito privado e público. Contudo, de acordo com Claudio Luiz Bueno de Godoy, a boa-fé objetiva tem “maior incidência na seara contratual ou, para muitos, e decerto influenciados pela própria topografia do § 242 do BGB, de necessária adstrição ao gênero do direito das obrigações – pressuposta esta como um processo, uma relação jurídica complexa e dinâmica em que as partes não se vinculam apenas à prestação principal, mas também a deveres instrumentais à sua melhor consecução, a seu adimplemento –, a boa-fé objetiva faz do ajuste, hoje, muito mais uma relação de cooperação, de consideração com o outro, destarte garantindo a promoção do solidarismo que, como visto, é valor constitucional e, nesta senda, imbricando-se com a função social do contrato”136.