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4 FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ

4.1 OS PRINCÍPIOS DE DIREITO NO SISTEMA JURÍDICO ABERTO

Os princípios de Direito, numa fase que se convencionou chamar de positivista, eram aplicados de acordo com um raciocínio lógico-dedutivo ou indutivo, tendo como referencial o ordenamento posto. Na fase positivista, afirma Teresa Negreiros, com apoio na doutrina de Paulo Bonavides, “os princípios recolhem da natureza logicamente sistemática do ordenamento jurídico o fundamento de sua normatividade, embora no plano legislativo, ainda centrado nos Códigos Civis, os princípios sejam referidos como fonte supletiva de interpretação”225.

Vivemos o que se denomina de pós-positivismo, ou de positivismo moderado, que se caracteriza pelo deslocamento do eixo legislativo do campo civil para o campo constitucional, no qual inúmeros princípios são extraídos para assentar a base de todo o ordenamento. No contexto pós-positivista, observa Teresa Negreiros, “caracterizado pela abertura do sistema jurídico, os princípios passam a ser aplicados prioritariamente às normas específicas, pois que, segundo tal estruturação sistemática, eles são precisamente a ponte entre o sistema social e o sistema jurídico, e não apenas um recurso de manutenção do sistema como um sistema fechado, completo e avalorativo”226.

O fim dos Estados absolutistas e o reforço do federalismo, nas palavras de Pedro Oliveira da Costa, “acarretam a ruptura ideológico-social que abre caminho para uma nova ordem constitucional, com novos paradigmas. Altera-se, então, a percepção da importância do texto constitucional e da aplicabilidade de suas normas. Em que pese a resistência de alguns setores da doutrina, os princípios constitucionais deixam de ser encarados como meros princípios políticos, cujo

225 Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro:

Renovar, 1998. p. 145.

226 NEGREIROS, Ter

esa. Op. cit., p. 146. Explica a autora: “o caráter normativo dos princípios já podia ser vislumbrado em um momento ainda predominantemente positivista. Ocorre que, ali, se tratava de conceber os princípios como uma decorrência lógica do pensamento sistemático, consubstanciado nas ideias de unidade, completude e coerência do ordenamento jurídico, ao passo que hoje, na fase denominada pós-positivista, os princípios, consagrados constitucionalmente, se impõem como fundamento axiológico – e não mais lógico-axiomático – do sistema jurídico” (Ibidem, p. 146).

destinatário seria apenas o legislador infraconstitucional, e passam a ser entendidos como necessariamente presentes em todos os recantos do tecido normativo; normas cogentes a nortear a solução de conflitos entre particulares e destes perante o Estado. A Constituição deixa de ser „do Estado‟ e passa a ser do cidadão, agora capacitado a exigir do seu semelhante, inclusive mediante a provocação do Judiciário, o respeito às regras e princípios constitucionais, cuja normatividade passa a ser reconhecida”227.

Impõe-se, como afirma Giovanni Ettore Nanni, “a harmonização do Direito Civil com princípios constitucionais ou com a Constituição como um todo orgânico. A norma constitucional passa a ser parte integrante do sistema civil, não apenas como regra hermenêutica, mas como norma vinculante de comportamento, recaindo sobre as relações privadas e tutelando seus valores fundamentais, especialmente a pessoa humana. Portanto, o Direito Civil é justaposto a todo o ordenamento jurídico e peculiarmente à Constituição Federal, de cujas normas ele extrai princípios e fundamentos básicos que compõem os elementos que se sustenta como alicerces do direito obrigacional”228.

Sustenta a moderna metodologia “que os cultores do direito não devem propor-se uma simples explicação teórica das soluções consagradas na lei, dirigida a uma visão sistemático-formal do ordenamento jurídico, que era o objetivo da chamada jurisprudência dos conceitos („Begriffsjurisprudenz‟). Em vez dessa linha metodológica, considera-se que a ciência do Direito, mercê da sua exata natureza, tem de orientar-se pelo primado da vida e não partindo de um puro logicismo. Deste modo, entende-se que incumbe ao jurista, como tarefa principal, a indagação dos

227 COSTA, Pedro Oliveira da. Apontamentos para uma visão abrangente da função social dos

contratos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 47. O autor afirma que assim, “verifica-se a ascensão política e científica da Constituição, que assume, definitivamente, o seu lugar de direito no centro do ordenamento jurídico, de onde irá desempenhar uma função de „filtro‟, conformando a interpretação, aplicação e compreensão de todo o direito infraconstitucional” (Ibidem, p. 48).

228 O dever de cooperação nas relações obrigacionais à luz do princípio constitucional da

solidariedade. In: ______ (Coord.). Temas relevantes do Direito Civil contemporâneo: reflexões sobre os cinco anos do Código Civil – Estudos em homenagem ao professor Renan Lotufo. São Paulo: Atlas, 2008. p. 291. Renan Lotufo afirma, a propósito, que “O Código não podia ser considerado como o único centro de informações da vida civil”. E critica a escola clássica do Direito: “Muitos de nossos manuais e muitos professores de Direito Civil continuaram ensinando a matéria, como se nosso Código continuasse a ser o mais importante, pois dentro de nosso corpo legislativo não bastara o advento da Constituição, pois essa não revogara o Código Civil. Sem perceberem as mudanças de concepção sociopolítica, permaneceram como se as normas deste Código sobrepairassem sobre a Constituição, numa visão totalmente incongruente com a própria teoria geral do direito.” (Da oportunidade da codificação civil e a Constituição. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código

motivos práticos das soluções da lei, dos interesses materiais ou ideais e finalidades que a determinaram, como postula a jurisprudência dos interesses („Interessenjurisprudenz‟); ou melhor, de acordo com a subsequente orientação da

jurisprudência das valorações („Wertungsjurisprudenz‟), que, todavia, não se

apresenta indiscutida, é necessário que na interpretação e integração da lei, quer dizer, ao aplicar-se o direito, se atenda essencialmente aos princípios ou critérios valorativos em que as formulações legislativas se baseiam e imanentes ao ordenamento jurídico. Acresce que, numa vincada acentuação do momento pragmático da linguagem e dos esquemas institucionais, as próprias correntes analíticas destacam o facto de uma adequada resolução dos problemas jurídicos concretos apenas se tornar possível mediante a ponderação das especificidades destes, em referência a uma certa prática, e nunca por mera via axiomático-dedutiva de subsunção. Trata-se do modo atual de encontro do homem com o direito”229.

O sistema jurídico, nesta nova ordem de ideias, “tem o papel de traduzir e realizar a adequação valorativa e a unidade interior da ordem jurídica; não é pré- dado, mas construído por uma atividade hermenêutica que, como tal, não é mais uma atividade puramente lógico-subsuntiva, mas teleológico-valorativa, pelo que Canaris caracteriza o sistema jurídico como „ordem teleológica de princípios gerais de direito‟”230.

Somente a partir do momento em que se reconheceu a abertura do sistema jurídico, o seu enraizamento cultural, segundo Teresa Negreiros, “é que os princípios puderam ser reconhecidos como chave para a aplicação-realização do Direito, e não

229 COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das obrigações. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1994. p. 54.

Esclarece Fernando Noronha: “Hoje, a jurisprudência dos interesses já está ultrapassada, substituída pela jurisprudência dos valores, ou das valorações (Wertungs-jurisprudenz), cuja formulação mais acabada se deve essencialmente a outro Mestre alemão, Josef Esser, e que, no fundo, representa mero desenvolvimento da ideia básica da jurisprudência dos interesses: se o legislador fez prevalecer na norma concreta um certo interesse, é porque ele procedeu a uma determinada valoração de tais interesses, que lhe permitiu selecionar aquele que, a seu juízo, se afigurava mais merecedor de tutela. Atrás dos interesses estão, portanto, valores, que os procedem e que, por isso, devem orientar todo o pensamento jurídico.” (O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 37-8) Oportuna, ainda, a observação de Pietro Perlingieri: “A jurisprudência dos valores constitui, sim, a natural continuação da jurisprudência dos interesses – mas com maiores aberturas para com as exigências de reconstrução de um sistema de „Direito Civil Constitucional‟ –, enquanto idônea a realizar, melhor do que qualquer outra, a funcionalização das situações patrimoniais àquelas existenciais, reconhecendo a estas últimas, em uma concretização dos princípios constitucionais, uma indiscutida preeminência. Mesmo interesses materiais e suscetíveis de avaliação patrimonial, como instrumentos de concretização de uma vida digna, de pleno desenvolvimento da pessoa e da possibilidade de se libertar das necessidades (liberta dal bisogno), assumem o papel de valores.” (Ibidem, p. 119-20).

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mais como mecanismos de integração supletiva do que então se reputava como um sistema autônomo, neutro e autorreferente. A partir de então, os valores fundamentados, designadamente na sua formulação constitucional, conquistam uma dimensão de efetiva capacidade de decisão, não mais sendo possível pôr a ordem jurídica entre parênteses. É por isso que parece lícito estabelecer uma conexão entre, de um lado, sistema fechado e sistema exclusivamente de regras e, de outro, sistema aberto e sistema de regras e princípios”231.

No campo do direito privado “este parece ser um processo de profundas e ainda não tangíveis mudanças: desaparece a ideia de Código Civil como „constituição da vida privada‟, verdadeira metáfora do sistema fechado, surgindo a Constituição como centro, não apenas formal, mas valorativo da unidade como um todo”232.

Se alguma crítica se pode conceber a essa nova forma de ver o direito privado, que boa parte da doutrina designou de constitucionalização do Direito Civil233, o fato é que a nova exegese do direito privado não pode ser feita sem

atenção ao primado dos valores constitucionais. Esta é a transformação que levou o direito contratual e obrigacional a um novo estágio, no qual o capricho, a potestade e a intransigência das partes, especialmente do credor, são vencidos na incidência da moderna ordem jurídica.

231 Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro:

Renovar, 1998. p. 166-7.

232

NEGREIROS, Teresa. Op. cit., p. 169. Acrescenta a autora: “A importância dos princípios para esta releitura do Direito Civil é indiscutível, assim como a concepção destes princípios como normas que se distinguem em um nível funcional.” (Ibidem, p. 171)

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Como afirma Pietro Perlingieri, “não existem, portanto, argumentos que contrariem a aplicação direta dos princípios constitucionais: a norma constitucional pode, mesmo sozinha (quando não existirem normas ordinárias que disciplinem a fattispecie em consideração), ser a fonte da disciplina de uma relação jurídica de Direito Civil. Essa solução „é a única permitida se se reconhece a preeminência das normas constitucionais – e dos valores por elas expressos – em um ordenamento unitário, caracterizado por esses conteúdos. Pode-se afirmar, pois, que seja na aplicação dita indireta – que sempre acontecerá quando existir na legislação ordinária uma normativa específica, ou cláusulas gerais ou princípios expressos –, seja na aplicação dita direta – assim definida pela ausência de intermediação de qualquer enunciado normativo ordinário –, a norma constitucional acaba sempre por ser utilizada. O que importa não é tanto estabelecer se em um caso concreto se dê aplicação direta ou indireta (distinção nem sempre fácil), mas sim, confirmar a eficácia, com ou sem uma específica normativa ordinária, da norma constitucional respeito às relações pessoais e socioeconômicas. A norma constitucional torna-se a razão primária e justificadora (ainda que não a única, se for individuada uma normativa ordinária aplicável ao caso) da relevância jurídica de tais relações, constituindo parte integrante da normativa na qual elas, de um ponto de vista funcional, se concretizam. Logo, a normativa constitucional não deve ser considerada sempre e somente como mera regra hermenêutica, mas também como norma de comportamento, idônea para incidir sobre o conteúdo das relações entre situações subjetivas, funcionalizando-as aos novos valores” (O Direito

Civil na legalidade constitucional. Edição brasileira por Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro:

Abre-se para o civilista, de acordo com Pietro Perlingieri, “um vasto e sugestivo programa de investigação, que se propõe a realização de objetivos qualificados: individuar um sistema do direito civil mais harmonizado com os princípios fundamentais e, em particular, com as necessidades existenciais da pessoa; redefinir o fundamento e a extensão dos institutos jurídicos, especialmente civilísticos, destacando os seus perfis funcionais, em uma tentativa de revitalização de cada normativa à luz de um renovado juízo de valor; verificar e adequar as técnicas e as noções tradicionais (da situação subjetiva à relação jurídica, da capacidade de fato à legitimação etc.), em um esforço de modernização do instrumentário e, especialmente, da teoria da interpretação. Muitas das investigações já realizadas nesse sentido indicam que a estrada traçada é rica de resultados, destinados, na sua totalidade, a dar uma nova feição ao direito civil, contribuindo à criação do direito civil constitucional”234.

É preciso reconhecer “que a mudança de paradigmas operada no direito privado, resultante da necessária releitura de todo o ordenamento de acordo com o projeto constitucional de uma sociedade livre, promove uma autêntica transformação na disciplina contratual, criando uma nova Teoria do Contrato, em que os princípios clássicos, já chamados de „liberais‟, coexistem com novos princípios, ditos „sociais‟: boa-fé objetiva, equilíbrio econômico (ou equivalência material) e função social do contrato”235.

Não se deve olvidar o papel da jurisprudência na aplicação dos princípios e na criação do Direito. As normas que compõem um dado sistema jurídico podem ser legisladas e, como afirma Fernando Noronha, quase sempre trabalhadas pela jurisprudência, “mas também podem ser normas totalmente construídas pela jurisprudência, no seu incessante labor de „aplicação‟ do direito, orientado pelos princípios e valores subjacentes. É por este processo que princípios e valores imperceptivelmente vão fazendo evoluir o direito que nos rege”236.

234 O Direito Civil na legalidade constitucional. Edição brasileira por Maria Cristina De Cicco. Rio de

Janeiro: Renovar, 2008. p. 591.

235 COSTA, Pedro Oliveira da. Apontamentos para uma visão abrangente da função social dos

contratos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Obrigações: estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 52.

236 O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça

contratual. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 9. O autor explica que nas hipóteses de lacunas no sistema, em que falta uma norma jurídica que regulamente a situação ou que o sistema vigente oferece uma solução em relação à qual a consciência jurídica geral se sobressalte, é necessário ter presente o que o autor chama de diretrizes da construção jurisprudencial do direito, que são: “as necessidades

O papel da jurisprudência hoje na construção de novas regras é incontestável em face da importância que o ordenamento reconhece às súmulas e precedentes jurisprudenciais. Representa o quanto o sistema se abriu a novas interpretações e à imprescindível atuação judicial integradora e criativa na solução dos conflitos. A jurisprudência ainda é sinalizadora, através da tendência verificada nos julgamentos, de novas percepções que são capazes de reorientar a doutrina e a atuação das partes e dos agentes sociais. Uma jurisprudência voltada à concretização dos valores constitucionais e dos princípios extraídos do sistema é o que se espera a partir das cláusulas gerais.