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4 FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ

4.2 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS INCIDENTES NA RELAÇÃO

OBRIGACIONAL

Recebe o direito privado a incidência dos princípios-valores da Constituição, como os princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade237 e da

igualdade substantiva, princípios que encontram ampla aplicação nas relações obrigacionais.

Consequentemente, é imperativa a conformação do contrato aos princípios constitucionais, “uma vez que o contrato deixa de ser considerado como um instrumento economicamente neutro, porquanto seus efeitos transcendem a

cristalizados nos princípios fundamentais de direito. Se as necessidades sociais é que determinam o surgimento da hipótese fática a normar, por um lado caberá à natureza das coisas estabelecer a ponte entre os fatos e a nova norma, garantindo a exequibilidade desta, e, por outro, incumbirá aos princípios fundamentais de direito estabelecer uma outra, entre os valores que prevalecem na sociedade e a norma a instituir, garantindo a legitimidade desta. Se as necessidades sociais apontam a finalidade a alcançar, a natureza das coisas indicará os meios disponíveis, enquanto os princípios fundamentais de direito esclarecerão o que será legítimo a fazer” (NORONHA, Fernando. Op. cit., p. 10).

237 Guido Alpa, ao responder por que a solidariedade deveria ser elevada à regra jurídica, vinculante e

coativa, deu a exata dimensão deste valor para o ser humano: “Ma perché elevare a regola giuridica, cioè a norma vincolante e coattiva la solidarietà? Perché si avverte l‟esigenza di sottrarre la solidarietà al mondo dei rapporti non giuridificati, al mondo dell‟operatore spontaneo o amichevole, al mondo del caso e del capriccio? La risposta, al tempo stesso banale e semplice, è presto detta: perché la solidarietà è connotato peculiare delle società moderne e civili, ispirate alla tutela dell‟altro, del diverso, dell‟emarginato, ma è connotato che tende ad essere sommerso, quando non debellato, dall‟individualismo (o peggio, dall‟egoismo) insito nella natura umana. „Homo hominis lupus’ è una verità storica, insuperata e forse insuperabile. Ed è appunto per temperare questa spinta naturale, per conservare la stessa coesione sociale, per elevare la consistenza bruta a convivenza civile, che la solidarietà debe essere non solo riconosciuta ma anche imposta come valore e como principio.” (Istituzioni di diritto privato. 2. ed. Torino: UTET, 1997. p. 137)

privacidade das partes, devendo ser, por isso, diretamente informado pelo quadro axiológico do direito civil-constitucional”238.

A Constituição vigente revela que o Estado brasileiro atual não é um estado abstencionista que aceita o exercício da autonomia privada como pressuposto do bem-estar social. Ao contrário, anota Teresa Negreiros, “no atual quadro constitucional, a atividade econômica, privada por excelência, está condicionada à realização de finalidades que importam à coletividade (e não à soma, repartida, dos indivíduos), como seja a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), que assegure „a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social‟ (art. 170, caput). São os princípios acima identificados que conferem à intervenção do Estado nas relações econômicas, intersubjetivas, um sentido de unificação e de coerência. [...] Trata-se, portanto, de „funcionalizar‟ a autonomia privada a tais direitos, consagrados explícita ou implicitamente na Constituição, e não mais de estabelecer limites procedimentais, apriorísticos, à esfera de atuação privada, como se esta não houvesse sido substancialmente atingida pela nova configuração constitucional do Estado”239.

A Constituição Federal de 1988 “consagrou um Estado Democrático de Direito funcionalizado à efetivação de direitos fundamentais e, entre os objetivos fundamentais da República, priorizou a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I). Em seguida, concretizou a convocação à fraternidade com a meta de erradicação da pobreza e marginalização, além da redução de desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III). Não há dúvida de que a diretriz da solidariedade se converteu em finalidade primordial, além de vetor interpretativo para qualquer ato normativo. Essa atuação promocional, vazada na procura pela justiça distributiva e igualdade substancial, objetiva superar uma visão míope e egoística do direito. O direito de solidariedade se desvincula, então, de uma mera referência a valores éticos transcendentes, adquirindo fundamentação e a legitimidade política nas relações sociais concretas, nas quais se articula uma convivência entre o individual e o coletivo, à procura do bem comum”240.

238 NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé.

Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 190.

239 Ibidem, p. 216-7.

240 ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p.

173. Neste atual contexto de alteridade e reciprocidade nas relações humanas, prossegue o autor, “impõe-se necessária readequação do conceito de direito subjetivo. Tradicionalmente vinculado ao ideário liberal, refletia um poder atribuído ao indivíduo para a satisfação de seu interesse próprio. Em

A percepção do solidarismo entre partes, numa relação contratual, anota Paulo Nalin, “escapa completamente à concepção individual e egoísta, proposta no atual modelo codificado, em que os interesses subjetivos são contrapostos aos sujeitos contratantes. A ideia de uma relação contratual solidária pressupõe, sobretudo, o existir da concorrência, e não da oposição, no que tange aos interesses envolvidos a propósito de um fim comum e de uma indispensável medida de cooperação entre as partes”241.

A boa-fé, assinala Teresa Negreiros, “como resultante necessária de uma ordenação solidária das relações intersubjetivas, patrimoniais ou não, projetada pela Constituição, configura-se, muito mais do que como fator de compressão da autonomia privada, como um parâmetro para a sua funcionalização à dignidade da pessoa humana, em todas as suas dimensões”242.

Teresa Negreiros coloca com precisão os termos da questão constitucional da boa-fé: “A fundamentação constitucional da boa-fé objetiva centra-se na ideia da dignidade da pessoa humana como princípio reorientador das relações patrimoniais. Nossa hipótese é a de que o quadro principiológico previsto constitucionalmente inverte, na medida em que elege a pessoa humana como ápice valorativo do sistema jurídico, a relação de subordinação entre o direito à autonomia privada e o dever de solidariedade contratual, passando o contrato a expressar uma ordem de cooperação em que os deveres se sobrepõem aos direitos; a pessoa solidária, ao indivíduo solitário.”243

uma sociedade solidária, todo e qualquer direito subjetivo é funcionalizado para o atendimento de objetivos maiores do ordenamento. O sistema apenas legitima a satisfação de interesses particulares à medida que o seu exercício seja preenchido por uma valoração socialmente útil” (Ibidem, p. 174-5).

241 Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civil-

constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006. p. 173-4.

242 Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro:

Renovar, 1998. p. 222-3.

243 NEGREIROS, Teresa. Op. cit., p. 252. Almeida Costa procura equacionar os princípios da boa-fé e

da autonomia da vontade, reconhecendo que também a autonomia da vontade se encontra ética e juridicamente fundada. A autonomia privada, afirma o jurista português, “consiste na faculdade concedida aos particulares de autorregulamentação dos seus interesses, representando a boa-fé um dos instrumentos consagrados pela ordem jurídica como limite ou complemento dessa livre conformação das relações obrigacionais. Constitui, assim, uma das, por vezes designadas, cláusulas

sindicantes. Tal conceito, não isento de críticas, abrange as normas que fiscalizam ou limitam a

aplicação de outros preceitos do ordenamento jurídico” (Direito das obrigações. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1994. p. 89).

O enfoque, a partir desta mudança de perspectiva, deve recair sobre os deveres das partes na relação obrigacional e não mais, exclusivamente, sobre os direitos subjetivos244.

A Constituição deixou assentado como princípio geral da ordem econômica assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social (art. 170,

caput), o que expressa, nas palavras de Teresa Negreiros, “o fenômeno da

socialização do direito privado, que, em última instância, impede que as relações intersubjetivas possam ser compreendidas em si mesmas, sem uma contextualização sistemática e, especificamente, constitucional. A dignidade da pessoa humana aparece, neste contexto, como um princípio unificante, razão e fim do Estado, e que, desde suas referências normativas mais remotas, vem ligada à ideia de respeito e de solidariedade entre os homens, assim tornados pessoas”245.

O princípio da boa-fé atua, nesta ordem de ideias, “como o instrumento por excelência do enquadramento constitucional do direito obrigacional, na medida em que a consideração pelos interesses que a parte contrária espera obter de uma dada

244

Como afirma Teresa Negreiros: “Se, antes, o exercício do direito do indivíduo só encontrava limites naquilo que significasse prejuízo a outrem, agora, em uma perspectiva que valora a dignidade da pessoa humana como princípio constitucional diretamente oponível às relações interprivadas, o exercício dos deveres da pessoa (nisto incluído o dever de agir com boa-fé) só encontra limites no sacrifício que tal conduta lhe vier a causar. É neste contexto que se justifica e se reitera a oposição pessoa-indivíduo: aquela existe em sociedade e desenvolve-se através de relações que a boa-fé exige sejam solidárias; este existe em si, configurando-se o interesse social como a mera justaposição (e não interação) de interesses individuais. Em termos concretos, antes a parte contratante podia fazer tudo desde que não prejudicasse a contraparte; agora, deve fazer tudo para colaborar com a outra parte desde que não prejudique a si própria de forma tal que o benefício contraposto desnature a função mesma do vínculo. Trata-se de uma mudança radical, expressa por uma inversão de perspectivas, segundo a qual o enfoque recai sobre os deveres jurídicos, ao invés de, como antes, recair prioritariamente sobre os direitos subjetivos.” (Fundamentos para uma

interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 256)

245 NEGREIROS, Teresa. Op. cit., p. 257. Importa, em acréscimo, lembrar as palavras de Roberto

Senise Lisboa: “A sociedade brasileira é regida por princípios constitucionais claros, firmando-se como princípio fundamental a dignidade da pessoa, valor que a enaltece em detrimento de seu patrimônio. E pouco importa se ela é devedora ou não. A partir do momento em que se privilegia a dignidade humana e não somente o patrimônio pessoal, sobrepõe-se a predileção do ordenamento pela proteção e asseguramento dos direitos da personalidade. [...] o estabelecimento de normas jurídicas deve atender ao bem comum e aos anseios dos seus respectivos destinatários. O direito positivo deve ser constituído de regras a serviço da pessoa, conciliando-se os conflitos intersubjetivos e assegurando-se pelos meios possíveis os direitos que, por sua natureza, são inerentes a toda pessoa. Diante do exposto, devem ser traçados limites ao exercício da exigibilidade do cumprimento da obrigação, observando-se a preservação dos direitos da personalidade. Tal diretriz enseja uma análise menos patrimonialista da relação jurídica, atendendo-se ao critério constitucional da

solidariedade social.” (Manual de Direito Civil. v. 2: direito das obrigações e responsabilidade civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 10)

relação contratual mais não é do que o respeito à dignidade da pessoa humana em atuação no âmbito obrigacional”246.

No art. 4º, III, do Código de Defesa do Consumidor, encontramos indicação segura a respeito da direta ligação da boa-fé com os princípios constitucionais informadores da ordem econômica. Esta conexão legislativamente fixada entre o direito do consumidor e a normativa constitucional “confere à boa-fé uma dimensão qualificada, na medida em que reforça a tese segundo a qual este princípio deve ser funcionalizado como elo de conformação sistemática do direito civil ao direito constitucional”247.

Partilhamos da reflexão de Teresa Negreiros: “A aplicação da boa-fé, especialmente quando reportada à Constituição e, assim qualificada como um princípio geral aplicável a todo o direito obrigacional, sem dúvida alguma nos coloca questões acerca dos limites de uma ética material em face da certeza e da segurança jurídicas. A problemática assim configurada está ligada ao advento do chamado Estado do bem-estar social e à consequente revisão imposta ao princípio da separação dos Poderes – designadamente através da „desneutralização do Judiciário‟. O surgimento de direitos sociais, ou „liberdades positivas‟, forjou um quadro de projeção do sentido do direito para o futuro, para a sua realizabilidade mais do que para a sua consistência pré-constituída. Significa dizer que o respeito aos direitos sociais, ao contrário dos direitos individuais, não é alcançado através de uma simples defesa pelo Judiciário, porque tais direitos implicam, ao contrário das liberdades negativas, uma certa atividade do Estado a qual não pode ser realizada pelo juiz através de uma aplicação subsuntiva e automatizada da lei.”248

O solidarismo social, por sua vez, seguindo as palavras de Claudio Luiz Bueno de Godoy, “vale para quaisquer das relações jurídicas, paritárias ou não, de, justamente, preservar uma substancial igualdade entre as pessoas, garantindo que suas contratações sejam justas e, mais, marcadas pelo padrão e exigência de colaboração entre os contratantes, assim socialmente úteis, enquanto palco de prestígio das escolhas valorativas do sistema. De outra parte, significa também a promoção da justiça distributiva, quando fomenta o acesso a bens e serviços, em

246 NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do princípio da boa-fé.

Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 270.

247 Ibidem, p. 277. 248 Ibidem, p. 263.

especial, embora não só, ao se cuidar de relações profissionais e, aí, intrinsecamente desiguais”249.

A inserção no plano constitucional do princípio da solidariedade “representa o assentamento de um novo parâmetro jurídico, deixando de lado a vontade individual para albergar os interesses da sociedade”250, e sendo um princípio constitucional

dotado de plena aplicabilidade em todas as relações jurídicas entre particulares e/ou com o Estado, a solidariedade, “muito mais do que um mero valor simbólico ou de amor ao próximo, não apenas tutela como também impõe conduta às pessoas de agirem em conformidade com os seus ditames. Isto acarreta a necessidade de o direito assegurar a todos uma existência livre e digna, não apenas no aspecto físico, intelectual, espiritual e material, mas também no negocial e econômico, sem a predominância do interesse meramente individual e sim de inserção no meio social de sua convivência”251.

O princípio da solidariedade, como fundamento constitucional, é destinado a operar em todo ordenamento jurídico. A solidariedade social está coligada com a solidariedade contratual. Pode-se dizer, reproduzindo as palavras de Giovanni Maria Uda, “che la solidarietà contrattuale costituisce una espressione, nell‟ambito della singola fattispecie contrattuale, della solidarietà sociale. Il principio solidaristico, specificandosi nell‟ambito del contratto, non può prescindere dalla particulare funzione propria del medesimo e dal tipo di rapporto socio-economico che il contratto disciplina e del quale costituisce titolo giuridico. La solidarietà, quindi, non opera più tenendo conto di istanze politiche e sociali, ma tenendo conto del raporto socio-

249 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Função social do contrato: os novos princípios contratuais. São

Paulo: Saraiva, 2004. p. 129.

250 NANNI, Giovanni Ettore. O dever de cooperação nas relações obrigacionais à luz do princípio

constitucional da solidariedade. In: ______ (Coord.). Temas relevantes do Direito Civil

contemporâneo: reflexões sobre os cinco anos do Código Civil – Estudos em homenagem ao professor Renan Lotufo. São Paulo: Atlas, 2008. p. 293. Acrescenta o autor: “A ideia de solidariedade social, de acordo com Léon Duguit, decorre do fato de o homem nascer membro de uma coletividade; viver sempre em sociedade e só poder viver em sociedade. Isto é, o homem fez, faz e fará sempre parte de um agrupamento humano. Apesar de sua individualidade, ele tem necessidades, tendências e aspirações próprias; compreende também que estas necessidades não podem satisfazê-las, nem realizar estas tendências e aspirações a não ser pela vida em comum com os outros homens. O homem tem, ao mesmo tempo, consciência de sua individualidade própria e da sua dependência de um grupo humano, por isto está ligado aos outros pelos laços da solidariedade social, que se pode dizer interdependência social.” (Ibidem, p. 295).

economico o, se si vuole, del programma economico che le parti si sono date e degli interessi dedotti nel contratto stesso”252.

Muito oportuna é a observação de Nelson Rosenvald que, embora dirigida ao princípio da boa-fé objetiva, também se aplica aos demais princípios constitucionais que têm incidência na relação obrigacional: “Nossos tribunais são generosos na aplicação do princípio da boa-fé, não se furtando de aplicá-la em suas três funções operativas: interpretativa, criação de deveres jurídicos e limitação de direitos subjetivos. Contudo, é raro observar decisões que lhe concedam o indispensável aporte constitucional, mediante fundamentação relacionada aos princípios da solidariedade e da dignidade da pessoa humana. Não se trata de pequeno descuido, mas de grande déficit na qualidade da prestação jurisdicional, uma vez que a decisão que apenas ventila a boa-fé dentro da ordem privada – com alusão restrita às regras de direito civil – perde o vetor axiológico fundamental que lhe concede legitimidade.”253

252 UDA, Giovanni Maria.

La buona fede nell’esecuzione del contratto. Torino: G. Giappichelli, 2004. p.

83-4. O autor acrescenta: “In definitiva, possiamo dire che la solidarietà contrattuale è idonea, da un lato a esprimere nello specifico ambito del rapporto contrattuale le principali valenze del principio generale di solidarietà sociale, consistenti nel superamento dell”individualismo e nella considerazione dell”interesse altrui; dall”altro lato a utilizzare, a tal fine, dati propri del rapporto contrattuale, cioè gli elmenti economici propri del programma che le parti contraenti si sono dati.” (Ibidem, p. 84)

5 DEVERES ACESSÓRIOS E DE COOPERAÇÃO PRESENTES NA