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2 A RELAÇÃO OBRIGACIONAL E O CONTRATO

2.3 O DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E O CÓDIGO CIVIL DE 2002

É correta a observação de Nelson Rosenvald quando afirma que “o Código Civil de 1916, de feição marcadamente individualista, visualizava a obrigação apenas pelo olhar do credor, pois o devedor era mero coadjuvante. Hoje, percebemos a ideia de solidariedade e responsabilidade até mesmo perante a sociedade, pois ela demanda o cumprimento da obrigação como forma de pacificação do tecido social e incremento do tráfico negocial”114.

Embora fundado em bases liberais do Código anterior, o direito das obrigações recebeu novas diretrizes no Código Civil de 2002115. Para Judith Martins- Costa, a maior novidade do Código atual está na “noção dinâmica da relação obrigacional, considerada como „estrutura de processos‟ e „como totalidade‟, para a qual a noção de adimplemento desempenha um papel fundamental, distinto do de mero modo de extinção das obrigações. O extremado relevo deste papel para a própria noção de obrigação só agora vem reconhecido pelo direito legislado, em razão da nova arquitetura da disciplina das Obrigações, traduzida pela estrutura sistemática adotada pelo novo Código Civil e pelas diretrizes teóricas que as polarizam”116.

A autora se refere à doutrina de Clóvis do Couto e Silva (A obrigação como

processo) e explica: “com a expressão „obrigação como processo‟ tenciona-se

sublinhar o ser dinâmico da obrigação, as várias fases que surgem no

114 Dignidade humana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 71-2.

115 Para entender as mudanças conceituais, que se refletem neste Livro do Direito das Obrigações,

anota Renan Lotufo, “é preciso ter presente que o Código Beviláqua foi elaborado ao tempo de uma economia estável, moeda com valor definido, uma sociedade machista e elitista, relações civis centradas na propriedade imobiliária, economia recém-saída de um regime de escravidão, que, em vez de dirigir-se para a indústria, investia só no comércio litorâneo e na terra para seu fortalecimento e segurança. O projeto do presente Código alterou substancialmente essa matriz, porque teve diante de si outro tipo de sociedade e cultura. Assim, abandona a posição individualista para afirmar que a

liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato (art. 431),

princípio este que inaugura o título relativo aos „Contratos em geral‟, dando a tônica de como a matéria deverá ser tratada pelo intérprete” (Código civil comentado: parte geral (arts. 233 a 420). São Paulo: Saraiva, 2003. v. 2. p. 9).

116 Comentários ao novo Código Civil: volume V, tomo I

– do direito das obrigações, do adimplemento e da extinção das obrigações. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 1. Acrescenta a autora: “Atento à diretriz sistemática que norteou a sua elaboração, e calcando esta diretriz na noção de estrutura, tão cara ao pensamento do Presidente da Comissão Elaboradora do Anteprojeto, Miguel Reale, o Código ora vigorante discerniu entre as fases de criação do vínculo, seu desenvolvimento e seu desaparecimento. Este último restou distinguido entre o modo normal ou habitual (adimplemento) e o patológico (inadimplemento), localizado em Título diverso (IV), também objeto destes Comentários.” (Ibidem, p. 2)

desenvolvimento da relação obrigacional e que entre si se ligam com interdependência, o complexo de atividades necessárias para a satisfação do interesse do credor, o conjunto de atos interligados que se dirigem ao adimplemento, finalidade precípua da própria existência do vínculo, finalidade que é a ele inerente”117.

Ao lado de sua estrutura, “a relação obrigacional deve ser observada sob o aspecto dinâmico e funcional, ou seja, como um processo, um conjunto de atos e atividades que se movimentam em direção a um determinado fim econômico e social. O direito contemporâneo, atento a este aspecto dinâmico da obrigação, reconhece que, mais que garantir a vinculação aos termos expressos de um dado negócio jurídico, mostra-se importante assegurar às partes a obtenção do fim econômico e social, razão e justificativa da relação obrigacional. Por este motivo, exige-se que as partes atuem em conformidade com a boa-fé objetiva, com lealdade e confiança recíprocas, colaborando em prol do objetivo comum. Trata-se da cláusula geral da boa-fé objetiva, que funciona como standard de comportamento para as partes de toda relação obrigacional”118.

Na verdade, explica Fernando Noronha, “existem duas maneiras de encarar qualquer situação jurídica obrigacional da vida real: uma, vendo nela apenas o que chama de relação obrigacional simples, isto é, somente vendo o vínculo entre credor e devedor, que se traduz no poder do primeiro de exigir uma prestação, que o segundo tem o dever de realizar; outra, vendo-a numa perspectiva totalizante ou globalizante, com a pluralidade de direitos, obrigações e outros vínculos jurídicos que nela se interligam. Nesta perspectiva, teremos o que se chama de relação obrigacional complexa, ou sistêmica. Quando se considera a relação obrigacional simples, seleciona-se de uma determinada situação da vida real apenas um direito respeitante a uma prestação exigível (direito subjetivo de crédito), acompanhado do dever correspondente de realizá-la, que está a cargo de outra pessoa. Quando se considera a relação obrigacional complexa, olha-se a situação na sua totalidade,

117 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 396.

118 TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Código Civil comentado: direito das obrigações

considerando direitos, deveres, poderes, ônus e faculdades, digam ou não respeito a prestações exigíveis de uma ou outra parte”119.

Parece seguro, de acordo com Almeida Costa, “que a óptica complexiva e dinâmica, que encara a obrigação ou relação obrigacional como um sistema, organismo ou processo, encadeado e desdobrado em direcção ao adimplemento, à satisfação do interesse do credor, possibilita mais rigorosa compreensão anátomo- fisiológica do instituto e de certos dados da fenomenologia jurídica. Observe-se que existem aqui dois tópicos conexionados, mas cindíveis analiticamente: a integração de múltiplas faculdades e situações num direito ou relação, isto é, o seu entendimento como um organismo ou mecanismo („Gefüge‟) que permite a consecução de fins determinados; e a conformação das relações jurídicas à evolução das circunstâncias, quer dizer, a sua compreensão como processos ou sequências teleologicamente estruturadas. Ambas as ideias se complementam”120.

Em sua obra, Clóvis do Couto e Silva afirma que “o desenvolvimento da relação obrigacional, polarizado pelo adimplemento, está condicionado por certos princípios gerais, ou específicos a cada tipo de obrigação, ou comuns a alguns deles. Entre os gerais, a nosso juízo, devem-se incluir o da autonomia da vontade, o da boa-fé e o da separação entre as fases, ou planos, do nascimento e desenvolvimento do vínculo e a do adimplemento”121.

A relação obrigacional não pode ser vista isoladamente, separando-se o crédito e o dever de prestar. A relação obrigacional é fundamentada por um fato determinado e programada para alcançar uma finalidade. Essa relação jurídica deve ser vista pelo todo, compreendendo uma série de deveres de conduta. Como efeito da apreensão da totalidade concreta da relação obrigacional, afirma Judith Martins- Costa, “percebe-se ser a mesma um vínculo dinâmico – porque passa a englobar, num permanente fluir, todas as vicissitudes, „casos‟ e problemas que a ela possam

119 NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada,

boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 157-8. O autor acrescenta importante observação: “Esta concepção da relação obrigacional complexa, que representa algo mais do que a mera soma dos direitos, deveres, poderes e outras faculdades jurídicas nela englobadas, é noção hoje definitivamente incorporada à ciência jurídica. De nossa parte, apenas observamos que talvez fosse mais correto falar em „sistema‟ do que em „conjunto‟ ou „processo‟; por isso, temos falado em relação obrigacional complexa, sistêmica ou sistema obrigacional.” (Ibidem, p. 159)

120 Direito das obrigações. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1994. p. 57-8.

121 A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2007. p. 23. Entende-se por autonomia da

vontade, de acordo com o autor, “a facultas, a possibilidade, embora não ilimitada, que possuem os particulares para resolver seus conflitos de interesses, criar associações, efetuar o escambo dos bens e dinamizar, enfim, a vida em sociedade. Para a realização desses objetivos, as pessoas vinculam- se, e vinculam-se juridicamente, através de sua vontade” (Ibidem, p. 24).

ser reconduzidas – que se movimenta processualmente, posto criado e desenvolvido à vista de uma finalidade, desenvolvendo-se em fases distintas, a do nascimento do vínculo, do seu desenvolvimento e adimplemento. A concepção da obrigação como processo e como uma realidade concreta põe em causa o paradigma tradicional do direito das obrigações, fundado na valorização jurídica da vontade humana, e inaugura um novo paradigma para o direito obrigacional, não mais baseado exclusivamente no dogma da vontade (individual, privada ou legislativa), mas na

boa-fé objetiva”122.

No Estado liberal, lembra Clóvis do Couto e Silva, “com nítida separação entre Estado e sociedade, assumiu extraordinário relevo a autonomia dos particulares, sendo-lhes deferida quase totalmente a formação da ordem privada”. No Estado moderno, observa o autor, não há separação tão rigorosa entre Estado e sociedade, “pois ambas as esferas, a pública e a privada, se conjugam, se coordenam, „se interpenetram e se completam‟. É evidente, em nossos dias, que por autonomia da vontade não se designa o poder de criar efeitos jurídicos, baseado somente na vontade de uma ou mais partes, fora de toda habilitação legislativa. Sobre a faculdade dispositiva das partes, existe o ordenamento jurídico, o qual, mediante a incidência da norma, confere efeitos aos atos dos particulares”123.

Por isso, afirma o autor, que “a autonomia da vontade e a teoria das fontes das obrigações, que com ela se vincula, se encontram em período de transformação e de reelaboração dogmática. De um lado, a intervenção estatal, os atos de planificação e os formativos de direitos privados e, de outro, a tipificação social, e sobretudo os atos jurídicos de caráter existencial, forçaram a revisão dos conceitos”124.

No entanto, “a indiferença aos princípios consagrados na Constituição de 1988 – notadamente ao princípio da dignidade da pessoa humana e aos valores sociais da livre iniciativa, elevados a princípios fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro (CF, art. 1º, III e IV) – tem contribuído para a perpetuação de uma leitura limitada à estrutura do vínculo obrigacional, meramente estática, que se atém à consideração e à categorização dos aspectos exteriores do liame entre credor e devedor. Deixa-se, assim, de atentar para o aspecto dinâmico e funcional de cada

122 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 394.

123 A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2007. p. 25. 124 SILVA, Clóvis do Couto e. Op. cit., p. 31.

obrigação, ou seja, para a causa, para o título, para o equilíbrio substancial entre os sujeitos envolvidos, para a espécie de interesses que visa concretamente realizar, e ainda para os múltiplos centros de interesses afetados pelo desenvolvimento da relação obrigacional. O Código Civil de 2002 perdeu a oportunidade de tratar do direito das obrigações sob esta perspectiva contemporânea, comprometida com a realização dos valores constitucionais nas relações jurídicas privadas, e acabou repetindo a disciplina obrigacional do Código Civil de 1916, com alterações pontuais. A indiferença aos valores constitucionais e às tendências jurídicas mais recentes se explica, em parte, pela própria desatualidade do projeto original, elaborado em 1975, mais de uma década antes, portanto, da atual Constituição da República. Além disto, a própria comissão redatora do anteprojeto elegeu, expressamente, como premissa metodológica, manter, no que fosse possível, a estrutura e a linguagem do Código Civil anterior e não dar guarida no Código senão aos institutos e soluções normativas já dotadas de certa sedimentação e estabilidade”125.

Isso não significa “que o intérprete deva deixar de atribuir à disciplina das obrigações um tratamento que supere o enfoque estático que lhe reserva o Código Civil. A atenção aos princípios e valores consagrados no ordenamento constitucional, especialmente no sentido de dar a máxima eficácia social aos dispositivos do Código, permite observar o direito das obrigações sob perspectiva dinâmica e funcional, que leve em conta os centros de interesses merecedores de tutela na concreta relação jurídica que se apresentam”126.

Cabe à doutrina e à jurisprudência dar os novos contornos da relação obrigacional a partir da observação de que ela representa um processo, um vínculo dinâmico, com uma finalidade a cumprir à luz dos valores definidos na Constituição, rompendo com a clássica concepção liberal.

125 TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Código Civil comentado: direito das obrigações

artigos 233 a 420. In: AZEVEDO, Álvaro Villaça (Coord.). São Paulo: Atlas, 2008. v. IV. p. 2.