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3 O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA E AS CLÁUSULAS GERAIS

3.4 A OPERABILIDADE DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA

3.4.2 A boa-fé e a segurança jurídica

A formulação de conteúdo aberto da cláusula geral da boa-fé objetiva, de outra parte, não oferece risco à segurança jurídica em razão do alto grau de concreção que confere ao juiz. A esta preocupação presente na doutrina mais refratária à mudança de paradigmas, presa que está fortemente às ideias liberais que estiveram presentes em toda formação jurídica dos operadores do Direito do último século, tem lugar a afirmação do jurista uruguaio Gustavo Ordoqui Castilla: “En realidad, más que inseguridad la buena fe lo que impone es seguridad, pues en su nombre nadie há denunciado abusos pero sí invocando su existência se seguieron pautas de conducta debida que impusieron orden, seguridad y justicia. Su aplicación se deduce del orden jurídico y de la normativa vigente. En su vigencia se fundan figuras básicas como del abuso del derecho, el fraude a la ley, que permitem seguridad y justicia. No se trata de priorizar la justicia a la seguridad sino de utilizar ambos valores de forma que puedan coexistir en el bien común. No se quiere una

217 MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa-fé. In:

TEPEDINO, Gustavo (Org.). Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. Anais do congresso internacional de Direito Civil-constitucional da cidade do Rio de

seguridad certeza formal, alejada de justicia y la realidad. No se quiere una justicia contra legalidad ello traería la anarquía o el caos. Se quiere la certeza y seguridad que logra la resolución justa dentro del orden jurídico. La seguridad es importante pero no es la única meta del derecho, ni siquiera debe estimarse como la primera. Indudablemente tiene por encima a la justicia. Aunque normalmente son valores que complementan, en ocasiones la garantía de seguridad absoluta podría relegar singularmente a la justicia si se hace primar el formalismo como seguridad a ultranza. […] La seguridad jurídica no se logra fosilizando o petrificando la ley.”218

A segurança jurídica não pode ser vista hoje como decorrência da aplicação cega do Código Civil, que considera a verificação formal de uma vontade livremente emitida. Ela é material, como afirma Paulo Nalin, “concreta e histórica, investigativa das condutas e resultados objetivos do contrato, escapando da concepção, superada, de que a segurança estaria no adimplemento do contrato, pelo devedor. A segurança desejada pelo titular de uma situação subjetiva é a de que poderá cumprir sua parcela da avença, seja ela instantânea ou de execução diferida, sem que, para tanto, se espante com sobressaltos econômicos, cláusulas abusivas e comportamentos adversos à boa-fé. O enredo constitucional da segurança não está mais no fim do contrato (adimplemento), posta, exclusivamente, em favor do credor (titular ativo da situação). Ela está em todos os momentos da complexidade obrigacional em vista de ambos os titulares. Tratar, pois, atualmente, de segurança jurídica contratual significa encarar o contrato como um todo jurídico, nos plúrimos desdobramentos objetivos e subjetivos, focando, especialmente, seu contínuo equilíbrio. A segurança jurídica não está mais no paradigma moderno da vontade, mas no pós-moderno da boa-fé: contrato seguro é contrato conforme a boa-fé”219.

O antigo conceito de subsunção, como operação mecânica e silogística, está superado. O juiz não pode mais se ocultar, adverte Jorge Tosta, “por detrás da frágil defesa da concepção do Direito como norma preestabelecida, clara e objetiva, na qual pode basear sua decisão de forma „neutra‟. É envolvida a sua responsabilidade

218 CASTILLA, Gustavo Ordoqui. Buena fe contractual. Montevideo: Del Foro, 2005. p. 56-7. Completa

o autor em nota na qual afirma: “El temor de algunos a las cláusulas abiertas o a los estándares jurídicos por lo flexibles y variables, es infundado. En realidad, a lo que se tiene temor es a flexibilizar o ampliar el poder judicial. Esto es un error, pues en todos estos casos cuando el juez aplica el principio la buena fe no hace más que actuar conforme a derecho, lo que jamás puede ser visto como algo que afecte a la seguridad jurídica. [...] Más que aplicar la ley los jueces deben realizar sus mejores esfuerzos en tratar de revelar el derecho vigente al caso concreto.” (Ibidem, p. 56 e 58)

219 Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civil-

pessoal, moral e política, tanto quanto jurídica, sempre que haja no Direito abertura para escolha diversa”220.

O juiz deve buscar a solução do caso concreto nas categorias de direito privado e nos valores definidos na Constituição, procurando harmonizar as fontes por um trabalho constante de natureza axiológica. Por isso, afirma Gustavo Tepedino, “a segurança jurídica há de se estabelecer a partir deste compromisso axiológico que, ao fim e ao cabo, prestigia mais a segurança do que a velha subsunção, já que esta, a rigor, acaba por esconder opções valorativas individuais do intérprete ou do legislador”. Apoiado em Pietro Perlingieri, Tepedino assevera que “o magistrado, ao solucionar o caso concreto, traduz a totalidade do ordenamento, complexo e um unitário. Cada decisão revela, desta maneira, o ordenamento no caso concreto, preservando-se a segurança jurídica. A solução para cada controvérsia não pode mais ser encontrada levando em conta simplesmente o artigo de lei que parece contê-la e resolvê-la, mas, antes, à luz do inteiro ordenamento jurídico, e, em particular, de seus princípios fundamentais, considerados como opções de base que o caracterizam”221.

Para vencer a desconfiança nas cláusulas gerais, deve-se pensar que, se não for aceito esse caminho, não há outro a seguir, a não ser a edição de leis cada vez mais analíticas e regulamentaristas, que devem ser modificadas permanentemente para dar resposta a exigências sempre modificáveis, o que sabemos não é possível222.

De qualquer forma, “entre um sistema fechado com o risco de se tornar obsoleto com o passar do tempo, dada a inevitável variabilidade semântica de certos conceitos, mormente numa sociedade em constante evolução, e um sistema aberto com o risco de instabilidade e imprevisibilidade das decisões judiciais, em face das divergências existentes no processo de integração/interpretação dos termos vagos, é preferível o segundo”223.

Essa judicialização do direito privado, que ocorreu especialmente a partir do Código Civil de 2002 e entregou ao juiz um espaço amplo para concretização da

220 TOSTA, Jorge. Manual de interpretação do Código Civil: as normas de tipo aberto e os poderes do

juiz. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 4.

221 Normas constitucionais e Direito Civil na construção unitária do ordenamento. Temas de Direito

Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. t. III. p. 39-40. Nesse sentido, ainda do autor: O ocaso da

subsunção. Op. cit., p. 443-5.

222 Kelmemajer de Carlucci apud CASTILLA, Gustavo Ordoqui. Buena fe contractual. Montevideo: Del

Foro, 2005. p. 60.

norma, não põe em risco a uniformidade do sistema, porque o juiz “não é inteiramente livre para solucionar os conflitos que se lhe apresentam. Embora não seja a boca que pronuncia as palavras da lei, o juiz, ao colmatar um „conceito vago‟ ou dar concretude a uma norma que lhe permite agir segundo um juízo de oportunidade, está pautado por regras, valores, standars e/ou princípios gerais de direito cuja observância se impõe pela natural e imprescindível preservação do Estado de Direito”224.

A insegurança está ligada muito mais, parece-nos, ao domínio e operação de novos instrumentos do direito privado do que propriamente à ideia de instabilidade nas decisões. A insegurança, portanto, está radicada essencialmente nos operadores, que encontram dificuldade para vencer uma cultura que, influenciada fortemente pelos conceitos do Liberalismo, desconfia do poder conferido aos juízes para criar soluções adequadas às relações obrigacionais e atribui comodamente a responsabilidade pelas decisões ao legislador. É necessário, portanto, uma mudança de conceitos e valores para que a velha concepção do direito privado não anule os benefícios de um sistema mais aberto com interpretações restritivas e conservadoras.

224 TOSTA, Jorge. Manual de interpretação do Código Civil: as normas de tipo aberto e os poderes do