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Boca de Ouro foi escrita por Nelson Rodrigues em 1959. Anos

mais tarde, ela foi classificada, pelo crítico Sábato Magaldi (sob aprovação do próprio dramaturgo), como uma de suas tragé- dias cariocas. Segundo Medeiros (2010), os fatores principais

que definem esta categoria são as referências (sub)urbanas cariocas, a linguagem informal e as gírias comuns da época. Nestas tragédias cariocas, a cidade do Rio de Janeiro marca forte- mente a narrativa, tornando-se, ela também, uma personagem. Em Boca de Ouro, o local de destaque na peça é o bairro da Ma- dureira, que “é o lugar em que o protagonista [o bicheiro Boca de Ouro] se criou e desenvolveu seu poder dominador. É igualmen- te o espaço de onde os fatos são narrados e o meio de D. Guigui, que narra os acontecimentos.” (MEDEIROS, 2010, p. 157) [grifo nosso] Nelson gostava de situar suas peças com personagens de classe média e no subúrbio pois acreditava que isso doava um certo tom poético às histórias. “É como se essas tragédias, que Nelson considerava inerentes à condição humana e universais, encontrassem seu meio expressivo mais significativo quando situadas no subúrbio [...]”. (FACINA, 2004, p. 172)

Apesar de ser considerada uma tragédia, Boca de Ouro contém pitadas de humor e elementos cômicos. Segundo Henrique Oscar (Diário de Notícias, 1961, apud MEDEIROS, 2010, p. 50), apesar de ser definido como uma tragédia, “o espetáculo ainda mais que a leitura demonstra que não se trata de um texto trá- gico mas altamente cômico, muito mais de uma farsa à maneira

de ‘A falecida’ que de uma pretensa tragédia, qualquer que seja o sentido atribuído à expressão [...]”.

Isso se dá porque, de acordo com Medeiros (2010), Lins afirma que Nelson “explora a tragédia num tom de deboche”, o que ex- plicaria porque os jornalistas viam suas peças como “tragédias malsucedidas”. (p. 56)

A trama consiste em um repórter, Caveirinha, que, diante da notícia do assassinato do famoso bicheiro Boca de Ouro, visita uma de suas ex-amantes, na esperança de obter um furo de notícia. Nos três atos que seguem, Dona Guiomar (ou Guigui, como é chamada) – que agora é casada e mora com seu mari- do, Agenor, e seus filhos – narra um acontecimento que se deu entre o Drácula de Madureira (como Boca de Ouro era chama- do) e o casal, Leleco e Celeste.

A questão é que, a cada nova narração, a história se altera. Isso se dá porque, na primeira vez que conta a história, D. Guigui não sabia da morte do bicheiro. A segunda vez, ao ser informa- da de sua morte, o retrata de forma muito mais bondosa que outrora. Já a terceira vez, conta uma versão que poderia ser considerada mais verdadeira que as outras duas, porém não se pode saber com certeza. Percebe-se, então, que Guigui não é uma narradora confiável. “Isto porque as narrativas de dona Guigui estão fortemente ligadas às suas impressões, obedecen- do, no decorrer da entrevista, à instabilidade de seus humores e de suas emoções”. (BRAZ, 2004, p. 19)

Xavier (2003) afirma sobre as versões contadas por D. Guigui:

No plano imediato, no primeiro dos flashbacks vale o des- peito pelo Boca de Ouro (afinal, foi ‘chutada’ por ele). Depois, vale a dor da notícia da morte do herói e o ressentimento dirigido ao marido Agenor (feliz com a novidade). Na última versão, vale o clima de reconciliação com o marido (manipu- lada pelo jornalista esperto). Assim, Boca é vilão na primeira versão, depois herói virtuoso e, finalmente, um assassino de mulheres. E a imagem do casal também varia: uma forma de, simbolicamente, Guiomar falar das disposições mais fundas dela própria diante da situação vivida no triângulo com Agenor e o bicheiro [...] (XAVIER, 2003, p. 241) E ainda aprofunda:

Na primeira versão, há o desejo de Boca de Ouro, a inocên- cia de Celeste e a esperteza de perna curta do marido, que sabe desse desejo. [...] No segundo caso, Guigui quer redi- mir o ex-amante e constrói a inocência do Boca, acentuando a falta de caráter do casal. [...] Na terceira versão, não há resíduos de inocência ou de emoções desarmadas; valem o mal que resulta do cálculo, o ritual perverso e a armadilha. [...] Nessa terceira versão, a dimensão gótica do Boca ganha lugar e, de navalha na mão, fala sobre seu poder divino de vida e de morte. (p. 241-4)

Ao final da peça, ainda não se pode definir quem era, verdadei- ramente, Boca de Ouro. Os únicos momentos em que o vemos sem intermédio de outra personagem são na primeira cena – na qual o vemos num consultório de dentista e pede para que seus dentes sejam extraídos e substituídos por uma dentadura

de ouro, o que explica a origem de seu pseudônimo. Em todos os outros momentos, Boca aparece como uma “figura refletida no espelho dos outros, uma personagem em segundo grau que, por isso mesmo, diz tanto sobre seu contexto quanto sobre si mesma [...]” (XAVIER, 2003, p. 231).

Alguns fatos sobre Boca de Ouro, que são de conhecimento público, são sua emblemática dentadura de ouro, seu desejo de ser enterrado em um caixão de ouro – que já estava sendo feito – e sua procedência humilde, já que foi abandonado por sua mãe quando nasceu, deixado em uma pia de gafieira. As condições infames de seu nascimento, fazem com que o bichei- ro se torne obcecado pela ideia de um enterro digno de reis. Xavier (2003) afirma que “os traços decisivos da personalidade do protagonista estão associados aos dados adversos de sua origem social, acrescidos a particularidade humilhante do Boca, nascido num banheiro de gafieira” (p. 231).

Nas narrações de D. Guigui, percebe-se que Boca se deslumbra com a hipótese de se equiparar a um deus asteca, como apontou uma das grã-finas, e se considera sobrehumano, alguém que não pode ser morto, pelo menos não até alcançar seu objetivo.

“BOCA DE OURO (abrindo seu riso) – Batuta, você pensa que vai me matar? Comigo você tomou bonde errado! Você não sabe, ninguém sabe, mas olha: eu estou fazendo um caixão de ouro. Ouro, rapaz! Enquanto o caixão não ficar pronto, ninguém me mata, duvido!” (RODRIGUES, 2004, p. 234) Em outro momento, conversando com Leleco, ele afirma:

LELECO – Pronto?

BOCA DE OURO – O caixão de ouro? Ainda não. Não há pres- sa. Pra que pressa? (ri, alvarmente)

LELECO – Você pode levar um tiro! [...] Ou facada! BOCA DE OURO (feliz da vida) – Batuta, eu tenho o corpo fechado! (RODRIGUES, 2004, p. 246-7)

Embriaga-se tanto com a ideia de poder que esta acaba por se tornar sua ruína. As condições de sua morte tornam sua situ- ação ainda mais ordinária, pois perdeu seu símbolo de poder, seus dentes, e não se consagrou como objetivava após sua morte. “Sua tragédia estará cristalizada, acima de tudo, nessas duas perdas no momento da morte inesperada, que lhe sonega a ocasião da pompa: dentes de ouro arrancados, caixão tosco de madeira.” (XAVIER, 2003, p. 232) Ele, que tanto queria se distanciar de sua origem humilde, morre “fraco e pobre como o mais fraco e pobre dos seres” (PELLEGRINO, 2004, p. 284) Agora voltemos o foco para as histórias contadas por D. Guigui. O ocorrido que ela relata não teve repercussão na mídia, o que torna ainda mais difícil saber o que é verdade e o que não é. Na primeira versão relatada, Celeste e Leleco são um casal apai- xonado que passa por dificuldades financeiras, e, com a recente demissão de Leleco e a morte da mãe de Celeste, resolvem pedir dinheiro emprestado ao bicheiro. Nesta versão, Boca de Ouro é um homem monstruoso e excessivamente agressivo, que tem um interesse por Celeste e vê na situação uma oportunidade de tirar proveito. Boca se dispõe a emprestar cem mil cruzeiros, com a condição que seja Celeste que vá buscar o dinheiro, sozinha.

Quando estão apenas os dois, Boca de Ouro tenta se aprovei- tar de Celeste, a situação se desenvolve até um “embate” entre Leleco e o bicheiro. Ao fim, Boca mata o rapaz e estupra Celeste. A única prova da veracidade do relato é o fato que o corpo de Leleco foi encontrado nas matas da Tijuca posteriormente. Na segunda história, já consciente da morte de Boca de Ouro, D. Guigui o apresenta como um homem com “pinta de lorde” e marcado pelo abandono que sofreu na infância e obcecado pela ideia de descobrir mais sobre sua mãe. Já Celeste e Leleco são um casal em crise. Leleco, quando descobre a infidelidade de Celeste, joga em sua cara a notícia da morte de sua mãe e arquiteta um plano para Celeste seduzir Boca de Ouro e to- mar-lhe dinheiro, sob ameaças de matá-la, caso ela não vá. Em oposição ao relato anterior, no qual Celeste se via aterrorizada na presença do bicheiro, desta vez sua desenvoltura era quase de flerte. Outra diferença entre o primeiro e o segundo relato é a presença das grã-finas, que fazem uma visita a Boca e, du- rante a cena, ficam maravilhadas com ele, como se estivessem diante de um animal exótico no zoológico. Diante das pergun- tas impertinentes das mulheres da alta sociedade, o bicheiro decide fazer uma competição: a mulher com os melhores seios ganharia um colar de pérolas. Celeste sai ganhadora e as grã-fi- nas, humilhadas, são enxotadas da casa de Boca. Celeste, eufó- rica por sua vitória, começa a conjecturar abandonar o marido e ficar com Boca de Ouro, até que Leleco aparece na casa do bicheiro com o objetivo de buscá-la. O casal começa a discutir, pois Celeste não quer ir embora com o marido, e Leleco aponta um revólver para Boca e ameaça matá-lo. Celeste, aproveitan-

do-se de sua distração, apunhala o marido pelas costas. Na última versão do relato, após uma briga e reconciliação de D. Guigui e seu marido Agenor, Celeste e Leleco são apresenta- dos no meio de uma discussão, Leleco ameaça Celeste com um revólver e lhe conta que a viu com um amante. Celeste revela que seu amante é ninguém menos que Boca de Ouro. Diante da hipótese de morrer, Celeste convence Leleco que ela pode lhe dar dinheiro do bicheiro em troca de sua vida. Sai, então, ao encontro do Boca de Ouro e lhe conta sobre a descoberta do marido. Quando Leleco chega na casa do bicheiro, Celeste se esconde. A conversa entre os dois é marcada pela casuali- dade do bicheiro e a tensão do marido, até que Leleco aponta o revólver para Boca e o ameaça em troca de dinheiro. Celeste, então, aparece e, diante da súbita distração de Leleco, Boca de Ouro pega seu revólver, que estava em seu bolso traseiro da calça, e o acerta com uma coronhada na cabeça. Juntos, Celeste e Boca matam Leleco e escondem seu corpo atrás de um móvel. Logo após, uma das grã-finas do relato anterior – agora com seu nome revelado, Maria Luísa – faz uma visita ao bicheiro. Nessa visita, descobre-se que Celeste e Maria Luísa estudaram juntas quando jovens, e Celeste ainda guarda um grande rancor das épocas de colégio. A grã-fina, após o colégio, converteu-se a uma religião e estava para entrar em uma Ordem religiosa, na qual as mulheres raspam a cabeça, fato repetido várias vezes por Boca. O contato entre o bicheiro e a grã-fina se dá porque ela quer batizá-lo e, para isso, ele mente e diz que nunca matou ninguém. Celeste, em sua fúria com Maria Luísa, revela o corpo de Leleco e diz que Boca o matou. Ao ser desmascarado, Boca

ameaça a grã-fina, mas finda por matar Celeste com um golpe de navalha, e se deita com Maria Luísa.

O choque final vem ao término do último ato quando, ao chegar ao Instituto Médico Legal, o repórter Caveirinha descobre que o responsável pelo crime passional (vinte e nove punhaladas e todos os dentes do bicheiro arrancados) foi Maria Luísa. O “bandido famigerado, terror de todos os outros contraventores da cidade e nome que põe em estado de alerta o mundo [...] vai cair vítima de sua mais brilhante conquista – a mulher de alta classe”. (LINS, 1979, p. 123) Essa descoberta abre um leque de possíveis análises para os relatos de D. Guigui, inclusive a possi- bilidade de nenhum deles ser verdade.

A morte do bicheiro atrai multidões para ver seu cadáver. No- ta-se, então, que Boca de Ouro realmente se consagrou como uma figura do imaginário suburbano carioca, mesmo diante de sua evidente ruína. Ele é uma personalidade: admirado, temido e respeitado por todos.

Figura do manda-chuva autoritário e paternalista, o Boca constrói seu carisma apoiado na oferta de gratificação material (o dinheiro ganho no jogo, ou o bem conseguido no favor) ou imaginária (o teatro composto por sua figura, e em torno dela, gratifica um contingente de ‘pequenos homens’ a destilar suas vidas amargas num cotidiano sem encanto). Seu nome significa dinheiro e sensação, paixões e interesses de alto risco. A crônica da página policial e a atenção social a qualquer dos seus movimentos – afinal, é uma ‘personalida- de’ – acabam por oferecer-lhe um espaço de consagração no

qual mesmo a condenação o promove e representa a vitória da periferia no espaço da mídia. Ele é, portanto, o herói que se teme mas que se admira, e do qual se espera favores, figura de uma intimidade que muda o sentido de sua violên- cia, pois tudo nele é familiar. (XAVIER, 2003, p. 232-3) É perceptível, por fim, que tudo o que é dito sobre o persona- gem Boca de Ouro, revela-nos mais sobre a natureza daquele que fala, do que do infame bicheiro. Pellegrino (2004) afirma que “esta é a linha psicológica pela qual a peça ganha unidade e profundidade, uma vez que os personagens [...], ao falar de ‘Boca de Ouro’, falam também de si e, ao criar a sua imagem mítica, se revelam nos seus sonhos de poder e despotismo” (p. 284).

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