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ELEMENTOS RELEVANTES EM SENHORA DOS AFOGADOS

COMPLEXOS E CONFLITOS

Outro elemento da trama, que, embora seja um elemento estilístico comum da tragédia, também se faz essencial para o desenrolar da história, são os complexos e conflitos que exis- tem entre as personagens. Para Xavier (2003), um dos pontos de interesse das peças de Nelson Rodrigues “são as persona- gens que a ordem patriarcal exige sejam tuteladas: as mulheres

que, de peça a peça, vêm ao centro para questionar, transgre- dir, tornando-se fortes agentes de vingança (mesmo que à sua própria revelia), numa trama que só confirma a fragilidade do pólo masculino [...]”. (p. 211)

E, realmente, em Senhora dos afogados isso fica bem claro. Misael, que, no início da peça, era visto como uma grande figura, mostra- -se, no fim, fraco e medroso. Medeiros (2010) põe que “aparen- temente, ele [Misael] é descrito como o herói, de força superior àqueles que estão à sua volta, inclusive à do público: ele é ‘o maior dos Drummond’. No entanto, essa força nada mais é que figurati- va, aparente, pois, com o desenrolar da peça, ele perde toda sua força e o que se apresenta perante o público é um homem fragili- zado que não resistiu às pressões externas.” (p. 79) [grifo nosso] Facina (2004) aponta que, na antropologia rodriguiana, há uma distinção entre as naturezas masculina e feminina. Enquanto os homens “são incapazes [...] de romper radicalmente com as fronteiras das regras sociais” e carregam em si a “a memó- ria dos padrões morais transgredidos e a culpa decorrente de tal transgressão” (FACINA, 2004, p. 266), as mulheres “são mais amorais e têm menos culpa” (FACINA, 2004, p. 269). E, realmente, as ações inescrupulosas de Moema que definem o desenvolvimento da trama, enquanto os elementos masculinos (talvez apenas com a exceção do Noivo) apenas testemunham as consequências dos atos. Martuscello (1993) está correto em afirmar que “em Senhora dos afogados, as mulheres é que são ativas e poderosas, e Moema é a pior delas” (p. 113).

Em um certo ponto da peça, “Misael já sucumbiu às pressões, assumiu sua derrocada e quem passa a dominar a ação é Mo- ema. [...] a filha do casal centraliza todas as atenções, disputas e ódios internos da família. [...] É por meio da tensão gerada pelo conflito entre Moema e as outras personagens que, pouco a pouco, vão acontecendo todos os atos trágicos da peça, com- pondo um sentimento de tragicidade completo e inexorável à família.” (MEDEIROS, 2010, p. 81)

São as manipulações de Moema, “o mais cruel dos personagens femininos de Nelson” (MARTUSCELLO, 1993, p. 113), que levam as outras personagens a realizar certas ações, como marionetes seguindo vontades alheias. Isso vai desde manter um noivado vazio (para fazer com que a mãe se apaixonasse pelo seu pro- metido), até convencer Paulo e Misael a matarem em nome da boa imagem da família Drummond.

MISAEL – Tu és culpada de tudo… [...] De tudo… Culpada de tudo… Eu não teria feito o que fiz… Teria perdoado sua mãe… Os velhos perdoam… Tu me disseste para castigá-la aqui. (indica as próprias mãos) Eu te obedeci, Moema, fiz o que mandaste, e sem ódio, com um ódio que não era meu, era teu… [...] (RODRIGUES, 198-, p. 329)

Nota-se, em Moema, semelhanças com Electra, que, na mito- logia grega, para vingar o assassinato de seu pai, induziu seu irmão a matar sua mãe, que arquitetou o assassinato do mari- do. Electra, que tinha sentimentos amorosos por seu pai, fez de tudo para punir os responsáveis por sua morte, manipulando e

causando a derrocada da família. “Essa característica de Electra, ardil, encontra-se em Moema que constrói seu plano de ser a única filha de Misael, a única mulher e acaba, por fim, sendo a única Drummond. Moema, tal qual Electra é ardilosa, persuasi- va”. (QUADROS, MOUSQUER, 20--, p.1301)

“MOEMA (histérica) – Se tu soubesses, se pudesses adivinhar o amor que eu sinto. O amor que levo comigo… [...] O sen- timento de tua mãe não é nada – nada – diante do meu…” (RODRIGUES, 198-, p. 310)

As coisas que Moema faz, em nome do amor que sente pelo pai, são também o que sela sua desgraça, “ela carrega em si a genealogia da morte em seu sangue, uma verdadeira epifania da desgraça no núcleo familiar de Senhora de [sic] afogados”. (SILVA, 2016, p. 33) [grifo nosso]

Além de Electra, também vê-se uma referência ao personagem Édipo, em duas figuras da peça: Paulo e o Noivo. Paulo, mais brandamente que Moema em relação a Misael, nutre sentimen- tos por D. Eduarda, a considera pura acima de todas as outras.

“PAULO – Minha mãe não se entregaria a outro homem… É tão pura, tão sem culpa, que, às vezes, eu imagino – se ela tirasse todas as roupas, ainda assim não estaria nua, não conseguiria ficar nua! As outras mulheres, sim; não minha mãe!...” (RODRIGUES, 198-, p. 310)

Seu amor por sua mãe foi, também, uma das razões de sua morte. Matou-se por acreditar que sua mãe o odiava, em um

momento de fúria, ele comenta que “podia ter matado o marido e não o amante [...] Tão culpado o marido quanto o amante; os dois a possuíram!” (RODRIGUES, 198-, p. 324)

O complexo de Édipo fica ainda mais perceptível no Noivo. Sua paixão por sua mãe o leva a arquitetar um plano de vingança contra aquele que a assassinou: Misael, seu próprio pai. Sem- pre que fala de sua mãe, comenta sobre sua beleza e a exalta, pondo-a acima de todas as outras mulheres. Traz seu nome ta- tuado por todo o corpo, e sente ciúmes ao saber que o espírito de sua mãe, ao retornar da ilha, buscou Misael, e não ele. Seu complexo se demonstra também em sua vingança, quando foge com D. Eduarda, a figura materna da peça e, supostamente, sua madrasta (já que ele é, tecnicamente, um Drummond).

MISAEL – ...por que tu ficaste noivo de minha filha? Noivo de tua irmã?

NOIVO (febril) – Eu queria entrar nesta casa, para pertencer à tua família, para que uma Drummond me pertencesse… MISAEL – Você não pode ser noivo de minha filha. NOIVO (fora de si) – Não posso ser noivo de tua filha, mas posso ser amante de tua mulher!

[...]

NOIVO [para D. Eduarda] – Há anos que eu esperava por este momento… Deixei a Marinha para isto… E juro, que des- de o primeiro momento, pensei em ti, não em minha irmã, mas em ti… E se beijava as mãos de minha irmã, é porque eram iguais às tuas… (RODRIGUES, 198-, p. 298-9)

O Noivo deixa claro que, tudo que está fazendo, é parte de seu plano contra seu pai. Tanto que D. Eduarda, em meio a sua paixão, comenta “ainda é tua mãe, e não eu… Não é por mim, é por tua mãe…”. (RODRIGUES, 198-, p. 300)

Ao subir ao quarto com D. Eduarda, já no cais das prostitutas, o Noivo faz questão que as rezas e cantos fúnebres sejam entoa- das para que ele possa escutar. Sua tragédia se dá quando, ao se relacionar com D. Eduarda, não tenha pensado em sua mãe, o que, para ele, é considerado uma traição à memória materna. Além dos complexos que delineiam as personagens, os confli- tos são outro fator característico das tragédias gregas, e que movimentam a trama da peça:

Entre os membros dos Drummond, há sempre algum tipo de enfrentamento: Moema e D. Eduarda, a Avó e D. Eduarda, Paulo e Misael, Misael e D. Eduarda. [...] Mãe e filha são, ao longo de toda a peça, antagonistas, seja porque Moema quer ter Misael somente para si, seja porque D. Eduarda sente forte atração pelo noivo da filha. Estão [...] no limiar de um conflito – que não ocorre, pois a mãe, em sua habitual posi- ção submissa, recua em sua opinião. (MEDEIROS, 2010, p. 80) Os conflitos familiares e manipulações, especialmente por parte de Moema, se desenrolam para, no fim, se redefinirem como sua própria punição, o destino trágico que a última Drummond construiu para ela mesma.

AS MÃOS

O último elemento a ser analisado são as mãos, e tudo o que elas representam no contexto da peça. Logo no início da peça, Nelson Rodrigues define que D. Eduarda e Moema não são particularmente parecidas, mas seus movimentos de mão coin- cidem muito, o que exaspera as duas. Ao longo da história, a semelhança das mãos é apontada por diferentes personagens, e isso incomoda, especialmente, Moema, que não gosta de ser comparada à mãe. As mãos são a prova da relação entre mãe e filha, apesar de ambas tentarem ignorar tal conexão.

As mãos, assim como os outros elementos analisados, apresen- tam uma dualidade que é característica da peça. Elas suscitam amor e ódio nas duas mulheres, assim como são capazes de atos odiosos e afetivos. “As mãos de Moema que afagam e aca- riciam seu pai são também as mãos que afogam e matam suas irmãs”. (SILVA, 2016, p. 28) [grifo do autor]

Enquanto, para D. Eduarda, a mutilação de suas mãos significa ter seu ingresso na ilha das prostitutas mortas rejeitado, Moe- ma viu, no ato, sua libertação.

MOEMA – Tens raiva de mim por isso… Porque eu tenho as minhas e perdestes as tuas… Eu posso acariciar qualquer homem… E tu, não… Não poderias nunca… Por que voltaste da ilha, senão por isso?... As mulheres nuas te mandaram embora… Não conseguirias afagá-las… Ou voltarias com as mãos ou não te deixariam entrar… [...]

MOEMA – Deixei de ser tua filha… A única coisa que nos unia

eram nossas mãos… Tu perdeste as tuas… E eu me libertei de ti…

(Breve e delirante cena de narcisismo; Moema enamora-se das

próprias mãos; beija-as. O rosto de D. Eduarda exprime o deses- pero mais profundo.) (RODRIGUES, 198-, p. 329-30)

No final da peça, Moema é amaldiçoada: nunca mais verá sua própria imagem. E, de fato, ao postar-se em frente a um espe- lho, ela se depara com a imagem de sua mãe. Quando, por fim, consegue fazer com que sua mãe desapareça, fica, então, sem reflexo algum no espelho. Permanece, no entanto, com suas mãos, tão parecidas com aquelas da mulher que tanto detes- tou. “Essas são as mãos que ficarão na companhia dela até o fim de seus dias, sozinha com as mãos.” (SILVA, 2016, p. 28)

VENDEDOR DE PENTES – Perdeste a tua imagem… MOEMA (apertando o rosto com as duas mãos e num grito) – Perdi!

VENDEDOR DE PENTES – ...mas ficaste com tuas mãos… (Moema olha as próprias mãos com um medo selvagem.) VENDEDOR DE PENTES E OUTROS (gritando) – Viverás com elas… E elas dormirão contigo… E não estarás sozinha nun- ca… Sempre com tuas mãos… Quando morreres, elas serão enterradas contigo…

(O vendedor de pentes e os vizinhos vão recuando e apontan-

do para Moema. Abandonam a cena. Moema está sozinha no palco ou apenas na companhia do pai morto. Então olha as

os braços, como se quisesse criar entre si e as mãos uma distân- cia qualquer, ou expulsá-las de si mesma.) (RODRIGUES, 198-,

p. 331-2)

E, assim, se cristaliza a tragédia de Moema: sozinha, sem ter sequer sua própria imagem como companhia, apenas com suas mãos, que são sua conexão com sua mãe, que ela tanto odeia, e agora, também, fantasmas, para lembrá-la de seus pecados.

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