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A família é o inferno de todos nós. (RODRIGUES apud FACINA, 2004, p. 97)

Senhora dos afogados é uma tragédia em três atos e seis qua-

dros, escrita em 1947. Na classificação feita por Sábato Magaldi, sob a supervisão de Nelson Rodrigues, ela foi classificada como uma de suas peças míticas.

Os fatores que destacam as peças míticas são, principalmente, o teor das peças, muito mais próximo à tragédia que as outras, e os dados locais e temporais não precisos das tramas. Em Senhora

dos afogados, por exemplo, as únicas especificações dadas pelo

dramaturgo sobre o lugar e tempo da peça são, respectivamente: “perto de uma praia selvagem” e “quando quiser”. (198-, p. 256) Isto se dá porque as famílias retratadas nas peças míticas se encontram sempre isoladas da sociedade. Não há necessidade de determinar um local e tempo exatos, porque as histórias poderiam ocorrer em qualquer lugar e data.

Apesar disso, Castro (1992) afirma que a maior inspiração de Nelson para escrever Senhora dos afogados foi uma viagem que o dramaturgo fez, aos dezesseis anos, para sua cidade natal, Reci- fe. A esfera boêmia da cidade, a qual ele frequentou durante sua estadia em terras pernambucanas, foram evocadas para dar um toque místico à peça. Além disso, uma crítica de Claude Vincent (Tribuna da Imprensa, 1954, caderno 2, p. 4, apud MEDEIROS,

2010, p. 39) diz que a obra é “inspirada pelas praias pernambu- canas que [Nelson Rodrigues] foi rever, antes da guerra. É muito

possível, efetivamente, que a tristeza daquelas casas abandona- das possa sugerir o ambiente de uma tragédia.” [grifo nosso] Apesar das especificidades da cidade que inspirou o drama- turgo, em Senhora dos afogados, a família dos Drummond (as principais personagens da trama) vive distante da sociedade, quase como em uma realidade remota. Medeiros (2010) afirma que o isolamento é “um fator bastante significativo que ajuda a compor não apenas o sentimento trágico imanente à sua dramaturgia, mas também certa referência à tragédia moder- na”, e que, no universo da família Drummond, “por isolados que estão, incondicionalmente as conseqüências são graves, con- tundentes, destruidoras.” (p. 101) Tanto que Silva (2016) define, muito brevemente, que Senhora dos afogados é “a história de uma família e seu esfacelamento”. (p. 63)

Além disso, vale apontar que Senhora dos afogados foi definida pelo próprio Nelson Rodrigues, em uma entrevista feita em 1949 para a revista Dionysos (apud MEDEIROS, 2010, p. 29),

como uma de suas “peças desagradáveis”. Nesta entrevista, o dramaturgo diz “[...] estou fazendo um ‘teatro desagradável’ [...] E porque ‘peças desagradáveis’? Segundo já se disse, porque são obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na platéia”.

A história se inicia com o velório de Clarinha Drummond, uma das filhas de Misael e D. Eduarda. As únicas a velar o corpo são a própria mãe, Moema (irmã de Clarinha), D. Marianinha (mãe doida de Misael, que geralmente é chamada apenas de Avó), e os vizinhos. Clarinha, assim como Dora, outra filha dos Drum-

mond, morreu afogada no mar. O patriarca da família se encon- tra em um jantar importante; e Paulo (o único filho homem) e o noivo de Moema (que não é nomeado, sendo citado sempre como Noivo) estão no mar, procurando o corpo de Clarinha, por isso estão ausentes da cena.

Logo na cena inicial, o autor já define alguns detalhes que seguirão durante toda a peça. Lopes (1994) diz que “o primeiro elemento com o qual entramos em contato ao subir o pano: [é] a luz do farol. É o que vai logo imprimir à cena seu ritmo e sua tensão: a alternância sombra-luz. É o que vai, de certa forma, determinar cenicamente a ação.” (p. 85) [grifo nosso]

Além do jogo de luz e sombra do farol, outro elemento marcan- te se faz presente, e será vital para a trama da peça: o mar. Du- rante toda a história, o som do mar é presente no background. Não só o mar marcará a sonoplastia da peça, a peça será tomada, em alguns momentos, pelo canto lúgubre das prostitutas do cais. Isto porque, no mesmo dia da morte de Clarinha, dezenove anos antes, uma prostituta foi assassinada a machadadas, e suspeita-se que Misael seja o culpado. Somando-se a isto, neste mesmo dia, Misael e D. Eduarda completam dezenove anos de casados. Durante este primeiro momento, fica claro que há um conflito entre Moema e D. Eduarda. Percebe-se que a mãe é desconsi- derada pela família (até mesmo pela sogra louca), pelo fato de ser de outra terra, não uma Drummond verdadeira.

AVÓ (ressentida) – [...] És esposa de meu filho Misael… [...] Mas não te pareces com as outras mulheres da família… És

estrangeira... [...] [falando com Moema] Das mãos de tua mãe não aceitarei nada… Só de ti… Tu és mulher, mas de ti eu gosto, sempre gostei… (meiga para Moema) Fria, como as nossas mulheres!... (RODRIGUES, 198-, p. 262-3)

E, de fato, Moema e D. Eduarda não são parecidas, com exce- ção das mãos, que se assemelham e até fazem movimentos que coincidem. O único que tem um apreço real pela matriar- ca é Paulo que, segundo as palavras de Moema, “saiu à mãe” (RODRIGUES, 198-, p. 264). Medeiros (2010) estabelece que “a esposa do patriarca dos Drummond vive entre a família em total isolamento: sem o amor do marido nem da filha e em constantes conflitos com a sogra. Voz dissonante entre os seus, nem por meio do filho Paulo ela consegue quebrar essa solidão, mantendo-se sempre à parte de tudo o que decidem.” (p. 102) E, de fato, D. Eduarda se mostra bastante afetada pelo isola- mento, em especial, aquele que a filha lhe proporciona.

“D. EDUARDA – Se eu pudesse encheria, hoje, a casa de pessoas, mesmo de inimigos meus… contanto que eu não fi- casse sozinha, ou só com você… (soluçante) Estar com você é a pior maneira de estar sozinha!” (RODRIGUES, 198-, p. 266) Nota-se, também, que os Drummond são uma família que preza suas tradições: as mulheres da família Drummond não traem, os Drummond não choram, os Drummond não enlouquecem. A conversa entre mãe e filha se estende até chegar ao assunto do Noivo, com quem D. Eduarda não quer que Moema se rela-

cione. Para comprovar seu ponto, ela faz com que os vizinhos contem à jovem os rumores que correm sobre seu noivo: que passa o dia rodeado de mulheres e tem tatuado em seu corpo o nome de várias prostitutas.

Na hora da ceia, Paulo retorna de sua busca. Durante a refeição, o canto das prostitutas invade a casa, impedindo que se reze pela alma de Clarinha. A conversa da família continua, até que Paulo pergunta à Moema por que está sempre vestida de preto, para o qual ela responde ter feito um voto, que só deixará seu luto quan- do um certo dia chegar, e esse dia será o mais feliz de sua vida. Ao retornar de seu banquete importante, Misael está pertur- bado, não só pela notícia da morte da filha, como também por uma visão que teve, durante seu discurso, de uma mulher de seu passado que há muito tempo está morta. Em sua primeira interação com a família, é perceptível o afeto que Moema sente por ele e o ciúmes que tem ao vê-lo com D. Eduarda.

Misael e D. Eduarda, por sua vez, são um casal em crise. Quando se encontram a sós em seus aposentos, inicia-se uma discussão na qual Misael confronta a mulher, se ela acredita que foi ele quem assassinou a prostituta anos atrás. Ao não re- ceber resposta, a acusa de colocar veneno em seu remédio do coração. Ele, então, a obriga a beber o remédio e percebe que suas suspeitas são falsas.

D. EDUARDA (gritando) – Eu sei o que vais perguntar. Mas não respondo!

D. EDUARDA (virando o rosto, num sopro de voz) – Não sei. MISAEL – ...Achas que eu sou o assassino?

D. EDUARDA (desesperada) – Disse que não respondia! MISAEL – Responde!

D. EDUARDA (chorando) – E te importa saber o que eu pen- so?

MISAEL (selvagem) – Sou o assassino?

(Pausa. Os dois se olham.) (RODRIGUES, 198-, p. 282) O segundo ato se inicia com a chegada do Noivo à casa dos Drummond, chega em êxtase dizendo que sua mãe (que mora em uma ilha, segundo ele) retornou. Ao comentar da mãe com os vizinhos e, posteriormente, com Moema, percebe-se que a coloca em um pedestal, de maneira muito semelhante a como Moema vê Misael.

Após sua chegada à casa, o Noivo vai ao quarto de Misael e D. Eduarda. O desconforto do casal em relação ao futuro genro é perceptível, também é notável o confronto que se dá entre o Noivo e o patriarca dos Drummond. O Noivo lhe diz que sua mãe havia chegado e que o único que a viu foi Misael, infor- mação que ele nega. O jovem, então, responde que ele a havia visto no banquete em que estava.

MISAEL (avançando para o noivo) – Essa mulher que eu vi no banquete, que estava defronte de mim – olhando sempre para mim –, essa mulher não pode ser sua mãe.

NOIVO – Era minha mãe!

MISAEL – Essa mulher está morta, morreu há muito tempo…

NOIVO (exultante) – Minha mãe também está morta, morreu há muito tempo…

MISAEL (na boca de cena e com medo) – Morta!

NOIVO (selvagem) – Desde que morreu, foi para a ilha, mora na ilha! (RODRIGUES, 198-, p. 296)

O embate entre os dois se desenvolve ao ponto em que o Noivo revela que sua mãe é, na verdade, a prostituta que foi assas- sinada há dezenove anos (e a ilha onde ela mora é, segundo o rapaz, a ilha para onde vão as mulheres da vida após a morte), e que Misael, que teve um caso com a prostituta, é seu pai.

“NOIVO [...] – [...] (vira-se, para Misael) Olhe bem para mim. Assim. Bem no fundo dos meus olhos… [...] reconhece este rosto? Estes olhos? (passando a mão, com angústia,

pelo próprio rosto) Reconhece a sua carne em mim?” (RO-

DRIGUES, 198-, p. 297)

Em seguida, o Noivo faz com que Misael confesse que foi realmente o assassino de sua mãe. A única testemunha de seu crime foi a Avó, que enlouqueceu em razão disso. Segundo Ma- galdi (198-), “a loucura representou para a Avó o refúgio da res- ponsabilidade de ter testemunhado o crime do filho. Alienada do mundo, ela não julga, não condena – encontra na ausência a cura da tragédia”. (p. 46)

Nesta mesma conversa, D. Eduarda revela que não gosta do Noivo pois, verdadeiramente, é apaixonada pelo rapaz.

de ti… Te chamei de bêbedo, de louco… Rezei para que fosses embora e não pertencesses nem a mim, nem à minha família… Desejei que te afogasses para que nenhuma mu- lher beijasse teu corpo…” (RODRIGUES, 198-, p. 299) O Noivo vê, ali, uma chance de se vingar de Misael, e parte com D. Eduarda para o cais das prostitutas. Depois da partida de D. Eduarda e o Noivo, Moema vai consolar o pai. Ela, então, lhe re- vela que matou suas duas irmãs, Clarinha e Dora, por ciúmes. Ela as matou afogadas para que os corpos não fossem encontrados. Além disso, ela retirou todas as fotos e pertences das irmãs da casa, para que Misael não se recordasse da aparência das filhas.

MOEMA – Afoguei minhas irmãs, como se ferisse no meu pró- prio ser… Afoguei as filhas que preferias e acariciavas, enquan- to eu sofria na minha solidão… [...] Procura em toda a casa, nos espelho também… Tuas filhas não estarão em lugar nenhum… Nem vivas, nem mortas… Não existem nem os retratos, que eu destruí; nem as roupas… Queimei a memória delas… Sabes ainda como eram? Te lembras dos olhos, dos cabelos? [...] Sabes pouco… Saberás cada vez menos… Até que um dia nada restará delas na tua memória… Só existirei eu, minha imagem diante de ti… [...] (RODRIGUES, 198-, p. 305)

O pai, que está em um estado meio delirante de culpa, sofre, também, pelo abandono da esposa, e aponta, continuamente, o quanto as mãos de Moema se assemelham às da mãe. Moema tenta convencer o pai que D. Eduarda, que virou as costas para a tradição de fidelidade da família, não merece viver, e o incita

que puna a esposa pelas mãos, que, segundo ela, “são mais culpadas no amor”. (RODRIGUES, 198-, p. 308)

Paulo, que seguia buscando o corpo de Clarinha, retorna, então, à casa. Moema lhe conta o que aconteceu com D. Eduarda e o incita a matar o Noivo. Os dois partem para o cais das prostitutas, para que Paulo possa confirmar, com os próprios olhos, o que a irmã disse. O terceiro ato começa com o Noivo e D. Eduarda no cais das prostitutas. Lá, ele fala sobre sua mãe e a ilha das prostitutas mortas, pela qual D. Eduarda se encanta. Durante este meio tempo, Moema e Paulo, juntos, e Misael, sozinho, chegam ao cais e passam a assistir a cena. O Noivo e D. Eduarda sobem, então, ao quarto e, ao sair, ele se lamenta, pois não pensou na mãe durante o ato, apenas em D. Eduarda. Assim que eles saíram, Paulo apunhala o Noivo pelas costas e o mata. E se dá, aí, o estopim da tensão entre Moema e D. Eduarda.

“D. EDUARDA (rosto duro como uma máscara) – Deus fez tua vontade! Traí meu marido! [...] Desce e vem chamar tua mãe de prostituta!

(Silêncio. Moema desce, lentamente. Mãe e filha, face a face.) MOEMA – Prostituta!” (RODRIGUES, 198-, p. 322)

O último quadro da peça se inicia com a partida do caixão de D. Eduarda. O restante da família Drummond observa. Misael e Paulo estão de luto, já Moema veste um lindo vestido branco, em comemoração à morte da mãe.

Descobre-se, no diálogo posterior entre Misael, seus filhos e um vendedor de pentes, as circunstâncias da morte de D. Eduarda:

depois da morte do Noivo, Misael agarrou D. Eduarda pelos cabelos e a arrastou até a praia, onde cortou suas mãos com um machado. Ela faleceu em decorrência disso, “morreu de saudades das próprias mãos” (RODRIGUES, 198-, p. 326). Paulo, não conseguindo conviver com a morte da mãe e a culpa de ter assassinado o Noivo, pede para que Moema diga que o mar o chama. Ela, pesarosamente, o faz, e ele se mata afogado. Diante de outra morte que foi, de certa forma, causada por Moema, o vendedor de pentes e os vizinhos afirmam que ela será amaldiçoada, que nunca mais verá a própria imagem. Mo- ema, em desespero, põe-se diante de um espelho, no qual vê, não o seu reflexo, mas o de D. Eduarda, vestida de preto e com as mãos decepadas. Moema, em cólera profunda, grita com a imagem de D. Eduarda, mandando-a embora, o que ela faz, deixando-a sem reflexo algum diante do espelho.

Em seu triunfo, Moema não percebe que Misael, “por ataque cardíaco ou ímpeto de autodestruir-se” (MAGALDI, 198-, p. 41), morreu no meio tempo. Magaldi (198-) também comenta “nem se nota, no clima de densidade que se desencadeou, que a Avó morre de forma quase inverossímil: Moema se esque- ceu, durante muitos dias, de levar-lhe água e comida, e ela foi perdendo as forças, até não respirar mais” (p. 47). Sem seu pai e sua avó, Moema se encontra sozinha, sem imagem e com suas mãos, que a lembram da mãe que tanto odiou.

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