• Nenhum resultado encontrado

3. Repertório e complexidade do movimento autônomo secundarista

3.3 Boicote ao Saresp e a intensificação do movimento secundarista

No dia 21 de novembro de 2015 o coletivo O Mal-Educado e o Comando das Escolas Ocupadas publicaram o “guia do boicote”. A ideia de impedir a realização do exame do SARESP (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo) surgiu da necessidade de intensificação da atuação secundarista no conflito com o governo. Em duas semanas, com mais de 120 escolas ocupadas, o Estado insistia em manter a reorganização escolar ignorando a mobilização dos estudantes e apoiadores, com o argumento de que o movimento secundarista era motivado por forças partidárias.

Na chamada, seguida da hashtag #nãovaitersaresp, o coletivo O Mal- Educado publicou o seguinte texto:

O Saresp é mais uma das ferramentas do governo Alckmin para justificar os fechamentos e a reorganização das escolas. Boicotar a prova é mais uma forma de lutar contra a reorganização e apoiar as escolas ocupadas!"

Ocupe, piquete, paralise, não faça! Porque não vai ter Saresp! Se sua escola já está ocupada, garanta o boicote nas escolas mais próximas!

DIVULGUE E IMPRIMA O GUIA PARA QUE ESTE SEJA O MAIOR BOICOTE AO SARESP DA HISTÓRIA!174

O boicote ao sistema de avaliação do Estado não foi uma novidade na rede estadual. Há registros de mobilizações isoladas contra o SARESP, colégios que por problemas locais não realizaram a prova recusada pelos alunos em protesto. No contexto das ocupações, o boicote ao SARESP se tornou uma importante estratégia para fortalecer o movimento autônomo, intensificar a pressão sobre o Estado e reforçar a crítica secundarista ao modelo de ensino adotado pela rede pública. O manual produzido e divulgado pelo coletivo O Mal-Educado apresenta justificativas para o boicote, entre elas a informação de que o exame serve de ferramenta para as políticas educacionais do governo estadual e para dar continuidade à “reorganização”175.

174 O Mal-Educado (Facebook). Publicação de 21/11/2015. 175 Ver [ANEXO VII] o manual “Boicote o Saresp”.

O Saresp é usado para intimidar os professores e estudantes, retirando investimentos das escolas que vão mal na prova. É uma política de produção de índices, que hierarquiza e gera concorrência entre as escolas e os professores, atraídos pelas bonificações que podem receber para contemplar seu salário miserável. Os estudantes são tratados como meros números e nunca são beneficiados por esse tipo de prova.176

Parte do conteúdo do manual concentra-se em “como boicotar”. As orientações seguem a seguinte sequência: ocupar, organizar piquete na porta da escola, destruir as provas, e no tempo que seria destinado a realização do exame, organizar uma assembleia dos alunos para debater a “reorganização escolar” e o Saresp. Caso não fosse possível impedir a realização da prova, o manual orienta os alunos a rasurar todas as páginas com a hashteg #nãoàreorganização e, em seguida, tirar foto da prova rasurada para enviar à página d’O Mal-Educado, como forma de registro da luta secundarista.

A estratégia serviu para encorajar algumas escolas que até aquele momento não estavam ocupadas, pois aderir ao boicote significou, naquele contexto, uma forma de mobilização e apoio ao movimento autônomo contrário à “reorganização”. Na avaliação do Comando das Escolas Ocupadas a estratégia foi satisfatória. A campanha para ocupar as escolas e impedir a realização da prova resultou em mais 60 escolas ocupadas em apenas dois dias. Com esse aumento expressivo, que chegou a 213 escolas ocupadas em todo o estado, pressões de todo tipo se intensificaram para forçar desocupações. No mesmo dia da aplicação do exame, o governo anunciou o cancelamento de bonificação das escolas ocupadas e criou condições de intensificação de conflitos entre funcionários e alunos ocupantes177.

Poucos dias antes do boicote, a página do coletivo O Mal-Educado denunciou a orientação da Secretaria da Educação aos diretores e supervisores para intimidar os estudantes que se organizavam contra a realização do Saresp. Os organizadores do boicote insistiam: “NÃO ACEITE INTIMIDAÇÕES. Grave e denuncie!”, e passaram a orientar os demais secundaristas sobre o que os diretores poderiam ou não fazer178. Na mesma página de Facebook várias denúncias foram

176 Idem.

177 O cancelamento do bônus foi abordado em capítulo anterior, na seção “O Estado contra o movimento

autônomo secundarista”.

178 Alunos que faziam parte do Comando e dos subcomandos das escolas ocupadas, como de costume,

publicadas, relatos de alunos ameaçados de expulsão, casos de fiscalização e punição de envolvidos no boicote, e outros em que a direção resolveu premiar com lanches e prendas os alunos que realizassem o exame. No manual há uma parte destinada ao esclarecimento de possíveis tentativas de punição aos alunos:

Os diretores, coordenadores e professores vão tentar intimidar os estudantes para fazer a prova. Não aceite ameaças. Não fazer o Saresp não reprova ninguém. Se algo desse tipo acontecer, denuncie. Algumas escolas prometem até festas e prêmios para os estudantes que não faltam ou vão bem na prova. Não aceite promessas e chantagens.179

Com o aumento expressivo de ocupações, os dias que se seguiram ao boicote foram de ataques ao movimento autônomo secundarista e tentativas forçadas de desocupação, tanto de pais e diretores contrários, quanto policiais autorizados180.

Nesse período das ocupações, os conflitos não se deram apenas com opositores ao movimento, mas também com entidades estudantis. Desde antes do áudio vazado, em que o chefe de gabinete do então secretário da educação declara “guerra de informações”, os secundaristas autônomos acusaram entidades estudantis de tentarem negociar as ocupações, conforme relato do subcomando das escolas ocupadas de Santo André.

Na Assembleia realizada hoje, 25/11, no Américo Brasiliense, com a presença de estudantes das escolas Ocupadas, colocamos em debate e questionamento o acordo firmado entre Umes e governo para transformar as ocupações em "ocupações parciais" (que permitiriam a entrada da direção das escolas e

aulas normais).

Esse acordo que envolve todas as escolas Ocupadas não foi

discutido com os estudantes.

Diante do exposto e após termos conhecimento do conteúdo do acordo, reafirmados que: a UMES não representa juridicamente e não representa politicamente os estudantes das escolas ocupadas, sendo apenas uma das entidades que está no apoio.

Decidimos que:

e agendas desses secundaristas, foi possível notar que alguns deles carregavam contatos de advogados, da Secretaria de Direitos Humanos e do Ministério público.

179 Manual “Boicote o Saresp”.

180 Conforme capítulo anterior, os ataques contra as ocupações se deram em decorrência do processo

de desinformação planejado pelo governo, que consistiu na divulgação de informações falsas de desmoralização dos estudantes em ocupações e sobre prejuízos pela não realização do Saresp e pelo período sem aulas. A comprovação da ação conspiratória foi ao conhecimento de todos por meio de um áudio do chefe de gabinete do então secretário da educação vazado durante uma reunião com dirigentes.

1)Não participaremos da Reunião de conciliação, em 27/11, determinada na última audiência, entre UMES e governo. 2) Vamos ampliar e fortalecer as ocupações contra a

reorganização que fecha escolas e períodos.

3) Convocaremos nova assembleia para reunirmos estudantes de todas as escolas Ocupadas."

Tamo fechados até o fim, Sto. André!181

A postagem ilustra um dos momentos de desentendimento entre os autonomistas e as entidades estudantis. Entre os primeiros, muitos acreditavam que essas entidades tinham a intenção de desconsiderar a base dos secundaristas autônomos e se apropriarem da luta que não era deles.

A UMES e a UBES tentaram se tornar protagonistas da luta, e eles não eram. Eu não via UMES colando [aparecendo] em escola da Brasilândia, eu vi a UMES colando na Fernão [E.E. Fernão Dias Paes], que é uma escola central, que teve ajuda do mundo, (...). Eles não estavam aqui na Brasilândia, nunca estiveram, e quando a luta cresce eles querem pegar isso. (...). A gente teve peito para fazer uma luta nossa, a gente não passou para outros. Eles nunca representaram a gente de forma alguma, não tinha o porquê de passar a luta para eles, e eu acho que foi a coisa mais certa que a gente fez.182

Se por um lado a SEE-SP propunha adiar a reorganização por mais um ano, por outro lado, o Comando das Escolas Ocupadas se posicionava de forma mais radical que as entidades estudantis ao prometer não desocupar as escolas sem que o Estado abrisse mão do projeto. No embate, os estudantes do movimento autônomo decidiram adotar novas formas de chamar a atenção da sociedade. Ocupar as escolas estava sendo uma tarefa difícil e de poucos resultados, sobretudo depois dos ataques às ocupações. Com isso, a última semana de novembro de 2015 ficou marcada pelo início das ocupações nas ruas, isto é, além das ocupações das escolas a nova ação dos secundaristas autônomos passou a ser bloquear importantes cruzamentos e avenidas de São Paulo: avenida Rebouças com a avenida Faria Lima, as avenidas 9 de Julho, São João, dos Estados, Dr. Arnaldo, e outras vias importantes, incluindo a Marginal Tietê e a Rodovia Regis Bittencourt, na região de Taboão da Serra.

181 Escolas em Luta de São Paulo (Facebook). Publicação de 26/11/2015.

182 Fala de um ex-secundarista da E.E. Barão Homem de Melo e morador na região da Brasilândia,

Com o lema “hoje a aula é na rua”, os secundaristas passaram a encenar salas de aula nas ruas, com cadeiras escolares agrupadas uma ao lado da outra. No bloqueio do cruzamento das avenidas Rebouças com Faria Lima, mesmo depois da chegada da polícia, que retirou todas as cadeiras do asfalto, os estudantes permaneceram de mãos dadas em círculo, com palavras de ordem: “Geraldo [governador]a culpa é sua, hoje a aula é na rua!”. A sequência de “aulas nas ruas” rendeu horas de trânsito parado nas principais vias da cidade e em horários de maior fluxo. O recado era claro: “Se o governo não recuar, a cidade vai parar”. Essa nova forma de ação teve como resultado a reação policial bastante violenta. Pela primeira vez tropas de choque passaram a reprimir os atos dos secundaristas183. Nas

manifestações de rua estudantes passaram a ser detidos, e o uso de balas de borracha, bombas de gás lacrimogênio e de estilhaço tornou-se recorrente.

Mesmo com a forte repressão da força policial nas ruas e ataques violentos contra as ocupações, a página do coletivo O Mal-Educado manteve chamadas para que as escolas se organizassem em travamentos de avenidas próximas. O coletivo chegou a organizar um manual de como travar uma avenida184. Nele é possível

observar que a intenção era, naquele momento, tentar mais uma ação para chamar a atenção da sociedade sobre a negligência do Estado com a Educação. A ideia inspirada na atuação dos protestos de 2013, organizados pelo Movimento Passe Livre contra o aumento das passagens, teve como objetivo realizar pequenos trancamentos de ruas em diferentes regiões e lugares da cidade.

Estamos entrando na 4a semana de ocupação e já são mais de 200 escolas sob o domínio estudantil e o governo decidiu fingir que nada está acontecendo. Temos que tirar o conforto do Seu Geraldo. Se não dermos um passo radical podemos perder o tempo e a luta, ou eles vencem ou nós. Com 200 ocupações podemos fazer centenas de atos e trancamentos de rua pela cidade. Se o governo não recuar, São Paulo vai parar.185

Diferentes regiões de São Paulo e da Grande São Paulo tiveram suas ruas tomadas pelos secundaristas. Um levantamento feito por Campos, Medeiros e Ribeiro (2016, p.246) mostra que em um único dia quase vinte pontos da cidade foram

183 A tropa de choque pertence ao corpo policial especializado em controlar multidão durante

manifestações e eventos em praças desportivas, e fazer cumprir mandados de reintegração de posse.

184 Consultar [ANEXO VIII] o “Manual de como travar uma avenida”.

185 Trecho retirado do “Manual de como travar uma avenida”, publicado pelo O Mal-Educado em

tomados pelos estudantes186. O período que eles passaram a combinar bloqueios de

ruas e as mais de 200 ocupações marca a fase de alta violência do Estado, sobretudo pelo uso da força policial em protestos de rua e tentativas de desocupação. A resposta do governo também se deu com ações para desmoralizar e criminalizar o movimento e seus apoiadores. As declarações do então governador compuseram, na época, a posição violenta do Estado ao divulgar declarações de que os estudantes estavam sendo induzidos por organizações partidárias, e que se tratava de um grupo pequeno de agitadores que impediam os alunos de estudar187.

Entre as formas de repressão que contribuíram para a intensificação do conflito, boletins de ocorrência de estudantes detidos durante atos não registram os depoimentos dos próprios detidos e de testemunhas, muitos B.O.s constam apenas acusações de policiais militares188. Nesse mesmo período, o Comitê de Mães e Paes

em Luta se forma para defender adolescentes de perseguições político-ideológica. Entre relatos desse tipo de violência, o caso de um secundarista que foi perseguido por policiais militares depois de uma manifestação na Praça da República e, sob agressões físicas, forçado a revelar nomes de colegas diante de fotografias, resultou em medo e afastamento desse adolescente e de seus colegas identificados.

Enfrentar as ruas com tropas de choque, ameaças, e constante tentativa de desocupação forçada, gerou altos níveis de estresse para muitos alunos. As últimas semanas de novembro foram traumáticas, especialmente por que as escolas ocupadas representavam a vivência de um projeto, um modelo de convivência e aprendizagem. A forma violenta que o Estado vinha reagindo contra o movimento secundarista tornou a mobilização mais difícil. Perder força depois de um mês de ocupações significava a perda de um projeto de escola, e por isso o lema “ocupar e resistir” foi levado até o limite e da forma que os estudantes sabiam fazer. Em situações de tensão com a polícia, era comum o uso de cantigas improvisadas em formas de insultos. Frases como: “Que vergonha, que vergonha deve ser, oprimir o

186 A extensa lista inclui as avenidas Paulista, Autonomistas, Heitor Penteado, Tiradentes, 23 de Maio,

Faria Lima e Francisco Morato, os cruzamentos da avenida São João com a Angélica e da Jacu Pêssego com a Radial Leste, ambas as marginais em diferentes pontos, o Largo 13, os centros de Diadema, Itaquera e Lapa, a estrada do M’Boi Mirim e os terminais João Dias e Santo Amaro.

187 Sobre as tentativas de desmoralização do movimento secundarista, ver capítulo “Estado e confronto

político”.

188 A omissão de informações nos boletins de ocorrência foi noticiada por alguns jornais. A matéria do

El País, “Os estudantes de São Paulo são tratados como inimigos”, destaca que 50 entidades dos Direitos humanos denunciaram em um manifesto o autoritarismo do governo paulista. Acesso em: dezembro de 2018.

estudante, pra ter o que comer” e “Meu pai mandou eu estudar, pra não virar polícia militar”, se tornaram expressões coletivas muito utilizadas pelos secundaristas em situações de repressão da polícia militar em espaços públicos.

As músicas cantadas tinham por objetivo chamar a atenção de civis para situações de perigo e obter testemunhas. O conteúdo das letras, em sua maioria, beirava a ridicularização do uso da força policial contra secundaristas que protestavam pela educação pública. Essa tática, bastante comum no modo de agir do grupo, expressa a energia e criatividade dos atores que contavam com uma espécie de segurança ocasional. Em observação participante durante alguns atos e manifestações, notou-se que o comportamento dos estudantes tende a contagiar positivamente as pessoas que passam pelas mobilizações, ou seja, os estudantes conseguem atingir pessoas que se deparam com seus atos públicos e bloqueios de rua, de modo que qualquer ação da polícia possa ter a reprovação daqueles que voluntariamente assumem a posição de vigias. Nas ruas, era comum que pessoas aleatórias filmassem e cantassem junto com os estudantes, intimidando, em certa medida, a atuação policial. Em menor proporção, civis que se posicionavam contra os secundaristas também foram vistos.