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2. Estado e confronto político

2.3 O governo paulista recorre à Justiça e age como detentor de poder absoluto

As primeiras ocupações de escolas regulares, entre 9 e 13 de novembro, terminou com diversos atos estudantis, incluindo vigílias na frente das escolas ocupadas, nas zonas oeste, norte, sul, e leste da capital, e nas cidades de Diadema, Santo André e Osasco. Todas elas com cartazes informando: “A escola é nossa! Ocupamos” e “Escola de luta”. Rapidamente o governo entrou com pedido de reintegração de posse dos três primeiros colégios ocupados: E.E. Diadema, E.E. Fernão Dias Paes e E.E. Salvador Allende.120

Assumindo a interpretação da Procuradoria Geral do Estado, de que o sindicato dos professores liderava as ocupações das escolas, o juiz Luiz Felipe Ferrari Bedendi, da 5ª Vara de Fazenda Pública, determinou a reintegração de posse com a participação de representantes da Secretaria Estadual de Educação, da Procuradoria Geral do Estado (PGE), e de representantes do Conselho Tutelar. No dia seguinte,13 de novembro, antes da expedição do mandado de reintegração de posse, houve uma

118 “Estudo aponta ‘reorganização velada’ no Estado de São Paulo”. O Estado de S. Paulo, 28/06/2016. 119 Sobre o fechamento de salas de aula e transferências compulsórias de alunos, Cf. “Geraldo Alckmin

fecha turnos e causa ‘desorganização escolar’”. Folha de São Paulo, Educação, 18/02/2016; “Já são 1.112 classes fechadas na reorganização feita por Alckmin”. GGN – Luís Nassif Online, 15/02/2016.

120 O pedido de reintegração de posse foi adicionado ao processo anterior aberto pela Procuradoria

Geral do Estado contra a Apeoesp, por meio de “interdito proibitório” (art. 932 do Código Civil), para prevenir possível ocupação de Diretorias de Ensino. Esse processo foi aberto depois de um discurso da presidente do sindicato dos professores durante uma manifestação por melhores salários, em que ela menciona a ação de ocupar como forma de protesto. Embora a ocupação não tenha ocorrido por parte do sindicato, o governo interpretou que as ocupações das escolas, ocorridas coincidentemente na mesma semana cogitada pelo sindicato, eram motivações da mesma natureza.

audiência de conciliação convocada pelo juiz corregedor da Central de Mandados, Alberto Alonso Muñoz, em que participaram juízes, estudantes e seus advogados, representantes da Apeoesp, um representante do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, um oficial de justiça, procuradores do Estado de São Paulo, conselheiros tutelares de Pinheiros, um promotor de justiça, defensoras públicas, uma representante da Secretaria de Educação e a diretora do E.E. Fernão Dias Paes. Sem acordo entre estudantes e representantes da Secretaria da Educação, o mesmo juiz deliberou o prazo máximo para a desocupação da escola às 17hs18min do dia seguinte, garantindo a segurança dos estudantes, os quais não seriam apreendidos ou presos se saíssem da escola dentro do prazo determinado.

As considerações de Muñoz corresponderam aos cuidados que o Estado teve que assumir em relação ao perfil dos manifestantes, até o momento compreendidos como coadjuvantes. Toda e qualquer medida deveria ser tomada levando em conta o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), tendo em conta que se tratava de uma situação de conflito nada comum para o Estado. Na mesma reunião foi determinado que o poder policial não poderia valer-se de Tropas de Choque e outros meios excessivos, devendo utilizar-se do corpo policial melhor treinado e de negociadores.

Logo depois, o juiz Luis Felipe Ferrari Bedendi, atendendo pedidos do Ministério Público, da Defensoria Pública e do sindicato dos professores do estado de São Paulo (Apeoesp), suspendeu a reintegração de posse das escolas estaduais mencionadas no processo. O argumento foi o de que a questão a ser resolvida era política pública, e não proteção de posse, como reivindicara o Estado, além de que esta não resolveria o caso concreto. Segundo o juiz, seria o caso de debate com a população sobre a decisão estatal, e observa: “A cada dia, uma nova escola pode ser invadida; expede-se, na sequência, a reintegração de posse, é ela cumprida e o ciclo se repete, com a possibilidade, inclusive, de existir a recuperação de uma escola já liberada”. Parte da decisão se deveu em razão dos ocupantes serem adolescentes: “(...) por mais preparada e capacitada seja a Corporação Estadual [polícia militar], existe a probabilidade de ocorrer algum prejuízo aos menores, já que o calor da situação, aliado à pressão popular no entorno da escola são elementos suficientes a algum acontecimento trágico”.121

121 Documento liberado nos autos de 13/11/2015, assinado pelo juiz Luiz Felipe Ferrari Bedendi. O

Depois da decisão que derrubou a reintegração de posse, o governo do Estado recorreu e sofreu nova derrota no Tribunal de Justiça de São Paulo, e enquanto o governo procurava meios de pôr fim à onda de protestos, o número de escolas ocupadas aumentava por todo o estado. O primeiro encontro entre as escolas ocupadas ocorreu no dia 19 de novembro, justamente na situação da segunda derrota do governo de Geraldo Alckmin. Reunidos numa audiência de conciliação, convocada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, estavam presentes: cerca de 30 estudantes representantes das escolas ocupadas, desembargadores, o secretário da Educação, a presidente da Apeoesp, e o Ministério Público representado pelo promotor de justiça do Grupo de Atuação Especial de Educação. Na ocasião os secundaristas tiveram que, pela primeira vez, se posicionarem como uma unidade, e conjuntamente propuseram uma pauta mínima de reivindicações: o não fechamento de nenhuma escola; um debate sobre o projeto ao longo de 2016, com a inclusão de alunos, professores, pais, Associações de Pais e Mestres, Conselhos de Escola de Classe e Grêmios; a participação dos formandos de 2015; e que professores e alunos apoiadores não sofressem punições122.

O grupo de alunos presente na audiência de conciliação mostrou que a “reorganização” envolve uma coletividade ampla, não devendo ser tratada como uma mudança do âmbito administrativo, e sim como política pública. Do outro lado, a proposta do secretário Herman Voorwald foi abrir um debate sobre a reorganização escolar desde que os estudantes desocupassem as escolas. Dias depois a reintegração de posse foi definitivamente suspensa por unanimidade pelos desembargadores.

Na decisão que revoga a autorização da reintegração de posse das escolas Fernão Dias Paes e Presidente Salvador Allende Gossens, os juízes que integraram o acórdão relatam ausência de discussão pública sobre o tema que afetaria diretamente “o cotidiano de milhares de famílias, de menor poder aquisitivo, mercê do remanejamento que se pretende impor.”123 E contrariando o discurso do governo,

entendem que não seria o caso de discutir o mérito do ato, pois o que se constata é o

http://www.mpsp.mp.br/portal/pls/portal/!PORTAL.wwpob_page.show?_docname=2576410.PDF . Acesso em agosto de 2018.

122 Campos, Medeiros e Ribeiro (2016, p.164).

123 Acórdão de 23/11/2015 com participação dos desembargadores Eduardo Gouvêa e Magalhães

Coelho, assinado pelo relator Coimbra Schmidt. Acesso em agosto de 2018 por meio de arquivo pessoal de estudante ex-secundarista autônomo da zona norte de São Paulo.

envolvimento da comunidade escolar na questão posta e o objetivo dos estudantes em discuti-la “com seriedade e profundidade mínima”, dando início a uma reflexão de longe proposta pelo secretário da educação. Entre as considerações, acrescentam: “ademais, não apenas não se veem condições para segura desocupação como também se constata a ocorrência de atividades culturais, o que é muito positivo para o debate e para o aperfeiçoamento intelectual da comunidade.”124

Em outro relatório de decisão judicial, assinado pelo juiz Magalhães Coelho, que indefere o pedido do Estado de reintegração de posse sob o argumento de proteção possessória, convém citar trechos que apontam a inadequação da atuação do governo estadual.

Como estamos no espaço da política pública da educação explico pedagogicamente: O movimento de professores e alunos das escolas públicas não tem qualquer intenção explícita ou recôndita de se apossar desses bens públicos.

Como se reconheceu na sessão de julgamentos, cuida-se tão somente de um processo reivindicatório legítimo e de discussão de uma específica política de educação da qual, aliás, são destinatários primeiros.125

Como se verifica, os argumentos do poder judiciário fundamentam a questão nos termos da política pública e desconstroem o discurso do governo Alckmin. Ao apontar o processo reivindicatório de participação na discussão sobre a política de educação, os juízes apresentam reconhecer a legitimidade da luta dos estudantes, não sendo o problema da posse dos prédios públicos um tema importante desse conflito, e sim uma imposição do recurso movido pelo Estado, uma tentativa de criar um falso problema, conforme menciona o documento.

A falsa questão, apresentada na ação com viés possessório, tende a desviar os motivos reais do conflito, incitar a desqualificação do movimento secundarista e enfraquecer o debate lançado pela comunidade escolar. O interessante é que todas as ações judiciais foram abertas pelo Estado, que como de costume tende a levar conflitos desse tipo para o campo judicial como forma estratégica, sobretudo por que pretendia dissuadir as reivindicações dos estudantes secundaristas para a questão da possa e da preservação dos bens públicos.

124 Idem.

125 Documento de declarações de votos. Agravo de instrumento nº2243232-25.2015.8.26.0000. Acesso

Diferentemente do habitual, o relatório de decisão judicial assinado pelo juiz Magalhães Coelho traz argumentos contrários à posição do Estado e reforça os valores de um Estado republicano, destacando “o respeito à dignidade humana, o pluralismo, e à gestão democrática das políticas públicas” – remetendo às obrigações mínimas do Estado democrático de direito, e do “regime político que se estruturou como democracia participativa”; todos ausentes na posição adotada pelo governo Alckmin em seu conflito com os secundaristas.

O mesmo relatório reforça o problema apresentado pelos secundaristas, isto é, o problema da política pública específica ser implementada sem o devido respeito à gestão democrática da educação, conforme artigo 206 da Constituição Federal. E reforça o discurso que até o momento só havia sido proferido pela comunidade escolar, como se vê: “Uma política pública que envolve mobilidade urbana, implica reorganização das rotinas de muitas famílias e que diz respeito, inclusive, aos afetos legítimos dos alunos com suas escolas, não pode ser implantada a partir de uma matriz burocrática autoritária”.126

A decisão do judiciário é totalmente favorável ao movimento secundarista ao mesmo tempo que crítica à atuação do Estado em mover uma ação de proteção a posse:

Aliás, é preciso ter a coragem de se dizer que o ajuizamento dessa ação, além de sua evidente impropriedade técnica, constitui-se verdadeira irresponsabilidade e irracionalidade, porque não se resolve com repressão um legítimo movimento de professores e alunos, adolescentes na sua expressiva maioria, a merecer a proteção do Estado (art. 205 e 227 da C.F.). (...) Não será, portanto, com essa postura de criminalizar e “satanizar” os movimentos sociais e reivindicatórios legítimos que o Estado Brasileiro alcançará os valores abrigados na Constituição Federal, a saber, a construção de uma sociedade justa, ética e pluralista, no qual a igualdade entre os homens e a dignidade de todos os cidadãos deixe de ser uma retórica vazia para se concretizar plenamente.127

No período entre novembro de 2015 e janeiro do ano seguinte o governo do estado sofreu uma sequência de derrotas judiciais que permitiram a permanência das ocupações das escolas regulares e a preservação da estrutura com diferentes

126 Idem. 127 Cf. nota 125.

ciclos de ensino numa mesma escola. Nessa fase, a sucessão de derrotas do governo certamente se deu em decorrência das audiências de conciliação, momento em que o poder judiciário pôde tomar conhecimento dos discursos dos atores, Estado e secundaristas, e reconhecer a legitimidade do movimento dos estudantes, se certificando de que as ocupações são organizadas pelos estudantes, e não pelo sindicato dos professores ou qualquer outra instituição de representação, como alegava o Estado.

Por uma determinação judicial todos os efeitos da reorganização escolar foram suspensos, devendo ser mantida a permanência dos alunos nas escolas em que estavam matriculados em 2015. Não contente e demonstrando que estava disposto a insistir com a reorganização, o Estado entrou com um recurso alegando ter apresentado que a “suspensão de todos os efeitos da reorganização” teria sido uma medida desnecessária. Mais uma vez sem sucesso, o recurso foi negado pelo desembargador Marcos Pimentel Tamassia, da 1ª Câmara de Direito Público, que reafirmou a necessidade de se fazer cumprir a gestão democrática da educação pública do Estado, isto é, da ampla participação da comunidade escolar.

Certamente as derrotas do governo estadual se deveu a pressão da opinião pública em apoio aos estudantes autônomos. Podemos considerar que a revogação da reorganização escolar não teria ocorrido sem o reconhecimento da luta secundarista por parte da justiça pressionada pela opinião pública, isto é, sem a coação da opinião pública não haveria determinações judiciais sobre o Estado em favor da luta estudantil.

Depois da sequência de derrotas, o governo Alckmin permaneceu tomando medidas por conta própria. Sem a devida mediação da justiça e sob o discurso jurídico da autotutela como forma cabível de solução para o conflito128, a nova forma de

atuação se deu no contexto de 2016, sob a pauta da “máfia da merenda” escolar129.

Nessa época, os estudantes autônomos ocuparam 19 escolas técnicas, o prédio do Centro Paula Souza, 4 diretorias de ensino, 9 escolas regulares e a Assembleia Legislativa de São Paulo. A primeira tentativa de reintegração de posse sem mandado

128 O princípio de autotutela é um poder que cabe à administração pública. Compreende que esta pode

controlar os próprios atos e preservar seu patrimônio sem precisar recorrer ao poder judiciário. Trata- se do método mais primitivo para solucionar problemas de atrito social e é uma forma que se caracteriza pela imposição de uma das partes em conflito.

129 O termo “máfia da merenda” foi utilizado pela mídia, grande imprensa e meios alternativos de

comunicação e informação. A expressão também foi adotada pelos estudantes da rede pública estadual.

judicial ocorreu no dia 2 de maio, na ocupação do Centro Paula Souza. Na ocasião o juiz Luis Manuel Pires, da Central de Mandados, pediu explicações do então secretário de justiça, Alexandre de Moraes, demonstrando certa tensão entre os dois poderes, executivo e judiciário paulistas.

A onda de reintegrações de posse sem mandado judicial e com uso da força policial ocorreu poucos dias depois de uma audiência de conciliação sem acordos. A nova forma de atuação do Estado se deveu a solicitação de consulta do secretário de segurança à Procuradoria-Geral do Estado para realizar reintegrações de posse sem autorização judicial. O argumento jurídico fez uso do artigo 1.210, §1º, do Código Civil, equiparando bens públicos e bens privados. Para não ter que recorrer à ação de reintegração de posse podendo ser negada, como ocorrido seguidas vezes, o então secretário de segurança partiu da interpretação de que o governo do Estado pudesse desocupar os prédios com uso de sua própria força e sem demora, fazendo valer um direito civil no lugar do direito administrativo.

Por se tratar de uma manobra jurídica bastante apelativa, a resposta da Procuradoria-Geral do Estado foi negativa. Os dois pareceres apresentados apontam a impossibilidade de aplicação do referido artigo do Código Civil para a Administração Pública, mas por outro lado orientaram o governo sobre alternativas jurídicas do direito administrativo, fazendo uso dos poderes de polícia e de autotutela. Isso significa que, a partir da interpretação da Procuradoria Geral do Estado, por motivo de posse e preservação do patrimônio, o Estado pode fazer uso da força sem precisar de ação judicial, uma vez que a autotutela é parte do direito público. Nesse sentido, a Procuradoria-Geral do Estado reforçou a posição autoritária do governo, que se posicionou enquanto Estado de poderes absolutos, sem autorizações do poder de justiça, ferindo a Constituição Federal.

O que se nota é que a partir do contexto das ocupações das escolas técnicas estaduais, em 2016, o governo estadual paulista passou a evitar decisões judiciais, por vezes com o argumento de que a instância jurídica estava tomando partido dos estudantes, mas especialmente fazendo uso do argumento jurídico da autotutela. Desde então o governo evita judicializar ocupações, de escolas e de movimentos sociais de ocupação, agindo por conta própria.130

130 Sobre o processo de variação da interpretação jurídica nos casos de ocupações das escolas de

2.4 A inconsistência do discurso do governo. Ampla noção de política para