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Boletim mimeografado: publicação como assessoria de imprensa

CAPÍTULO 4: ANÁLISE DO BOLETIM E DA CONSTRUÇÃO DO JORNAL

4.1. Práticas do Sem Terra (formato, linguagem, públicos)

4.1.1 Boletim mimeografado: publicação como assessoria de imprensa

Na primeira fase do boletim, que compreende 19 edições regulares e duas edições especiais, em quase um ano (15 de maio de 1981 a 2 de abril de 1982), quem assina é a Campanha de Solidariedade aos Agricultores Sem Terra, representada pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Comissão Pastoral da Terra do Rio Grande do Sul e, a partir do número 5, pela Pastoral Universitária.

Importante ressaltar que é o período de efervescência da comunicação popular, conforme apresentando por Regina Festa (1988), no primeiro capítulo. O boletim se inclui ainda no contexto de publicações ligadas a organizações, como descreve a autora: “[...] de 70 a 78 marca a existência de processos de comunicação popular atrelada, efetivamente, à

educação e à cultura popular, através de organizações políticas que instrumentalizaram adequadamente a comunicação” (FESTA, 1988. p. 21).

Em todo esse período, o boletim é mimeografado, grampeado, com conteúdo central disposto em forma de texto corrido (em uma edição apenas o texto aparece em duas colunas; na edição especial da Romaria o formato é de cartilha), sem fotos (apenas com algumas exceções na capa).

João Pedro Stedile, um dos principais dirigentes do MST, relata em entrevista à autora, que a intenção do boletim naquele período era divulgar a luta para as entidades que apoiavam, e havia grandes dificuldades materiais para fazê-lo:

No início era pra ser apenas um boletim do acampamento, distribuído nas entidades, o que já não era fácil. Porque tinha que rodar em mimeógrafo e botar no correio, não era para panfletear. Claro que se aproveitava as reuniões e distribuía, mas eu lembro que os primeiros números eram distribuídos para sindicatos, entidades, na base do correio. Então dava muito trabalho, tinha que dobrar, grampear, selar, datilografar os endereços. Não tinha fita adesiva, etiqueta, computador. Tudo era manual. Foi assim que surgiu que o Sem Terra (STEDILE, entrevista à autora, 2012).

Os textos, salvo raras exceções, não são assinados. A linguagem é sóbria e direta, no discurso jornalístico. Quando são apresentadas cartas ou outras manifestações dos colonos, há sempre o título identificando e assinatura. Nesses casos, a linguagem é informal e não segue as normas da língua escrita. As reproduções de cartas dos colonos demonstram que os responsáveis pela redação do boletim não editavam esses textos – ou ao menos mantinham alguns de seus traços peculiares de expressão – o que diferencia a linguagem do restante do informativo. Quando há citações de falas de acampados, não há referência a ninguém em especial, mas há o recurso das aspas como forma de sinalizar a voz de alguém que não o autor do texto.

Podemos observar que a publicação de cartas dos colonos cumpre um papel de uma assessoria de imprensa dos acampados. Da forma como o próprio jornal se apresenta, o público-alvo é a população externa ao acampamento, os apoiadores e formadores de opinião.

O jornalista que acompanhou todo esse período, Vladimir Araújo43, relata em entrevista à autora, que nesta fase o boletim funcionava como um “sistema divulgação das lutas dos trabalhadores da Encruzilhada para a imprensa”:

Nós fazíamos uma espécie de ponte para a imprensa. O que acontecia: eles mandavam as informações pra nós, notas, bilhetes, uma série de coisas. Aqui, na sede do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, que era onde funcionava a

43 O nome do jornalista nos boletins e no Jornal Sem Terra aparece como Flademir Araújo. No entanto, a

central dessas entidades que apoiavam. […] Aí chegavam essas coisas, essas informações, a gente redigia, preparava um boletinzinho, fazia em mimeógrafo, né? E aí toda, não sei quantas vezes mais, toda semana fazia uma coletiva de imprensa e o pessoal entregava aquelas informações, aquele material para a imprensa, e já aproveitava e acrescentava coisas, porque era muito dinâmico na época, né? A cada dia tinha uma enormidade de fatos, a própria imprensa não conseguia acompanhar. Alguns tinham jornalistas lá permanentes. Aí o jornalista ia lá, ficava um período, mas não podia ficar o tempo todo. E o movimento iniciou e não parou mais. Então eles retornavam pra base aqui em Porto Alegre, mas precisavam manter esse contato direto. E aí o contato era nós, essa frente de apoio e em particular alguns jornalistas, eu e outros, com a equipe do movimento de direitos humanos que produzíamos isso (ARAÚJO, entrevista à autora, 2012)..

Há algumas críticas difusas a “setores da imprensa” (edição 14), por não pautarem as causas geradoras da concentração da propriedade e do êxodo rural, o que retoma críticas feitas à imprensa hegemônica no capítulo 1, em especial sobre a descontextualização da cobertura.

Mesmo assim, percebe-se que até este momento a cobertura dos jornais sobre o tema não era tão negativa, como pode se constatar pela reprodução de matérias do jornal Zero Hora44. A publicação gaúcha chegou a receber o prêmio “Esso” por reportagens sobre a Encruzilhada, e a repórter Ivone Cassol diz em seu discurso de agradecimento que os jornalistas tiveram inclusive o papel de começar a campanha de solidariedade. Essa mesma ideia é repetida em texto da edição 33.

O jornal não é ainda organizado por editorias, mas algumas seções se repetem com certa frequência e pode-se concluir que cumpriam esse papel. São elas: “História de um povo oprimido”, “Campanha de Solidariedade”, “As terras no estado” e “A luta pela terra no país”.

Apesar de esses temas reforçarem o caráter externo da publicação, há indicativos de que ela também cumpria um papel internamente, como demonstra um texto assinado pela irmã Maria Izabel, uma das duas freiras da Congregação Jesus Crucificado, que estavam morando no acampamento. Ela relata: “Á tardinha, todos se reúnem diante da cruz para reza do terço, também o violeiro e o gaiteiro lá estão para animar o canto. Depois da reza do terço a Comissão faz as comunicações das cartas que chegaram das notícias que saíram no jornal, se tem algo a resolver, todos são chamados a dar sua opinião” (BOLETIM SEM TERRA, n°

44 A análise de Berger (2003) sobre a construção discursiva do jornal gaúcho, já na década de 1990, sobre o

MST, “como uma construção acerca dos movimentos políticos que se opõem ao sistema/governos” (idem: 128), compreende que: “[...] a construção de sentido se fez pela combinação dos sem-terra que invadem, resistem, degolam; o governo que busca soluções e a Justiça que julga. Como todo movimento social, o Movimento Sem Terra é injusto e violento”. (idem: 189). Não é nosso foco aqui a cobertura específica do jornal Zero Hora, mas podemos perceber uma inflexão da cobertura no sentido de criminalizar as ações do Movimento e de seus militantes. Em maio de 2002, o MST do Rio Grande do Sul decidiu por não mais dar entrevista para nenhum veículo da rede RBS, incluindo o Zero Hora, “em protesto contra as recorrentes distorções e mau uso das declarações feitas por representantes do MST, além da cobertura abertamente hostil de suas atividades” (CARTER, 2010, p. 224).

4: 3) Por esse trecho, percebe-se a relevância do boletim também para o público interno da ocupação.

Maria Salete Campigotto, uma das acampadas na época, lembra, em entrevista à autora, que se fazia a leitura do jornal em grupos “pro pessoal estar informado”. Ela também cita as reuniões perto da cruz, e identifica esses encontros como uma forma potente de comunicação, “quase uma rádio”:

[...] porque outro espaço de comunicação que nós tínhamos era interno no acampamento também, né? Tinha umas caixinhas de som, uma corneta. Todos os finais de tarde, era um espaço muito usado a oração. Não sei se éramos tão cristãos assim, ou se também esse espaço a gente aproveitou pra politizar, né? Mas todos os finais de tarde a gente se reunia, fazia a leitura da Bíblia e ao mesmo tempo todas as cartas que vinham de apoio, alguma notícia importante do jornal, o incentivo a ler o jornal, ali outras notícias, era feito nesse momento. As pessoas que vinham dar apoio tinham a palavra nesse momento, no som, pra todo mundo escutar. Era quase uma rádio, né? Mas nós não chamávamos de rádio (CAMPIGOTTO, entrevista à autora, 2012).

Outra característica importante dessa fase do boletim é a importância da comunicação entre os agricultores, potencializada pelo boletim. São publicadas cartas de lavradores do Norte, relatando suas dificuldades e desencorajando os colonos dos sul a irem pra lá. Esse tipo de comunicação – direta, mas mediada - contribuía para reforçar a reivindicação central do movimento nesse período: a necessidade de assentar as famílias no próprio Rio Grande do Sul, e não em projetos de colonização em outros estados.

O trecho abaixo, de carta dos acampados, demonstra o entendimento e a importância desse diálogo:

Depois ofereceram pra nóis terras na Bahia. Num tal projeto de Serra do Ramalho e no Lago do Sobradinho. O INCRA disse que lá tinha de tudo. Parecia o paraíso. Mas depois que inventaram o correio e as comunicações não dá mais pra sê enrolado, assim no mais. Pois nós fomo tirar explicação dos sindicatos de lá. Eles nos mandaram uma carta, que é uma tristeza. Disseram que tem vaga naqueles projetos porque nem os baianos agüentaram. Que lá não tem assistência nenhuma, que as terras são fraca, e que recentemente só numa agrovila, parece que a 13, morreu mais de 40 crianças. Mas o INCRA pensa que nós somo colono burro, fácil de enganar... (BOLETIM SEM TERRA, agosto de 82: 9).

Por este exemplo, podemos concluir que o Boletim cumpria também o papel de fazer a ponte entre agricultores em diferentes pontos do país.