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CAPÍTULO 1 – DA COMUNICAÇÃO DE MASSA À CONTRA-HEGEMONIA

1.6 Comunicação popular

Na tentativa de conceituar a comunicação popular, Peruzzo (1998, p. 125) coloca que

7 Teologia difundida na América Latina após a Conferência de Medellín (1968), que realizou uma profunda

crítica ao modelo de desenvolvimento capitalista, colocando em primeiro plano a necessidade de “libertação” das classes pobres e marginalizadas. (CELAM, 1988)

ela “não tem um fim em si mesma, mas relaciona-se com um pleito mais amplo. É meio de conscientização, mobilização, educação política, informação e manifestação cultural de um povo”. A pesquisadora chama a atenção para o fato de que a comunicação popular não se dá de forma isolada, e deve ser estudada em sua relação com o entorno, com os meios massivos, com as contradições da sociedade em que está inserida. “E também se verá que o popular não é homogêneo, porque é pluralista e histórico” (Idem, p. 135).

São os meios grupais, impressos, visuais, sonoros e audiovisuais: festas, celebrações religiosas, teatro popular, música, poesia, jornalzinho, boletim, mural, panfleto, cartilha, folheto, cartaz, faixas, camisetas, fotografias, filmes, vídeos, cassete-fóruns, sequências sonorizadas de slides, discos, alto-falantes, carros de som, programas radiofônicos, troças carnavalescas, etc (Idem, p. 148).

Esse tipo de expressão das classes populares recebeu atenção da Igreja, que fomentou o surgimento de diversos instrumentos de comunicação, especialmente nas décadas de 1960 e 1970, inspirados pelos ideais de libertação e participação. Coloca esse tipo de “terceira via da comunicação” com os termos: participativa, alternativa e popular, entendidos como “sinônimos para denominar um novo tipo de comunicação” (CELAM, 1988, p. 102).

A menor compreensão dos termos corresponderia à intensificação do protagonismo popular nas diversas fases do processo de comunicação, assim como à radicalidade do projeto de mudança social estrutural exigida por este tipo de comunicação, não só como efeito, mas também como causa. A comunicação como parte de um todo coerente, exigente e condicionante (CELAM, 1988,, p. 102).

Como características comuns a esse tipo de comunicação, que faz o contraponto à “comunicação massiva”, o Departamento de Comunicação Social do Conselho Episcopal Latino-americano descreve seis elementos: o exercício efetivo do direito de receber mensagens; exercício do direito de emitir mensagens; direito ao diálogo; vinculação da comunicação a outras formas de participação social; ubiquação da participação comunicacional no marco de um projeto de nova sociedade que seja coerente (protagonismo do povo, sociedade justa).

Percebemos que esses elementos são basicamente os mesmos daqueles apontados por Peruzzo (2006), que dá ênfase à forma de participação dos envolvidos no processo. Segundo a autora, a comunicação popular foi também denominada de alternativa, participativa, horizontal, comunitária e dialógica. Mas para ela o sentido político é o mesmo: “o fato de tratar-se de uma forma de expressão de segmentos excluídos da população, mas em processo de mobilização visando atingir seus interesses e suprir necessidades de sobrevivência e de

participação política” (PERUZZO, 2006, p. 2).

Em síntese, a comunicação popular e alternativa se caracteriza como expressão das lutas populares por melhores condições de vida que ocorrem a partir dos movimentos populares e representam um espaço para participação democrática do “povo”. Possui conteúdo crítico-emancipador e reivindicativo e tem o “povo” como protagonista principal, o que a torna um processo democrático e educativo. É um instrumento político das classes subalternas para externar sua concepção de mundo, seu anseio e compromisso na construção de uma sociedade igualitária e socialmente justa (PERUZZO, 2006, p. 4).

A autora defende que o outro termo para classificar esse tipo de comunicação seria “comunitária”, na medida em que atenda a alguns critérios, “tais como não ter fins lucrativos, propiciar a participação ativa da população, ter propriedade coletiva e difundir conteúdos com a finalidade de educação, cultura e ampliação da cidadania” (idem, p. 9).

Festa (1988, p.10) é mais direta e coloca a comunicação popular como parte dos processos “que buscam compreender o fenômeno da comunicação no nível das bases sociais”. Já a comunicação alternativa seria aquela ligada ao “nível médio da sociedade civil”. Esse último tipo de comunicação diz respeito a publicações de caráter cultural e político, ligadas a grupos de oposição ao regime militar. Já a comunicação popular está diretamente ligada ao surgimento dos movimentos sociais, e, “sobretudo da emergência do movimento operário e sindical, tanto na cidade como no campo” (Idem, p. 25).

A autora destaca que a comunicação popular emergiu durante da década de 1970 no Brasil, “decorrente de processos anteriores” (idem, p. 18), principalmente das articulações e materiais promovidos pelas CEBs. Ela cita inclusive um boletim lançado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 1975, em apoio à reforma agrária. Aponta ainda que no início da década de 1980 a “imprensa chega ao campo” e cita “boletins e pequenos jornais editados por centros de educação popular, da corrente sindical” e outros, ligados à CPT. Havia também nesse período um núcleo de correspondência, que atuava como “primeira agência popular de notícias”.

Pelos elementos colocados acima, defendemos que o periódico analisado nesta pesquisa – o Jornal Sem Terra – se situa dentro desse campo de comunicação popular, ainda que com ressalvas e diferenças frente ao entendimento de todos os elementos do processo. Frente às problematizações em torno de “comunitária”, “alternativa” e outros, visto a falta de consenso conceitual entre os autores, ficamos com o termo popular pelo seu potencial

político, conforme explica Marilena Chauí (1986) ao buscar definir a cultura popular:

Embora de difícil definição, a expressão Cultura Popular tem a vantagem de assinalar aquilo que a ideologia dominante tem por finalidade ocultar, isto é, a existência das divisões sociais, pois referir-se a uma prática cultural como Popular significa admitir a existência de algo não-popular que permite distinguir formas de manifestação cultural numa mesma sociedade (CHAUÍ, 1986, p. 28).

A filósofa traça as diferentes visões a respeito da noção de “povo” e “popular”, colocando que há a perspectiva romântica, que vê o povo de um ponto de vista idealista, identificando o popular com o primitivo, simples, sensível, iletrado, comunitário, irracional, puro, natural. A cultura popular seria assim a resistência ao Iluminismo e à razão, vista como guardiã da tradição e do passado, peça de museu. Já o Iluminismo divide o “Povo” em uma concepção de verdade universal e legislador soberano, de um lado, e como “povinho ou populacho” a particularidade social dos pobres.

Essas duas visões influenciaram fortemente o debate brasileiro sobre “povo” e “cultura popular” e possibilitou ainda fusões: quando a Razão – na forma de vanguardas políticas – vai ao Povo para ilustrá-lo.

Para se contrapor a essa ambiguidade perigosa, Chauí traz o conceito de hegemonia, desenvolvido por Gramsci. Ela explica que a perspectiva marxista se diferencia da romântica e da ilustrada na medida em que não se centraliza pelo conceito de povo ou popular, mas pelo referencial de luta de classes, em que uma classe explora e domina a outra, com a legitimação e naturalização ideológica.

A novidade gramsciana consiste em considerar que o conceito de hegemonia inclui o de cultura como processo social global que constitui a “visão de mundo” de uma sociedade e de uma época, e o conceito de ideologia como sistema de representações, normas e valores da classe dominante que ocultam sua particularidade numa universalidade abstrata. Todavia, o conceito de hegemonia ultrapassa aqueles dois conceitos: ultrapassa o de cultura porque indaga sobre as relações de poder e alcança a origem do fenômeno da obediência e da subordinação; ultrapassa o conceito de ideologia porque envolve todo o processo social vivo percebendo-o como práxis, isto é, as representações, as normas e os valores são práticas sociais e se organizam como e através de práticas dominantes e determinadas. Pode-se dizer que, para Gramsci, a hegemonia é a cultura numa sociedade de classes (CHAUÍ, 1986, p. 21).

Em seu estudo sobre a forma de existência da cultura popular – em relação com a cultura dominante, com contradições e assimilações – a autora destaca a importância de se falar também do termo “contra-hegemonia”, pois a hegemonia não existe “apenas passivamente na forma de dominação”. Como processo vivo, a hegemonia passa também por movimentos de oposição e luta que são em alguma medida controlados, incorporados ou

transformados pelo processo hegemônico.

Consideramos que a experiência de comunicação popular do MST, o Jornal Sem Terra, se situa como parte desse processo de resistência, oposição e embate com o projeto hegemônico, por isso a importância de se resgatar alguns elementos da contra-hegemonia.