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CAPÍTULO 2: QUESTÃO AGRÁRIA E LUTA PELA TERRA NO BRASIL

2.9 Luta pela terra no Rio Grande do Sul

É importante fazer uma contextualização, ainda que breve, da luta pela terra no estado gaúcho, por ter sido ali o palco da ocupação que deu origem ao Boletim Sem Terra, a Encruzilhada Natalino, conforme será discutido no próximo capítulo. Para entender o contexto do final da década de 1970 e início de 1980, é importante recuperar a história do Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master), fundando no final dos anos de 1950, período de governo de Leonel Brizola, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Depois de uma bem-sucedida gestão na prefeitura de Porto Alegre, o trabalhista, herdeiro político de Vargas, levou a cabo um governo classificado como “de um campo de esquerda muito heterodoxo” (Vainfas, 2007, p. 486).

Totalmente afastado do modelo soviético e do ideal de uma revolução socialista, mas próximo dos comunistas no tocante ao nacionalismo com viés antiimperialista, e à defesa da classe operária, bandeiras do trabalhismo na versão mais combativa da carta-testamento de Vargas, sem falar no seu entusiasmo pela reforma agrária (VAINFAS, 2007, p, 486).

35 Um exemplo da força do movimento grevista no campo foi a greve de Pernambuco, que chegou a reunir 240

mil trabalhadores, de 42 sindicatos da Zona da Mata, que passou a ser conhecida como “modelo Pernambuco”, se estendendo para outros estados do país (MEDEIROS, 1989).

Brizola defendia ideias que não se alinhavam ao marxismo clássico, e propunha “soluções nativas” para resolver os problemas do Brasil. No caso do campo, dava “decisivo apoio aos acampamentos de trabalhadores sem terra que começavam a surgir no estado no final dos anos 50” (Medeiros, 1989, p. 61). Dessas ocupações – dentre elas, da fazenda Sarandi, em Ronda Alta – foi constituído do Master, e Brizola o declarou como instituição de utilidade pública. O governo estadual criou ainda o Instituto Gaúcho de Reforma Agrária (Igra), com a intenção de criar núcleos de instalação dos agricultores.

Essa proximidade com o governo estadual, contudo, é identificada por Stedile (2005) como uma das causas da derrota política do movimento, mesmo antes do golpe de 1964:

Até mesmo porque ele foi derrotado politicamente em 1962, não em 1964, quando veio o golpe militar. A decadência do Master começou quando Leonel Brizola saiu do governo, em janeiro de 1963, e porque ele não conseguiu se constituir como um movimento social autônomo. Estava muito vinculado ao antigo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) (STEDILE, 1995, p. 17).

Apesar dessa constatação da derrota do movimento, é importante destacar a vitória na desapropriação de parte da fazenda Sarandi pelo governo estadual. Foi montado um acampamento na beira da estrada, inicialmente com 300 pessoas e, dois dias depois, com mais de 1.300. (TEDESCO, 2007).

A capacidade de mobilização, aliada a algumas figuras mediadoras do PTB na região, bem como a intensa demanda pela terra na região, causou impressão e impacto em todos os setores da comunidade gaúcha, os quais, em geral reconheciam o problema e apelavam para solução na esfera pública (TEDESCO, 2007, p. 4).

O desfecho da ocupação foi a desapropriação de quase 22 mil hectares da fazenda. No entanto, diversas outras ocupações não tiveram o mesmo desfecho e a reforma agrária não foi implementada no Rio Grande do Sul.

Como o problema dos agricultores sem terra não foi resolvido com a desapropriação de parte da fazenda Sarandi, muitas famílias que não foram beneficiadas com um lote se deslocaram mais para o norte do estado, para uma reserva indígena, na cidade de Nanoai. A reserva, de mais de 15 mil hectares, era reconhecida pelo governo desde 1847. No entanto, a própria Funai e outros órgãos públicos estimulavam a ida de posseiros para a região que, no final da década de 1970, já contava com mais de 1.200 famílias não indígenas. (MORISSAWA, 2008).

No final dos anos de 1970, os indígenas caingangue – ou Kaingang – expulsam esses

Com o processo de conscientização da causa indígena, os Caigangs de todo Sul se organizaram, levaram gente do Paraná e de Santa Catarina e fizeram uma bela ocupação contrária, ou seja, reocuparam a terra que era deles por lei, que estava legalizada, e com isso expulsaram os pequenos agricultores. Expulsaram de uma maneira violenta, claro, pois num dia tiraram todos da área. Eram umas 1.400 famílias de pequenos agricultores, foi um problema social tremendo. […] O governo acenou com a possibilidade de parte dos agricultores ir para outro lugar. O Incra montou uma grande operação para levá-los para Terra Nova, no Mato Grosso. Mas cerca de 500 famílias se recusaram. A cultura do gaúcho diz: 'Lugar de gaúcho é no Rio Grande... daqui ninguém nos tira' (STEDILE, 1997) 36.

Depois disso, parte dessas 500 famílias que se recusaram a ir para projetos de colonização participou de duas ocupações de terras, das glebas Macali e Brilhante, que pertenciam à antiga fazenda Sarandi, mas que não haviam sido distribuídas e foram posteriormente griladas. Gaiger (1987) acrescenta a esse grupo os desalojados pela construção da barragem de Passo Real. “Em ambos os casos, os camponeses reivindicavam seus direitos legais de recuperar as terras no Rio Grande do Sul, enquanto o Estado lhes propunha o ingresso nos projetos de colonização no centro-norte do país”. (GAIGER, 1987, p. 21).

Carter (2010) descreve o contexto das ocupações e enfatiza o papel da Igreja, na figura do padre Arnildo, na decisão de partir para a ação.

De repente, no meio de suas reflexões, o grupo teve um momento epifânico. Perceberam que seu sofrimento era como o dos israelitas sob a opressão do faraó. Assim como o povo hebreu, também precisariam escapar da servidão, romper as correntes da miséria e marchar rumo à Terra Prometida. Juntos, teriam a força de Moisés. Um clima de empolgação envolveu a austera cozinha da paróquia. Com as esperanças renovadas, os camponeses se comprometeram a organizar os parentes e vizinhos sem-terra e lutar pela sua libertação (CARTER, 2010, p. 200).

Além da forte influência religiosa que sustentou a decisão – o que demonstra a formação de uma consciência de classe mesclada com elementos das ideologias que os cercavam, conforme discutido no capítulo 1 – é relevante destacar a participação de padre Arnildo, figura-chave nos primeiros anos do boletim, e de João Pedro Stedile, um economista que participou deste processo e se tornou uma das principais lideranças do MST.

Depois de um ano de resistência, em 1979, parte das famílias foi assentada pelo governo. Quem não foi contemplado com lotes continuou em peregrinação e ainda participou de outra ocupação, em parte da fazenda Annoni, na mesma região. Foram despejados e algumas lideranças presas. Foi feito ainda um acampamento no centro de Porto Alegre, e

outras famílias acabaram sendo assentadas em Rondinha e Palmeira das Missões (MORISSAWA, 2008).

Apesar de o problema da falta de terra ainda estar longe de ter sido resolvido, essas mobilizações tiveram o mérito de agrupar os trabalhadores antes dispersos, e apontaram para a ferramenta de luta que viria a ser a característica principal do movimento então em gestação: a ocupação de terras. Como observa Gaiger:

Embora essas ações não tenham excedido o objetivo imediato de retomada da terra, elas tiveram efeito exemplar apreciável para os camponeses sem terra dispersos na região e, desta forma, instauraram uma nova relação entre os camponeses e o sistema vigente: a posse da terra deixa de ser uma questão individual, ao léu das forças e das oportunidades econômicas, e torna-se objeto de uma ação coletiva conflitual, demandando estratégias e decisões políticas (GAIGER, 1987, p. 22). Foram ainda os remanescentes desse processo que protagonizaram outra ocupação de terras: a Encruzilhada Natalino, onde nasceu o Boletim Sem Terra.

Importante ressaltar que as ocupações e pressões citadas acima foram fruto de um cenário de marginalização dos trabalhadores rurais pobres, excluídos da modernização do campo, que significou basicamente a mecanização das lavouras e a produção em larga escala para o mercado externo. Esse processo, que aconteceu em alguma medida em todo o território nacional, teve efeitos agudos no Rio Grande do Sul, principalmente a partir do final dos anos de 1960. Gaiger (1987, p. 10) observa que “uma massa crescente de trabalhadores rurais se viu privada de suas terras e foi obrigada a incorporar-se ao mercado de trabalho assalariado, senão a migrar em direção ao centro-norte do país” . A falência dessas soluções individuais levou esses grupos a alternativas coletivas e organizadas.

Stedile (2005) acrescenta que o fenômeno da soja – tanto no Rio Grande do Sul como no Paraná – expulsou grandes contingentes populacionais naquele período. “Do ponto de vista socioeconômico, os camponeses expulsos pela modernização da agricultura tiveram fechadas essas duas portas de saída – o êxodo para as cidades e para as fronteiras agrícolas” (STEDILE, 2005, p. 17). A saída coletiva encontrada passa a ser, então, as ocupações de terras vazias.