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CAPÍTULO 2: QUESTÃO AGRÁRIA E LUTA PELA TERRA NO BRASIL

2.6 Lutas camponesas com projeto e jornais – PCB e Ligas Camponesas

2.6.2 Liga

A origem das Ligas Camponesas, que na década de 1960 se organizavam em mais de 10 estados brasileiros, está ligada à expulsão dos foreiros26 com a crise da cana-de-açúcar, conforme foi mencionado acima. Em 1955, surgiu, no Engenho da Galileia, em Vitória do Santo Antão, uma associação de foreiros denominada Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco, uma sociedade civil, e não um sindicato, devido à burocracia da época para se registrar uma organização.

Ameaçados de despejo e endividados, os camponeses se reuniram em associação. Entre os dirigentes da entidade estava Paulo Travassos, antigo militante do PCB. O idealizador do movimento, José dos Prazeres, também havia sido dirigente do partido, e participara da criação da Liga de Iputinga. Segundo Medeiros (1989), a presença dessas pessoas significa a continuidade das lutas no estado, apesar das divergências das Ligas com o PCB.

A princípio a organização constituiu-se de uma “sociedade civil beneficente, de auxílio mútuo, cujos objetivos são, primeiramente, a fundação de uma escola e a constituição de um fundo funerário [...]” (BASTOS, 1984, p. 19).

A partir da constituição de um grupo organizado, surgem as primeiras ações violentas de coerção. É nesse momento que “começam as intimidações, as chamadas à delegacia de polícia, as intimidações” (Idem, p. 19). Em decorrência, os trabalhadores atam o primeiro

26 Os foreiros eram uma variante dos 'moradores' das fazendas. Tinham que pagar uma quantia anual – o foro –

contato com Francisco Julião, deputado estadual recém-eleito pelo Partido Socialista.

Julião torna-se o principal interlocutor da Liga Camponesa de Galiléia e, através das lutas judiciais, ganha fama e seu exemplo desencadeia rapidamente o surgimento de várias outras Ligas pelo país, o que surpreende o próprio deputado, pois “nascida de objetivos modestos – obter fundos para a criação de uma cooperativa de plantadores de verdura, pagar uma professora ou comprar caixões de defuntos – as Ligas se transformaram uma explosão de vida” (RANGEL, 2000, p. 100).

À medida que adquiria notoriedade, a Liga de Galiléia somava forças e com isso, em 1959, por meio da Assembleia Legislativa de Pernambuco, o engenho é desapropriado, um marco na luta camponesa pela reforma agrária.

O que marcou a ação das Ligas Camponesas nesse período foi o fato de os camponeses irem às ruas, realizando marchas, comícios, congressos, procurando não só reforçar sua organização interna como ampliar sua base de apoio nas cidades e, dessa forma, colocar-se ao abrigo da repressão dos proprietários. Ao mesmo tempo, lutavam pela desapropriação do engenho Galiléia, o que conseguiram do governo estadual em 1959. Tais ações projetaram as Ligas nacionalmente, alimentando o debate sobre a natureza da propriedade da terra e a necessidade da reforma agrária (MEDEIROS, 1989, p. 48).

Uma de suas frentes de ação também era a edição de um jornal, denominado Liga, que começou a circular em outubro de 1962. Francisco Julião, seu diretor até a última edição, de abril de 1964, escreve no editorial, assinado, de apresentação do jornal:

Agora já não é, apenas, Liga Camponesa. A ponte se constrói, a aliança se estreita, entra a cidade e o campo. É a hora da Aliança Operário-Camponesa, reforçada pelo concurso dos estudantes, dos intelectuais revolucionários e outros setores radicais da população. É hora da LIGA. […] Dedicado a levar ao poder o Povo, com a classe operária à frente, pelo seu alto nível de organização de consciência política […] (LIGA, outubro de 1962, grifo meu).

Mais adiante, expõe qual sua discordância em relação à tática do PCB:

A contenção do movimento popular tem sido pedida em nome de um frente única que tem tido como consequência a renúncia das classes trabalhadoras em dirigir o processo histórico brasileiro. A tarefa histórica das massas operárias e camponesas não é a de se atirarem à luta, de empenharem o seu sofrimento para que um setor da burguesia substitua o outro no poder, mas sim a de se unirem para liquidar todo o sistema de dominação (LIGA, outubro de 1962).

A crítica à tática do PCB também é feita por Martins (1981), que analisa que a classe de proprietários de terras não era composta por latifundiários stricto senso, mas por

capitalistas. Não faria sentido lutar contra restos feudais ou apenas contra os fazendeiros improdutivos, visto que o arrendatário capitalista e o proprietário não compunham classes sociais diferentes.

O autor reforça que não só não fazia sentido uma aliança com a burguesia como esta efetivamente tomou proveito das mudanças promovidas, e inclusive pautou seu projeto de modernização do campo após o golpe de 1964. Apesar de não deixar explícito, o autor apresenta com certa simpatia o tipo de reforma agrária preconizada pelas Ligas Camponesas: radical, com a propriedade camponesa e sem alianças com a burguesia.

É importante considerar que as Ligas Camponesas enfrentavam disputas internas e que Julião representava uma parte da organização, talvez seu braço mais institucional. Apesar de suas propostas radicais e polêmicas, não há indicativos que Julião tenha tido participação efetiva nos esforços guerrilheiros que começavam a se articular nas Ligas. Em 1963, criaram- se duas seções nas Ligas Camponesas do Brasil, a Organização Política (OP) e a Organização de Massas (OM).

A OP traçou um plano de 6 meses de capacitação dos militantes e de construção orgânica na maioria dos estados brasileiros. Em junho de 1964, deveria se realizar o I Congresso das Ligas Camponesas do Brasil, para aprovar suas teses programáticas, seus novos estatutos e eleger sua direção definitiva, mas o golpe militar de abril interrompeu todo esse processo (MORAIS, 1969, p. 64).

No entanto, o jornal Liga refletia a linha tocada por Julião, que era seu diretor e assinava muitos artigos. A publicação tinha textos e ilustrações voltados para o camponês e seu modo de vida, além de denúncias de trabalho escravo e baixos salários, notícias de greves, novidades da revolução cubana, matérias de política internacional, cultura, artigos para estudo, uma coluna sobre a imprensa popular, informações sobre o movimento estudantil e artigos sobre a luta no Brasil.

Figura 2 Capa da primeira edição do Jornal Liga, de out. de 1962, dirigido por Francisco Julião

Nesse sentido, caberia estender também às Ligas a crítica feita por Martins do campesinato ser incluído no projeto dos outros, pois ele era visto como um elo importante na luta, mas ela seria levada a cabo mesmo pelo operariado urbano, que seria o condutor do processo revolucionário. Pode-se perceber também um tom paternalista e condescendente

com o homem do campo, de onde se infere que ele não tinha acesso direto à produção do jornal.

Para termos um exemplo da visão pejorativa do camponês, mais um artigo retirado da primeira edição do jornal. Não está assinado, mas ou foi escrito por Julião ou contou com sua anuência e aprovação. O nome é “O camponês é camponês” e defende a importância da aliança operária-camponesa-estudantil como uma necessidade histórica para a hegemonia política da classe operária. O texto coloca a importância de se conhecer as especificidades de classe do campesinato, reforçando que “são duas ideologias: a camponesa e a proletária”.

No entanto, em contraposição à crítica de Giocondo, a camponesa é apresentada assim: “Tais características são, em geral, o personalismo, o individualismo pequeno- burgueses”. O camponês é colocado com um possível entrave à economia socialista, pois defenderia a propriedade de sua terra, cabendo ao “proletariado conduzir os destinos da reforma agrária”. Ao trazer para o momento atual e para a necessidade da luta, reforça: “tem- se de ver o camponês como de fato o é: o camponês é um camponês é um camponês (está

repetido no original, não fica claro se é um erro de digitação ou um reforço de linguagem). É

místico, é individualista e paciente” (JORNAL LIGA, outubro de 1962).

Essas características, no entanto, não diminuem o impacto que as Ligas Camponesas tiveram no momento em que o Nordeste passava a ocupar a atenção dos políticos e intelectuais. As Ligas representaram uma radicalidade do processo de luta camponesa e entraram para o imaginário popular como exemplo de organização.27