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CAPÍTULO 4: ANÁLISE DO BOLETIM E DA CONSTRUÇÃO DO JORNAL

4.1. Práticas do Sem Terra (formato, linguagem, públicos)

4.1.4 Jornal Sem Terra: do Sul para o Brasil

Consideramos que a edição 36, de julho de 1984, marca a primeira da quarta fase, pois é quando a publicação passa a se chamar Jornal dos Trabalhadores Sem Terra, com identidade visual no título e capa colorida. É este jornal que dá notícia da fundação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Essa fase vai até o número 43, pois é o primeiro número do jornal já sediado em São Paulo, onde está até hoje. A maioria das edições tem 16 páginas – com exceção da 42, que traz uma cobertura especial do Congresso de consolidação do movimento, com 20 páginas.

No expediente da edição 36, o Jornal é identificado como uma publicação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra da Regional Sul (RS, SC, PR, SP e MS). Desta vez, aparecem dois editores. Além de Flademir, assina Rafael Guimarães. Outras cinco pessoas, cada uma de um estado, aparecem na Reportagem. A tiragem foi de 10 mil exemplares.

O texto, publicado na página 2, “Depois de três anos, um novo desafio”, contextualiza a decisão de se criar o Jornal. Parte das decisões do encontro de Curitiba, a leitura foi de que o movimento “era reconhecido como organização autônoma e necessitava de um órgão de

divulgação forte, amplo, que atingisse todo o país”. Ainda segundo o texto, a partir de setembro de 83, o boletim passa a refletir discussões internas, e desde a edição 33 – que comemora a vitória de Ronda Alta – demonstra o “amadurecimento político dos lavradores”: “Eles já não estavam apenas preocupados em conseguir um pedaço de terra, mas já falavam em Reforma Agrária e entendiam que a política agrária do país servia apenas aos interesses dos grandes latifundiários e das multinacionais” (JORNAL SEM TERRA, nº 36, p. 2).

Apesar de ficar claro que o jornal será escrito por uma equipe de jornalistas – dez pessoas, contando os colaboradores - destaca que “o êxito do jornal depende fundamentalmente dos próprios lavradores sem terra. Eles é que deverão sugerir matérias, discutir com seus companheiros, sugerir assuntos e avaliar seu conteúdo” (idem, p.2).

Na edição 38, pela primeira vez aparece uma propaganda institucional do Jornal Sem Terra, com a publicação do cupom de assinatura:

O Jornal dos Trabalhadores SEM TERRA é o órgão de divulgação das lutas dos trabalhadores rurais sem terra do Sul do país. Surgiu como um boletim, há três anos, defendendo a causa dos trabalhadores rurais e a luta por Reforma Agrária.

Você pode ajudar a manter viva essa luta fazendo uma assinatura – normal ou de apoio – do SEM TERRA, preenchendo o cupom abaixo (JORNAL SEM TERRA, n° 38p. 15).

Nesta edição 42, de fevereiro de 1985, pela primeira vez, o jornal deixa de ser da Regional Sul e é identificado como uma publicação mensal do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. O último jornal de nossa análise – referente aos meses de março/maio de 1985 - traz o texto “Aos leitores”, na página 2, que justifica o atraso na edição pela mudança de endereço. Reforça que esta é a oitava edição desde a transformação do boletim. Junto ao agradecimento, um chamando à colaboração. A novidade no expediente é a inclusão de Sérgio C. Canova como editor, ao lado de Flademir Araújo, que continua como responsável.

Vladimir recorda o período como uma consolidação do movimento nacionalmente: Daí foi em 84. Não, em 85. Foi no I Congresso Nacional deles. Porque aí o Sul tava consolidado. Foram fazendo assim: Rio Grande do Sul estava consolidado, começou aqui. Atacaram o Sul, Santa Catarina e Paraná. Consolidou. Aí tinha o jornal, as articulações, as reuniões, a comissão, enfim, tudo já em nível regional, região Sul. Consolidou, a coisa começou a crescer pro resto do Brasil. Se proliferou. Foi pro Norte, Nordeste, São Paulo. Bom, em 85 houve o primeiro Congresso Nacional. E aí nós nunca havíamos discutido situação nenhuma em relação ao jornal. Fomos lá cobrir o Congresso, uma equipe enorme de jornalistas, aí contratamos mais gente, fotógrafos, e todos os jornalistas que colaboravam nos outros lugares se encontraram lá também. Nós estávamos com equipe muito grande e nos dividimos durante todo o tempo do Congresso com as tarefas, tal. Tinha uma sala lá nossa, fazíamos entrevista o tempo todo. Foi gente pra filmar. Foi uma dinâmica de cobertura bem grande, bem interessante. Aí fomos lá para cobrir o Congresso, normal. Aí de repente decidem

que o jornal tem que ser o jornal, na hora ali, não sei quantas páginas, tamanho tabloide, não o que, do Brasil inteiro. Se virem. Aí foi uma loucura. Além do que fazer um jornal especial só sobre o Congresso. Aí voltamos pra Porto Alegre e tivemos dois meses para adaptar. Aí saiu o primeiro número do jornal nacional e dentro um encarte só sobre o congresso (ARAÚJO, entrevista à autora, 2012).

Stedile recorda que Vladimir e Sérgio Canova foram para São Paulo, onde participavam da reunião da direção, discutiam os assuntos a serem pautados junto com a secretaria nacional. Ainda de acordo com ele, foram experimentadas diversas formas de acompanhamento, mas havia uma confiança na equipe que tocava a publicação. O dirigente chega a dizer que havia uma “simbiose” entre os jornalistas e a direção, o que garantia uma unidade da linha política e editorial do jornal:

Não eram reuniões que decidiam, o jornal vai ser assim, assado. Ele ia acompanhando a própria evolução do MST, procurando ser fiel a essa identidade que ele sempre zelou. O jornal sempre foi o jornal dos que se aglutinaram ao redor do MST. Nem foi dos jornalistas, nem foi da direção. Ele teve essa simbiose, né? Porque no fundo ele tinha que transmitir nas suas páginas o que acontecia na vida real, com ocupações, com repressão, com assentamento, com cooperativas, enfim, com o que acontecia na vida real do movimento. Não tinha muito o que inventar, correr por fora. Se ele corresse por fora, ele já tinha desaparecido. Ele não teria eco. Assim como em determinadas épocas, claro, sempre vinham discussões de como massificar mais o jornal. Pensando em ir para a sociedade. Mas acho que à medida que fomos tendo mais força para imprimir mais número e pulverizar mais ele no território, também coincidiu com a evolução da tecnologia, das rádios comunitárias, a internet, que acabou então deixando o jornal impresso num outro patamar. E isso acho que contribuiu para o jornal refluir para uma condição de muito mais um jornal para nossa militância interna (STEDILE, entrevista à autora, 2012).

Essa conclusão de mudança de caráter do Jornal feita por Stedile se refere a um momento posterior ao da pesquisa, depois da saída de Vladimir como editor. Mas outras entrevistas reforçam o entendimento que, desde o início, o boletim e o jornal cumpriam um duplo papel: transmitir as ideias e realidade para fora do movimento e divulgar demais lutas e dar coesão interna à organização.

Neuri Rosseto, dirigente do MST que conheceu o movimento em Santa Catarina, acredita que:

Esse debate se o jornal é pra fora ou pra dentro do Movimento, se tinha que definir isso... Isso nunca me coube na cabeça, nunca me entrou essa necessidade. Os especialistas dizem que tem que saber.. pra nós tem funcionado, pô. Nós queremos que quem está fora conheça nosso Movimento, mas nós também sabemos que quem está fora tem muito a ensinar a quem está dentro (ROSSETO, entrevista à autora, 2012).

Apesar de a recepção não ser nosso foco nesta pesquisa, percebe-se que a própria definição do público-alvo define uma escolha de linguagem. Como o jornaloperou com essa

dupla intenção – dialogar com o público externo (principalmente nas duas primeiras fases) e também dar coesão internamente (com indicativos que foi assim desde o início, conforme depoimento anterior) – esbarra numa dificuldade concreta que é a dificuldade de leitura de sua base social. Apesar de não considerar a linguagem um problema específico, conforme entrevista citada anteriormente, o jornalista responsável, Vladimir Araújo, escreve que:

Durante longo período, o Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (do MST) colocou em prática, nas comunidades rurais, uma espécie de círculo de leitores, em que voluntários liam, em seções coletivas, o jornal para as pessoas iletradas ou analfabetas. Todavia, esse tipo de recurso não resolvia o problema de fundo que era o da imprecisão do público a ser atingido pela principal publicação da organização (ARAÚJO, 2009, p. 74).

Depoimento de Salete Campigotto reforça essa ideia. Ela diz que, como educadora e coordenadora de um grupo dentro do acampamento da Encruzilhada Natalino, fazia leituras em voz alta do boletim e de “coisas da CPT”.

Neuri Rosseto também recorda do incentivo à leitura do jornal, que era usado como motivador dos debates:

Como ele [o Jornal Sem Terra] tinha esse trabalho de dar unidade, as reuniões sempre começavam com alguma leitura do jornal. Ou o editorial, ou uma notícia, ou algo do estado. Sempre teve. No começo, nas reuniões o jornal sempre estava presente. O jornal tinha que chegar nas escolas. Isso era sempre incentivado, fazer a leitura de forma coletiva. Ele já chegava de uma forma coletiva. Ele não ia individualizado, ele ia em pacote. Isso já era por si só um incentivo pra fazer a leitura em grupo e discussão. E era novidade. O jornal sempre chegava com o apelo de algo novo. Não tinha outra comunicação, outro jeito. Ele tinha um apelo de reunir as pessoas para fazer a discussão. Ele chegava num momento apropriado, numa reunião... Às vezes voltava com uma e outra observação dos estados. Tinha um retorno que o jornal foi lido. Isso sempre teve. Isso é do período histórico. Cumpria com o que a gente queria, a unidade. Intencionalidade da leitura coletiva. Ler o editorial foi um processo de educação. Ali estava a posição do Movimento (NEURI ROSSETO, entrevista à autora, 2012).

As entrevistas apontam que houve uma transição, processual, para um caráter mais interno do Jornal Sem Terra, com tratamento diferenciado das pautas e temas, cumprindo mais um papel aglutinador (que pode se aproximar da ideia de jornal partidário de Lênin, apresentada no capítulo 1) do que de difusor para a sociedade.

Acho que aí era um misto, entre divulgar para a sociedade, sobretudo aliados, igreja, sindicatos. Me lembro que teve uma época que nós mandava para praticamente todos os sindicatos de trabalhadores rurais, mandava para todos os bispos, mandava para um grande número de paróquias. Era uma interlocução para fora do Movimento, mas com aliados. E devagarzinho ele começou refluir, na medida que o próprio Movimento começou a crescer, para ser um instrumento de comunicação para a militância, que é o que acho que é hoje. Ele acaba sendo um instrumento muito mais interno (STEDILE, entrevista à autora, 2012).

No entanto, não é essa a característica central do período analisado. Percebemos, pelo conteúdo e linguagem, assim como pelas entrevistas, que a publicação, nesses quatro anos analisados, funcionava tanto como uma ferramenta de divulgação para os apoiadores – prestação de contas da campanha de solidariedade, por exemplo – como para articulação com outras regiões em luta pela reforma agrária. Seu papel também interno, como se pode observar pelas entrevistas, não era o objetivo central.