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3.3. Lugar de histórias: o palco lisboeta para os refugiados

3.3.3. Do bosque para o mundo

Figura 4 Cena do espetáculo "Do bosque para o mundo"

O imaginário infantil e o modo como os mais jovens tendem a enxergar e viver as crises e tragédias que acometem o mundo atual entraram em foco no processo de criação da Companhia Formiga Atómica. O espetáculo “Do Bosque para o Mundo” retrata a história de Farid, um menino afegão, de 12 anos, que, enviado por sua mãe, precisa deixar o Afeganistão ao lado do seu irmão, Reza, em direção à Inglaterra, mas logo ao início da viagem, os irmãos são separados e Farid tem de continuar sua jornada sozinho. Para além da perigosa travessia do Mar Mediterrâneo, o espetáculo narra a trajetória de Farid, que precisa passar por sete países até conseguir chegar ao seu destino.

“Do Bosque para o Mundo” representa a história de um jovem refugiado que a todo tempo vivencia situações que o colocam entre a vida e a morte e, assim, acaba por confrontar os espectadores com a dureza e a coragem, fazendo-os refletir e olhar suas próprias histórias. A narrativa firma-se em um relato particular verdadeiro, mas que acaba por mesclar e exprimir situações comuns a outras milhares de crianças refugiadas.

O que se destaca é o impulso criador do espetáculo que consistia, inicialmente, em criar uma encenação, encomendada pelo Teatro Municipal São Luiz, ideal para ser trabalhada com crianças a partir dos 10 anos. O grupo propôs desenvolver um trabalho a partir das histórias tradicionais em sua dimensão mais original que, aos olhos de hoje, são mais violentas e menos romantizadas, com vista a explorar uma certa missão

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iniciática de preparar as crianças para as dificuldades e dureza do mundo e pensar como esses contos tradicionais, nessa missão preparatória, se podiam cruzar com as histórias da atualidade, nomeadamente as grandes questões como a crise econômica e as alterações climáticas.

Para tanto, os idealizadores do grupo, Miguel Fragata e Inês Barahona, desenvolveram uma extensa pesquisa de campo a fim de recolher dados e informações sobre as problemáticas do mundo atual e como estas questões são vividas e perspectivadas pelas crianças. Em meio ao processo de pesquisa, as notícias sobre os refugiados e a crise humanitária que acometia agressivamente o continente europeu àquela altura tomaram a atenção dos criadores. O desejo inicial de explorar a perspectiva das crianças face às problemáticas atuais passou a centrar-se unicamente em torno da crise dos refugiados, com foco nos relatos e histórias de crianças que, desprotegidas, atravessavam os países em busca de refúgio.

Nesse interim, Miguel e Inês decidiram contar a jornada de Farid, uma história verdadeira, mas também imaginada. Uma história impossível, mas factual. Uma história angustiante e poética que, para além de Farid, é a história de tantas outras crianças, em que se verificam, recorrentemente, episódios de muita tensão envolvendo agentes, e traficantes de pessoas, extorsão de dinheiro, dificuldades e enganações. Para Miguel Fragata, na altura do processo de pesquisa, a questão dos refugiados estava mais vívida, contudo, era visível, em Portugal, uma carência de envolvimento e discussão em relação ao tema que ocasionava um certo distanciamento na sociedade, o que, por conseguinte, favorecia um espaço de ideias prontas e preconceitos. Assim, o sentido na criação do espetáculo propõe a concepção de relações de empatia, de maneira que a história de Farid pudesse estimular os espectadores a projetarem suas próprias vivências neste menino refugiado.

A encenação é composta por duas atrizes que abordam a narrativa numa alternância entre o contar, representar, comentar e promover inquietações sobre a história. Numa abordagem clara e objetiva, as atrizes assumem o papel de intermediárias do envolvimento emocional e racional dos espectadores com a jornada de Farid. Elas contam e, em determinados momentos, vivem intensamente a narrativa, criando uma movimentação constante de aproximação e distanciamento. Em entrevista, Miguel Fragata salienta a importância de não ter escolhido um ator para interpretar Farid, vez que não há intenção de estabelecer um jogo de ator-personagem, mas contar uma história na qual os espectadores pudessem se relacionar e projetar suas próprias visões em personagens que não estão visualmente marcados e, por isso, podem ser como cada espectador os imaginarem. Há, portanto, uma busca por humanização e

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empatia que firma uma transversalidade assente na ideia de que Farid, sua mãe e seu irmão, são personagens muito próximas de nós, não obstante as diferenças culturais existentes.

O espetáculo teve estreia em Lisboa, em novembro de 2016, e, posteriormente, em Paris, com uma versão francesa. Percorreu diversos sítios em Portugal, tendo integrado na programação do Festival TODOS e, no verão de 2018, foi destaque no Festival D’Avignon, em Paris. Além de Paris o espetáculo teve algumas apresentações da versão francesa na Bélgica e conta com um total de mais de 70 apresentações já realizadas e outras sessões programadas até novembro de 2020.

A Formiga Atómica é uma companhia teatral idealizada por Miguel Fragata e Inês Barahona, cuja missão centra-se na criação artística. Toda a trajetória da companhia está voltada para as artes do espetáculo, em que se desenvolvem projetos em co-produção com os teatros da cidade. Para além da criação de espetáculos, a companhia desenvolve outras atividades como pontos de partida do processo criativo de cada projeto, nomeadamente oficinas, conferências, workshops e pesquisas de campo. Assim, são sempre propostas encenações que abarcam questões contemporâneas e, em geral, constituem espetáculos para toda a família.

Diferentemente das demais companhias abordadas, a Formiga Atómica não dispõe de uma sede e conta apenas com quatro integrantes, sendo Miguel Fragata responsável pela encenação, Inês Barahona dedica-se à dramaturgia, Clara Antunes e Luana Rabelo desenvolvem a produção. Assim, como já mencionado, todos os projetos idealizados pela companhia dependem de co-produção para acontecerem, contando, pontualmente, com apoios da Direção Geral das Artes. Constata-se que esse caráter um tanto nômade da companhia não limita o desenvolvimento de um trabalho consistente e participativo com as comunidades, pelo contrário, permite que se estabeleçam contatos de alcance mais alargado a nível de público. A companhia propõe projetos fundamentados em períodos de pesquisa de campo, motivados pela temática e/ou público-alvo, que favorecem uma relação de proximidade com as comunidades, tanto do ponto de vista artístico, no sentido de explorar e conhecer verdadeiramente a postura e os olhares do público-alvo para a questão, quanto no sentido de criar uma relação de proximidade com uma comunidade de interesse direto ao tema como forma de recrutar público.

Para além desse aspecto distintivo, nota-se a presença de um denominador comum: a ausência de colaboração com refugiados e/ou instituições especializadas. Não obstante o desenvolvimento de um período prévio de pesquisa, o processo criativo

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do espetáculo “Do bosque para o mundo” não contou com nenhuma colaboração direta de refugiados ou de pessoas especializadas na temática. A construção dramatúrgica foi fundamentada em depoimentos e testemunhos reais de refugiados que foram encontrados a partir de uma pesquisa documental e notícias de jornais e demais meios de comunicação.

Em termos de enquadramento financeiro, o espetáculo foi o resultado da co- produção com o Teatro Municipal São Luiz e, em razão de ter sido, inicialmente, uma encomenda feita por este teatro, a companhia não buscou outros apoios externos. Diante da repercussão, a nível internacional, a versão francesa do espetáculo contou com uma co-produção com o Théâtre de la Ville, em Paris. Por conseguinte, o espetáculo classifica-se enquanto obra comercial sujeita à compra de sessões, estando disponível para digressão. Em geral, os ingressos para o espetáculo têm um custo variável entre 5€ e 15€, de acordo com a definição de cada teatro em que se apresenta. Sem dúvida, o caráter comercial que marca fortemente não só o espetáculo “Do bosque para o mundo”, mas a própria companhia teatral, apresenta-se como um diferencial no alcance em termos de público, tendo em vista a longa trajetória de sessões realizadas por todo o território nacional e a abrangência de comunidades francesas e belgas. Embora Miguel Fragata assevere um certo grau de intimidade, uma proximidade em escala direta que é exigida pela narrativa e pela estética do espetáculo, que demanda apresentações em salas menores, as sessões do espetáculo contaram com uma média de 150 espectadores por sessão. Nota-se que há muita procura e muito público, a ponto de manterem ativas sessões por mais de três anos.

Quanto ao perfil do público, Miguel Fragata aponta para a diversidade dos espectadores, com forte presença do público especializado, que mantém-se regular e fiel, bem como um público associado ao tema por questões particulares. Ressalta-se a grande procura por parte de docentes, com vista a desenvolver a temática com seus alunos. Contudo, constata-se uma exiguidade de interesse por parte das entidades especializadas, uma vez que, conforme informado em entrevista, houve diversas tentativas de contato com instituições associadas ao tema, mas nenhuma resposta. De modo semelhante, o setor público demonstrou pouco interesse, tendo sido manifestada apenas intenção da Câmara Municipal de Lisboa para a realização de uma sessão que não chegou a se concretizar.

Diante disso, é perceptível que, não obstante a força, a repercussão do espetáculo e a recorrente procura por parte do público, o setor público e as entidades especializadas no acolhimento e integração de refugiados em Lisboa mantiveram-se

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apáticos e distantes. Contudo, o espetáculo mantém-se aceso e continua cumprindo sua função enquanto arte do espetáculo que possibilita a fruição estética ao mesmo tempo que assevera seu cariz político, promovendo uma experiência de diálogo e reflexão.