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3.3. Lugar de histórias: o palco lisboeta para os refugiados

3.3.4. Diário de um Migrante

Figura 5 Fotografia do espetáculo "Diário de um migrante"

Os desafios e dificuldades das migrações forçadas transformam-se na história de um pássaro que tem de abandonar seu país e tentar recomeçar a vida em outro lugar. O espetáculo “Diário de um migrante” conta a história deste pássaro que, por conta da guerra, é forçado a separar-se de sua família e partir para um novo país, enfrentando diversas dificuldades que o obrigam a se reinventar a todo instante e a ressignificar as coisas e situações por onde passa. O espetáculo tem como base o livro homônimo, com texto de Maria Inês Almeida, ilustrações de Ana Sofia Gonçalves e edição da Dinalivro, que aborda o universo das migrações a partir do ponto de vista poético e metafórico, de maneira que a representação do refugiado torna-se um ser conhecido, uma espécie de pássaro, cuja história mescla sonhos e realidades.

A concepção do espetáculo traduz-se num trabalho conjunto e colaborativo entre os diretores, João Garcia Miguel e Rita Costa, e a cenógrafa, Ana Sofia Gonçalves, no seguimento de uma encenação que preserva a narrativa aberta e onírica do livro. A concepção artística propõe uma obra alquímica, uma encenação sem muitas palavras, de forte expressão performativa e plástica que engloba desde o teatro de objetos à mímica, do exercício do clown ao contador de histórias. Assim, o espetáculo dá a conhecer uma realidade de forma intensa e emotiva aos espectadores, ao mesmo tempo que representa uma mensagem de esperança, a partir de uma linguagem mais

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gestual, musicalizada e ritmada. Um drama contado por imagens e movimentos que ganham forma no trabalho do ator em interação com os objetos de cena e com o cenário.

Malas, chapéus, plantas, coisas do cotidiano formavam o cenário, de modo a estabelecer um diálogo com as cenas, ou seja, à medida que a peça avanaçava, os objetos de cena eram transformados e ressignificados indicando alterações a nível de tempo e espaço, bem como em relação às nuances ente o sonho e a realidade. Tudo isso também se comunicava com a música produzida ao vivo pelo violinista Gil Dionísio. Assim, a encenação se caracteriza como um processo de reaprendizagem, de recomeço e, por isso, de esperança. O espetáculo perfaz uma trajetória que finda com a representação do novo lar do pássaro migrante, com todos os objetos transformados, que resultam numa espécie de manta de retalhos, como uma metáfora da técnica de colagem presente na ilustração do livro.

O espetáculo é uma montagem da Companhia João Garcia Miguel (Cia JGM), cujas práticas artísticas caracterizam-se por um certo experimentalismo performativo e pela preocupação com o papel do artista enquanto investigador e interventor social. Além da companhia, foi estabelecida uma parceria com o Teatro Ibérico, tendo em vista que o diretor artístico João Garcia Miguel assumiu a direção da Associação Teatro Ibérico desde 2016. A Cia JGM é uma estrutura financiada pelo Governo de Portugal, pela Secretaria de Estado da Cultura e pela DGArtes, enquanto o Teatro Ibérico é uma estrutura apoiada pela Câmara Municipal de Lisboa, pela Junta de Freguesia do Beato e pelo Instituo de Emprego e Formação Profissional (IEFP).

O espetáculo “Diário de um migrante” contou com um apoio limitado a determinadas apresentações do Ministério da Cultura e da DGArtes, embora João Garcia Miguel afirme, em entrevista, que a fase inicial de preparação, montagem e produção do espetáculo se desenvolveu sem apoios financeiros externos, sendo o primeiro recurso financeiro uma oferta de compra do espetáculo feita pelo Colégio Pedro Arrupe que resultou uma ante-estreia em janeiro de 2018, seguida de três sessões, no anfiteatro do colégio com uma audiência de aproximadamente 1.500 pessoas59. Seguidamente foram estabelecidas relações com entidades e instituições, o Alto Comissariado para as Migrações (ACM), da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e dos Jovens, que, embora não tenham promovido apoios estritamente financeiros, proporcionaram uma série de pequenos apoios que viabilizaram algumas apresentações.

59 Informações presentes no Dossier do Espetáculo, disponível em:

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Ressalta-se que, como mencionado no item 3.1, a Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR) promoveu um projeto que teve como ponto de partida o livro “Diário de um migrante” que serviu de base para este espetáculo. Embora a instituição informe em seu site oficial a realização deste projeto no âmbito de atividades teatrais e de artes plásticas, restou constatado, após entrevista, que o espetáculo teatral foi uma iniciativa da autora e da ilustradora do livro que propuseram o desafio, ao diretor artístico João Garcia Miguel, de montar uma encenação teatral. Não obstante as constantes tentativas de contato por parte da Companhia João Garcia Miguel, a associação do espetáculo com a PAR só passou a acontecer em maio de 2018, culminando na organização de sessões do espetáculo, de 15 a 21 de outubro de 2018, no Teatro Ibérico.

Destarte, o envolvimento da PAR a nível do projeto “Diário de Migrante” se desenvolveu inicialmente apenas no âmbito das artes plásticas, através de atividades realizadas pela ilustradora do livro e cenógrafa da peça, Ana Sofia Gonçalves, a responsável por criar a primeira versão da história, que correspondia apenas às ilustrações. Assim, o projeto “Diário de um Migrante” realizado pela PAR consistia na dinamização de atividades de artes plásticas a partir das ilustrações do livro, sob a mediação de Ana Sofia Gonçalves, numa missão de voluntariado na vertente PAR Linha de Frente Grécia, no contexto dos centros de refugiados em Atenas e Lesbos. Por conseguinte, o projeto agregou o espetáculo teatral, de modo que a PAR viabilizou as apresentações em outubro de 2018, envolvendo a participação de comunidades de refugiados enquanto espectadores.

De forma geral, o espetáculo “Diário de um migrante” alcançou um grande reconhecimento público, mesmo tendo uma trajetória de vida curta. Um espetáculo que nasceu de vontades particulares, sem muito investimento financeiro, mas que tocou uma imensidão de espectadores, dentre os quais se destacam crianças, jovens estudantes e comunidades de refugiados amparadas pela PAR. Ao todo, foram cerca de 27 apresentações em escolas, teatros e anfiteatros de Portugal e Espanha, com bilhetes ao custo máximo de 5€, tendo, ainda, sido promovidas sessões gratuitas e sessões beneficentes nas quais a receita da bilheteria era convertida em prol da PAR.

Para além das 27 sessões planejadas, o espetáculo recebeu várias oportunidades de compra de sessões por parte de instituições escolares, pela própria PAR e órgãos públicos. Porém, o espetáculo teve sua trajetória artística interrompida em virtude dos valores exorbitantes exigidos a nível de direitos autorais por parte da autora Maria Inês Almeida, o que inviabilizou a continuidade das apresentações. Ademais, havia um projeto de levar o espetáculo para os centros de refugiados da

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Grécia, associados à vertente PAR Linha de Frente, mas que também não pôde ser concretizado.

Em termos de recepção teatral e de avaliação do impacto social do espetáculo, pouco é possível mensurar. Para o diretor artístico João Garcia Miguel, falar do impacto social do espetáculo é algo complexo que exigiria um contato maior e mais profundo com os espectadores, além de salientar que grande parte do público correspondia a crianças que estavam começando sua formação estética, social e humana. Nesse sentido, é possível afirmar que o espetáculo cumpriu seu propósito de sensibilizar os públicos quanto ao drama, desafios e dificuldades inerentes ao universo dos refugiados sem priorizar traumas, violências, terror nem vitimização, mas afirmando uma perspectiva de esperança, de redescoberta e reinvenção de si mesmo.

Nota-se uma certa carência em termos de debates e/ou conversas mediadas sobre a temática das migrações forçadas, embora João G. Miguel tenha ressaltado ser difícil de estabelecer discussões com os públicos deste espetáculo, vez que a grande maioria era crianças e jovens estudantes, de modo que as conversas ao final das sessões acabavam por ser opiniões de curiosidades e reflexões proferidas pelos professores e demais adultos que assumiam a função de porta-vozes dos alunos.

Por fim, constata-se que o espetáculo era capaz de alcançar algo muito maior, uma vez que existia interesse, por parte de várias entidades, em promover mais apresentações, além da possibilidade de alargar o alcance de públicos escolares, em razão da forte relação mantida com agrupamentos de escolas, bem como a possibilidade de uma maior projeção a nível internacional, haja vista as relações com teatros espanhóis e os centros de refugiados na Grécia.