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A temática da integração social constitui ponto recorrente nos debates da Comissão Europeia, ocasionando uma diversidade de estudos e propostas de ações e iniciativas com vista a combater as situações de exclusão social, preconceitos, discriminações e casos de xenofobia, principalmente em decorrência do aumento da migração internacional. Levando-se em consideração que o estado de bem-estar das comunidades residentes está diretamente associado à coesão social, a integração tem vindo a ser encarada como um aspecto multidimensional que vai além das questões financeiras e de empregabilidade.

Ainda que a questão material detenha o foco principal nas estratégias de combate às situações de desvantagem e exclusão social, as propostas atuais apresentam uma nova preocupação concernente à esfera sociocultural da integração, que enfatiza a aplicação positiva das artes para a redução das situações de exclusão. Nesse sentido, em boa parte do Ocidente, principalmente nos países anglo-saxônicos, o recurso à dimensão artística enquanto instrumento privilegiado de intervenção social tornou-se fundamental para o direcionamento de investimentos públicos no setor cultural (Belfiore, 2002; Belfiore e Bennett, 2010). Contudo, ao enfatizar as artes para

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fins políticos, sociais e emancipatórios, evidenciam-se também os embates sobre os valores e significados das artes e uma certa tensão manifestada entre o valor da arte em si mesma e o seu valor instrumental (Melo, 2014).

Nesse sentido, as reflexões acerca das expressões artísticas enquanto instrumentos facilitadores do redesenvolvimento social, com vista à coesão e integração social e à competição econômica, incitam o assentamento do paradoxo de que, por um lado atribui-se importância quantitativa e maior legitimidade às artes, e, por outro, a instrumentalização, no sentido de enfatizar a função social, política e econômica sobrepondo fins utilitários, parece reduzir a especificidade e a autonomia das áreas artísticas (Melo, 2014), conduzindo à perda do valor da “arte pela arte”.

Com efeito, sobressaem duas linhas de compreensão neste contexto, quais sejam as perspectivas essencialista e pragmatista. A corrente essencialista evidencia que o valor e a relevância das artes se fundamentam na dimensão estética, sob o argumento de que a arte é uma área autônoma, cuja valoração está em si mesma e não em propósitos e fins utilitários (Melo, 2014). Essa perspectiva foi amplamente defendida desde o Renascimento, abalizada nas ideias de Kant de que “as obras de arte não têm propósito fora de si mesmas, não servem qualquer outro fim e são, portanto, livres de qualquer finalidade ou função” (Melo, 2014, p. 86), perdurando pelo século XIX com a teoria esteticista.

Por outras palavras, os artistas que defendem estas teorias da arte pela arte transformaram a sua posição marginal nos mercados artísticos e literários da época num distintivo de honra, onde a não mercantilização e a inutilidade (para fins práticos) da sua arte tornaram-se não só a sua marca registada, mas uma afirmação estética, moral e política e o fundamento para o seu maior terreno ético. A missão da arte pela arte e o esteticismo em geral podem, portanto, ser vistos como uma parte de um conjunto de valores alternativos aos sublinhados pelo funcionamento do mercado e do sistema capitalista florescente (Melo, 2014, p. 87).

A consolidação da teoria esteticista remonta-nos à ascensão capitalista e à valorização da arte enquanto produto de valor econômico. Conforme assinala Ernst Fischer (1966), após o século XIX, a esfera artística como um todo foi introduzida em um mundo de produção capitalista de mercadorias que, embora tenha viabilizado o aperfeiçoamento de novas forças de produção artística, favorecendo o desenvolvimento de trabalhos diversos e inovadores, produziu implicações aos níveis da produção, da circulação e do consumo resultando na mercadorização da arte e, de certa forma, legitimou uma concepção artística mais conservadora e elitista, reproduzindo e

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perpetuando hierarquias culturais e, concomitantemente, dificultando o acesso às massas populares (Molyneux, 1998 apud Carmo, 2014).

No entanto, a produção artística no mundo contemporâneo pode proporcionar, simultaneamente, a reprodução de um tratado institucional elitista e hierárquico, e a representação de espaços autônomos, de perspectivas sociais e políticas. Em oposição, ressalta-se a perspectiva pragmatista que assevera a existência dos efeitos sociais das artes e dos bens culturais, em defesa da percepção instrumental. Reforça-se o caráter didático, formativo e emancipatório inerente às práticas artísticas, legitimando a compreensão de que promover o “encontro com as artes (...) propicia a aquisição e o desenvolvimento de conhecimentos e competências técnicas, intelectuais, expressivas, emocionais e relacionais” (Fortuna, 2014, p. 126), ao passo que impulsiona potencialidades para superar adversidades sociais, econômicas ou mesmo simbólicas. Segundo Aristóteles, Hegel ou Marx, a arte, em qualquer das suas modalidades, gêneros ou estilos, constitui-se sempre numa forma sensorial de transmitir determinados conhecimentos, subjetivos ou objetivos, individuais ou sociais, particulares ou gerais, abstratos ou concretos, super ou infra-estruturais (Boal, 1977, p. 59).

Nesse sentido, Augusto Boal (1977) salienta que o teatro, especificamente, acaba sendo muito mais determinado pela sociedade em razão da sua relação imediata com o espectador e as suas capacidades dialética e de persuasão, de modo que as demarcações englobam tanto a concepção cênica, visual e externa, como o próprio conteúdo do texto.

Com efeito, é inquestionável a presença de oposições e dicotomias relativamente às artes, seus significados e funções, uma vez que tanto o conceito quanto o papel das artes estão permanentemente em mutação e evolução. Especificar os múltiplos tipos de arte implica caracterizar atributos decorrentes de um processo cultural específico que não possui validade de correspondência para todos os períodos históricos (Belfiore & Bennet, 2008). Todo o percurso histórico das artes possibilitou novos significados e atribuições, por essa razão, não pretendo apresentar uma descrição minuciosa e global de experiências artísticas nem discorrer acerca da dimensão estético-filosófica a fim de definir o que é arte, mas sim assinalar as práticas e tendências artísticas providas de significações e qualidades que, mesmo que não recebam o estatuto de obra, se enquadrem no âmbito da arte enquanto elemento constitutivo, com vista a explorar mais profundamente as disposições da arte social e política.

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O direcionamento de práticas artísticas para intervenções sociais, de caráter pedagógico ou terapêutico, é considerada uma invenção do século XX, embora existam algumas experiências anteriores que sugerem as capacidades didáticas, terapêuticas e formativas das artes, como por exemplo a catequização dos jesuítas através do teatro ou os tratados médicos que indicavam a expressão dramática para o tratamento de distúrbios mentais (Balme, 2011). Mas é realmente a partir dos anos 1900 que o interesse pelas artes como instrumentos de transformação, intervenção e participação se intensifica, tendo como um dos fatores cruciais a ascensão da psicanálise freudiana e, por conseguinte, a fundação do psicodrama de Jacob Levy Moreno, que reavivaram o interesse pela espontaneidade e pela improvisação.

Uma outra linha de instrumentalização das artes está relacionada com o caráter pedagógico e comunitário, numa vertente de caráter político, com vista a promover a emancipação através do jogo. Nesse contexto, com inegável relevância, ressalta-se o projeto Hull-House em Chicago, que desenvolveu novas estratégias de formação educacional, vocacional e artística destinadas aos migrantes provenientes de diversos países e às comunidades menos favorecidas, enfatizando o papel das artes para as dinâmicas de convivência.

A Hull-House refere-se a uma casa de acolhimento de migrantes recém- chegados aos Estados Unidos, fundada em 1889 por Jane Addams e Ellen Starr, com a finalidade de desenvolver e implementar atividades sociais e culturais. O projeto da

Hul-House adquiriu imensa proporção chegando a dispor de treze edifícios que, para

além das funções e serviços prestados, sediavam uma galeria de arte e alguns estúdios que ofereciam aulas de pintura, gravura e litografia, e, recorrentemente, realizavam exposições dos produtos e obras; uma escola de música, projetada para dar uma formação musical completa, estimulando o resgate e a preservação de canções tradicionais e culturais dos imigrantes através dos seus filhos, além de estimular a representação musical de situações sociais vivenciadas pelas pessoas; e possuía, ainda, um complexo voltado para o fazer teatral, com a finalidade de desenvolver dinâmicas e jogos (Addams, 1990; Balme, 2011).

A Hull-House apresentava um programa de artes fundamentado no estímulo à participação social, na valorização da criatividade e das diversas culturas dos migrantes, promovendo atividades que conduzissem à criação de novos laços, as relações interpessoais e intergeracionais, a novas formas de educação e transmissão de conhecimentos numa ação que comungava as artes visuais, a música e o teatro. Há, claramente, uma validação das artes como agente didático de justiça social, de reconstrução e reorganização de verdades morais, de reprodução e compreensão de

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situações sociais e domésticas, um veículo de auto expressão, mas também de recreação.

Por conseguinte, as iniciativas de arte comunitária ganharam relevância acadêmica a partir da década de 1980 com a publicação de Bernie Jones (1988) que, por meio de uma residência artística, realizou uma avaliação de projetos de arte comunitária com a finalidade de compreender os impactos resultantes de uma intervenção comunitária através das artes, refletindo acerca das relações entre arte e a contribuição para tomada de consciência e apreciação do patrimônio cultural e simbólico; as artes e o desenvolvimento do sentimento de pertença; as artes e a identificação comunitária; as artes e a participação nas questões da própria comunidade, apontando conclusivamente um conjunto de transformações positivas nas quatro áreas de investigação (Melo, 2014).

O estudo de práticas artísticas associadas à intervenção social incide, maioritariamente, sobre os impactos sociais produzidos, encarados como efeitos positivos sobre os indivíduos, asseverando o importante valor social das artes, relativamente às contribuições para a coesão social e empowerment e para os desenvolvimentos pessoal, identitário e comunitário. No entanto, convém ressaltar a preocupação em relação aos estudos de avaliação dos impactos sociais das artes, uma vez que não se pode olvidar a existência de aspectos negativos ou mesmo o fato de que uma iniciativa artística pode não desencadear efeito algum sobre os indivíduos participantes.

É importante enfatizar que, embora defenda que as artes, e principalmente o teatro, são atividades potencializadoras de competências e capacidades, seria incorreto presumir que as atividades artísticas produzirão efeitos sociais positivos em sua totalidade, muito menos que os efeitos podem ser generalizados. Para além da diversidade de estudos, projetos e iniciativas empenhados em legitimar os impactos sociais das artes, este argumento não está completamente consubstanciado, tendo em vista que não se pode afirmar que qualquer tipo de prática artística desenvolvida com qualquer tipo de grupo social e cultural produzirá efeitos sociais idênticos (MERLI, 2010).

É necessário ter em mente que propor uma intervenção social por vias artísticas implica o desenvolvimento de uma ação colaborativa e interdisciplinar, levando-se em consideração as contribuições de outras áreas de pesquisa relevantes, tais como a dimensão psicológica e sociológica da percepção das artes e da criatividade, uma vez que os produtos artísticos e culturais são resultado de um processo histórico e geográfico, de maneira que as “capacidades criativas são estimuladas pelas

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necessidades de inovação formadas anteriormente e pelas oportunidades oferecidas pelo contexto em que trabalham”23 (Merli, 2010, p. 115).

Desta maneira, não se pode negar que as atividades artísticas podem produzir efeitos sociais, estéticos e educativos, despertando interesses, proporcionando espaços de discussão e expressão que estimulam a participação ativa e desenvolvem competências diversas. Para Ernst Fischer (1963), a arte é, em sua essência, uma forma de socialização capaz de satisfazer uma pluralidade de necessidades humanas fundamentais, a nível relacional, comunicacional e de intermediação entre indivíduos e o meio. Para além de ser uma expressão laboral e um produto social, a arte está “intrinsecamente ligada às ideias e aspirações, necessidades e esperanças existentes numa situação sócio-espacial concreta” (Carmo, 2014, p. 115), desobscurecendo possibilidades e promovendo a compreensão e/ou a transformação da realidade observada e vivenciada.

Como já mencionado, por ser produto de um processo histórico-geográfico, a arte manifesta uma multiplicidade de funções, formas e expressões, a nível estético, social, político, didático e recreativo, cujo desenvolvimento conduz à interpretação e/ou ressignificação das realidades, podendo transcender e subverter experiências, relações e subjetividades. A partir do momento que o fazer artístico se mostra capaz de transcender, o seu caráter político se mostra atuante e, a partir da retomada e da reconstituição de valores, é possível conceber novas realidades nas quais estes valores possam prosperar. Assim, a atividade artística torna-se uma articulação simbólica, visual e material capaz de intervir na produção da realidade e na ressignificação de imaginários (Carmo, 2014).

Nesta investigação, encara-se a arte e, principalmente o teatro, enquanto prática essencialmente política, corroborando a ideia de Augusto Boal de que por ser uma atividade do ser humano o caráter político é inerente e, independente da finalidade, o fazer artístico irá contribuir para a reprodução do senso comum ou para a ruptura crítica e, por essa razão,

a distinção entre arte política e não-política é falaciosa pois, quer se trate de práticas artísticas que desempenham um papel importante na construção e manutenção de uma determinada ordem simbólica ou, pelo contrário, que visam a confrontação e desestabilização dessa mesma ordem, estamos sempre na presença de manifestações políticas (Melo, 2014, p.).

23 “(...) Their creative capacities are prompted by the needs for innovation, which had been formed in earlier times and by the opportunities offered by the context in which they work” (Merli, 2010, p. 115).

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Contudo, é quando a arte propõe a desconstrução e a confrontação da ordem que sobressaem as problemáticas acerca da realidade social que motivam a articulação de uma estética voltada para a transformação social, política e emancipatória. A arte social e política não segue uma convenção fixa, mas permite múltiplas configurações, admitindo diversas formas de práticas artísticas capazes de colaborar a ressignificação, a desconstrução e a confrontação da ordem dominante ao passo que sugerem engajamento e participação.