• Nenhum resultado encontrado

3.3. Lugar de histórias: o palco lisboeta para os refugiados

3.3.1. Eu também sou um refugiado

Figura 1 - Ilustração disponível no site: http://wordpress.teatrodoelefante.net/eu-tambem-sou-refugiado/

A performance intitulada “Eu também sou um refugiado” do grupo Teatro do Elefante (TdE), sediado na Freguesia de São Sebastião, em Setúbal, levou ao palco a ideia de que toda a gente tem em sua origem vivências de deslocamentos de territórios físicos ou mesmo culturais, ainda que não sejam propriamente forçadas como os refugiados, e que, no fundo, todos somos cidadãos com direitos e deveres semelhantes, “(c)om memórias, vontades, necessidades, desejos e anseios comuns, tenhamos nascido a norte ou a sul, num ou noutro lugar do mundo”53.

O princípio motivador do espetáculo nasceu a partir de um apelo em prol da solidariedade que tomou forma virtual com a campanha homônima “Eu também sou um

refugiado”54, que assentava na missão de romper com a passividade, com a indiferença e com o sentimento de impotência perante a crise humanitária que ocasionava o movimento de uma imensidão de pessoas que necessitavam deixar seus países em busca de asilo e proteção. A referida campanha foi uma iniciativa de um grupo formado

53https://ppl.pt/prj/eutambemsourefugiado

54 Para saber mais, acessar: https://falredept.wordpress.com/2016/10/18/campanha-eu-tambem-sou-

107

por Ana Evangelista, Idália Tiago, Ana Santos e Francisco Resto, cuja principal intenção consistia ajudar, intervir e apoiar pessoas refugiadas, além de alertar, sensibilizar e denunciar quanto à maneira como estas pessoas estavam a ser recebidas em Portugal.

O propósito da campanha, ainda que simbólico, marcava uma posição política de insatisfação face à má aplicação das leis, o desrespeito aos Direitos Humanos e, principalmente, face à ação tomada por alguns países de marcar pessoas refugiadas com uma pulseira de uso obrigatório. Destarte, a missão da campanha consistia na divulgação da realidade dos refugiados e na luta pela proteção e por um acolhimento digno realizada através de uma página virtual no Facebook55 e de um site próprio56 e, a partir destes meios, promoviam encontros e manifestações públicas, solicitavam a assinatura de petições e manifestos em favor dos refugiados e em defesa dos Direitos Humanos e, em troca, distribuíam uma pulseira com os dizeres: eu também sou um refugiado.

Figura 2Pulseira da Campanha "Eu também sou um refugiado"

Como forma de se solidarizar e apoiar a campanha e a temática dos refugiados, o Teatro do Elefante deu início a um processo de criação colaborativa, tendo como base histórias autobiográficas dos atores que compunham o elenco, ou seja, a gênese do espetáculo formou-se a partir das vivências pessoais dos atores que foram deslocados do seu estado de origem, ainda que entre cidades de Portugal e, portanto, fora do enquadramento legal de refugiados. Por conseguinte, a maneira como os atores viam e se relacionavam com esse movimento de deslocação vivenciado mesclava-se com testemunhos, histórias, palavras de ordem e dados informativos de refugiados e de pessoas que trabalhavam e acolhiam refugiados. A ideia central consistia em dar a conhecer as realidades dos deslocamentos como um aspecto de vida comum a uma grande porcentagem de pessoas que buscam melhores condições de vida, de trabalho

55https://www.facebook.com/Eu-tamb%C3%A9m-sou-Refugiado-581348978698765/

56 O site criado para a campanha não está mais no ar, contudo, estava disponível neste endereço:

108

e de sobrevivência, de modo a promover por toda a encenação os contrastes entre vidas mais privilegiadas e as vidas sofridas, violentas e traumáticas dos refugiados.

O TdE possui, em sua essência, uma forte dimensão social e se configura como uma cooperativa sociocultural atuante desde 1997 em Setúbal, tendo como missão, para além da produção e criação de espetáculos, a organização de eventos e serviços de cariz sociocultural assentes na linguagem teatral. Nesse sentido, o TdE promove o desenvolvimento de atividades artísticas e culturais firmadas na preocupação com a solidificação da relação entre os artistas e as comunidades locais, de modo a propor a divulgação de obras literárias nacionais e universais e ações de formação e difusão das artes dramáticas e performativas. Na esfera da animação cultural, o TdE desenvolve projetos com comunidades em articulação com as Juntas de Freguesia de São Sebastião e do Sado, nomeadamente campos de férias direcionados a crianças e adolescentes, que decorrem de forma anual no verão, além da realização de Atividades de Enriquecimento Curricular (AECs), em parceria com a Federação Concelhia de Setúbal das Associações de Pais (COSAP) e o Agrupamento de Escolas de Sebastião da Gama.

O TdE dispõe, ainda, de um setor voltado para a primeira infância com espetáculos que enfatizam a interação direta entre artistas e público, um programa de animação de rua com espetáculos essencialmente multidisciplinares que englobam as linguagens do teatro, da música, da dança e das artes circenses com ênfase nas tradições festivas populares e, por fim, dispõe de uma esfera internacional com vista ao desenvolvimento de projetos e eventos variados com o Brasil, Sri Lanka e países europeus.

Diante disso, é possível afirmar que os trabalhos desenvolvidos pelo TdE detêm uma forte consistência sociocultural que garante ao grupo o reconhecimento enquanto cooperativa de relevante atuação artística e cultural em âmbito português e internacional. Na sequência, em termos de enquadramento financeiro, o grupo conta com um apoio regular da Câmara Municipal de Setúbal, somado aos rendimentos decorrentes da realização dos projetos e eventos já citados e os apoios financeiros de caráter mais específico que provém da Direção Geral das Artes (DGArtes) e da Fundação Calouste Gulbenkian. Ademais, o TdE dispõe do apoio da Junta de Freguesia de São Sebastião, em Setúbal, nomeadamente em relação às instalações cedidas para o desenvolvimento do trabalho do grupo.

Contudo, no que concerne especificamente ao espetáculo “Eu também sou um

109

Municipal, especificamente em relação à permissão para a estreia do espetáculo na Casa da Cultura57 em Setúbal, o TdE não contou com nenhum tipo de auxílio financeiro externo. Em entrevista, Fernando Casaca, diretor artístico do TdE, assevera que toda a concepção do espetáculo foi de iniciativa do grupo e todas as despesas necessárias foram despendidas a partir dos rendimentos próprios da cooperativa. Ressalta-se que o TdE criou uma página virtual no âmbito de crowdfunding58, mas que, sem doações, não

surtiu efeito. Nesse interim, não obstante os esforços, “Eu também sou um refugiado” teve uma trajetória curta, marcada por cerca de seis apresentações dentre as quais três foram realizadas no Concelho de Setúbal e as demais nas regiões de Palmela e Loures, com bilhetes ao custo de 5€.

Nesse seguimento, é inevitável não questionar os motivos da ausência de apoios financeiros. Não houve procura suficiente de financiamento por parte do TdE? Não houve interesse dos apoiadores em razão da temática? Para Fernando Casaca, o grupo fez o que pôde para promover o espetáculo e aponta uma falha na forma como se desenrola as relações entre as entidades públicas de Setúbal e as propostas de realização de espetáculos artísticos, nomeadamente em termos de apoios, vez que para estas instituições, ceder um espaço público para a apresentação consiste um suporte suficiente. Por outro lado, há que se constatar também a falta de resposta por parte da própria sociedade portuguesa no que concerne à tentativa de crowdfunding. Embora não haja nenhuma garantia de conquistar o financiamento pretendido com a inscrição do projeto numa plataforma de financiamento colaborativo, a campanha para a performance “Eu também sou um refugiado” não conseguiu arrecadar nenhuma doação entre 26/01/2017 a 24/02/2017.

Não obstante, o espetáculo ganhou forma e contou com a promoção nos meios de comunicação local e regional, distribuição de convites, e-mails e divulgação nas plataformas digitais e redes sociais. Contudo, o orçamento reduzido foi um dos grandes obstáculos para incitar uma vida mais longa para o espetáculo. Em entrevista, Fernando Casaca salienta, com certo pesar, que os objetivos da performance não foram de todo alcançados em razão do número de sessões extremamente reduzido, embora afirme não se sentir insatisfeito com os resultados. As poucas sessões promoveram encontros com um público diversificado, com a presença de espectadores especializados, no sentido de grupos de teatro e pessoas com interesse pela causa. Ao final de cada sessão, elenco e público debatiam opiniões e perspectivas em rodas de conversa, das

57 Espaço polivalente que dispõe de uma sala multiuso destinado para as apresentações teatrais. Ver mais em: http://www.casadacultura-setubal.pt/

110

quais Fernando Casaca assinala uma quase unanimidade de respostas favoráveis e positivas quanto ao acolhimento digno de refugiados em Portugal, ressaltando ter se deparado com uma única reação contrária. Por fim, embora não tenha sido possível ponderar acerca do alcance do espetáculo em termos quantitativos de público, nota-se que a performance teve uma visibilidade razoável, com resultados favoráveis.

3.3.2. “Migraaaantes”

Figura 3 Fotografia do espetáculo "Migrantes"

A atual crise humanitária e as milhares de histórias de deslocações forçadas de pessoas que buscam desesperadamente uma vida digna, sem guerras e sem fome na Europa foram questões que, para além da esfera profissional, tocaram um ponto íntimo de vivência pessoal do escritor, poeta e jornalista Matéi Visniec, autor da peça “Migraaaantes” encenada pela Companhia de Teatro de Almada (CTA), com direção artística de Rodrigo Francisco. Visniec é nacional da Romênia e foi, ele próprio, um refugiado, tendo suas peças sido censuradas no período da ditadura de Nicolae Ceaușescu, obrigando-o a deixar seu país em 1987, recebendo asilo em França. Além da sua experiência como refugiado, Matéi Visniec teve amplo acesso a materiais sobre a temática das migrações e refugiados e realizou uma pesquisa de campo em Grécia, Itália, Turquia e Tunísa, com contato direto com pessoas refugiadas e histórias que inspiraram a criação do texto teatral.

“Migrantes” retrata a problemática dos refugiados a partir de uma perspectiva que privilegia os problemas e dificuldades existentes no processo de acolhimento dos mais variados tipos de migrantes, evidenciando uma forte crítica ao tratamento legal que tem sido sustentado pelos países e governantes no sentido de distinguir refugiados de outras tipificações de migrantes, nomeadamente os econômicos. O texto de Visniec não

111

enfoca o caráter pessoal da dor, ao contrário, busca a universalização de dramas individuais, com personagens complexas que não são de todo boas nem más, inspiradas em situações reais. Todo o enredo é marcado por paradoxos, em um misto de poesia e temor, riso e angústia, vida e dor, usando a ironia para denunciar as contradições cometidas pelos dirigentes e governantes e pondo em questão o modelo econômico e o processo de globalização europeus, enquanto modo de vida ideal pelo qual inúmeras pessoas no mundo buscam obter. Assim, a peça de Visniec tomou proporções internacionais e, além da encenação da CTA, o texto foi levado aos palcos por companhias da Itália, Romênia, Moldávia e França.

A encenação portuguesa de “Migrantes” estreou no dia 21 de abril de 2017 e contou com a atuação dos atores Adriano Carvalho, Elias Nazaré, João Cabral, João Tempera, Maria Frade, Maria João Falcão, Rui M. Silva, Sofia Marques e Tânia Guerreiro. O espetáculo apresenta blocos de cenas independentes e objetivas que retratam diferentes situações dramáticas e assinalam dilemas morais existentes no tratamento político e social de refugiados na Europa. As cenas intercalam-se entre o drama e a comédia satírica e representam o perigoso trajeto de fuga pelo Mar Mediterrâneo, as dificuldades e tensões de um barco com excesso de passageiros, a atuação política, enfatizando como um presidente encara a situação dos direitos humanos e o acolhimento de migrantes, bem como a perspectiva dos meios de comunicação, a disseminação de informações, a manipulação da opinião pública, a banalização sociocultural em termos de publicidade e os preconceitos sociais. A encenação estimula o despertar da consciência e promove denúncias, equilibrando momentos de tensão, reflexão e humor.

No que concerne ao grupo, nota-se que a Companhia de Teatro de Almada apresenta uma trajetória de forte influência sociocultural, marcada em sua essência pelo espírito da Revolução de 1974. Inicialmente fundada como Grupo de Campolide, em 1971, sob a direção de Joaquim Benite, a companhia construiu um acervo de montagens e atividades de cariz social, reflexivo e interventivo, tendo como missão a efetivação do movimento de descentralização artístico e cultural, no sentido da formação de público e da animação cultural. Por essa razão, o grupo que no seu início esteve sediado no Teatro da Trindade acabou por deslocar-se para a cidade de Almada, em 1978, e, desde então, põe em prática um programa de desenvolvimento regional integrado com a Rede Nacional de Teatros e Cine-teatros Municipais.

A dimensão social e a preocupação com a formação de públicos presentes na missão e objetivos da Companhia fundamentam o desenvolvimento de uma programação de temporadas regulares e atividades que estimulam um envolvimento

112

constante das comunidades com o universo artístico e teatral, tanto por meio da organização anual do Festival de Almada, como por um plano de teatro educativo. Assim, a Companhia promove uma movimentação contínua de produções teatrais privilegiando a dramaturgia nacional, sem olvidar, contudo, obras de autores estrangeiros.

Em termos de sustentabilidade, a CTA dispõe de subvenções estatais e autárquicas, de maneira a auferir financiamento regular por parte do Ministério da Cultura, da Câmara Municipal de Almada, além de receitas próprias adquiridas através da venda de bilhetes, venda de espetáculos e venda de produções literárias, nomeadamente textos das peças encenadas pela companhia. Ressalta-se que a longa e consistente trajetória da companhia, somada à sólida relação estabelecida com os setores públicos, resultaram no reconhecimento do trabalho liderado inicialmente por Joaquim Benite, garantindo, desde o início do deslocamento da companhia para Almada, uma sede própria, atualmente instalada no Teatro Municipal Joaquim Benite.

Todos esses aspectos favoreceram o reconhecimento da CTA enquanto companhia prestigiada, responsável pelo maior festival de teatro do país – o Festival Internacional de Teatro de Almada – e por promover programações anuais extensas e diversificadas. O CTA apresenta-se, portanto, como um espaço que vai além das apresentações de criações próprias, estabelecendo colaborações com estruturas de criação nacionais e internacionais, englobando espetáculos de teatro, de dança e de música, oficinas voltadas para a infância e exposições de artes plásticas. A companhia organiza, ainda, atividades a nível de serviço educativo assentes em visitas às escolas, como um meio de estimular a formação de público.

Diante disso, a CTA tem um envolvimento recorrente com temáticas e atividades de cariz social e participativo que concedem uma base estruturada para desenvolver projetos com visibilidade e relevância sociocultural, tal como o espetáculo “Migrantes”. Destarte, a grande motivação da CTA para iniciar um processo criativo voltado para a temática dos refugiados se deu a partir de uma sugestão dada por um diretor teatral brasileiro sobre as obras de Matéi Visniec, visto como um dos autores mais levados à cena na atualidade. Na altura, após ter contato com o autor e as peças escritas, o diretor artístico, Rodrigo Francisco, decidiu levar ao palco a peça “Migrantes”, motivado pela forma violenta e ao mesmo tempo derrisória como Visniec escreve o texto, aproveitando também o ensejo da crise humanitária que acometia o continente europeu.

Para além do texto de Visniec, a Companhia desenvolveu um longo processo criativo assente em pesquisas e recolha de informações, matérias de jornais e artigos

113

científicos que possibilitaram um melhor conhecimento sobre a temática, de maneira a capacitar para a reflexão e debate toda a equipe envolvida. Após a conclusão do processo criativo, a CTA promoveu aproximadamente 20 apresentações do espetáculo, com bilhetes ao custo de 14€ e 6,50€ (jovem, sênior e grupos). Todas as apresentações ocorreram na sala principal do Teatro Municipal Joaquim Benite e contaram com uma estimativa de 170 espectadores por sessão, dos quais cerca de 30% representavam o público estudantil das comunidades locais.

Nesse sentido, diferentemente da experiência analisada com o grupo Teatro do Elefante, ao considerar as informações acerca da CTA, constata-se que a estrutura organizativa, a capacidade financeira mais consolidada e uma sede própria propiciaram uma maior visibilidade do espetáculo. Embora o processo criativo do espetáculo “Migrantes” tenha se realizado a “portas fechadas”, não havendo nenhuma forma de colaboração com refugiados ou com pessoas que trabalham com estes migrantes, quando da conclusão deste processo, a companhia realizou contatos com o RefugiActo, com o Alto Comissário para as Migrações e com representantes da Amnistia Internacional em Portugal.

O estabelecimento desses contatos foi decisivo, uma vez que, além da participação das referidas entidades enquanto espectadores do espetáculo, a CTA organizou três dias de debates que receberam o nome de “Conversas com o público”, no foyer do Teatro Municipal Joaquim Benite (TMJB). As conversas decorreram em 22 de abril, 06 de maio e 13 de maio de 2017, e tiveram a presença do autor Matéi Visniec, Isabel Galvão, professora e dinamizadora do RefugiActo, Susana Gaspar, presidente da direção da Amnistia Internacional Portugal, Pedro Calado, Alto-Comissário para as Migrações e outros convidados.

Desse modo, as “Conversas com o público” incrementaram a visibilidade do espetáculo, configurando uma conjuntura de forte apelo social ao fomentar um espaço de discussão e reflexão, aberto a toda a comunidade. Os debates possibilitaram dar a conhecer as mais variadas perspectivas, pondo em diálogo as dúvidas e questionamentos dos espectadores com as informações técnicas e especializadas mediadas pelos convidados, além de abordar criticamente as problemáticas da crise migratória, os posicionamentos da União Europeia, as respostas de Portugal para estas questões e as relações presentes no espetáculo.

De modo geral, ainda que o espetáculo “Migrantes” não tenha materializado uma temporada de apresentações mais longa, é inegável que os seus objetivos tiveram uma repercussão de grande relevância, tendo o espetáculo alcançado uma diversidade de

114

público importante, nomeadamente o público de estudantes e jovens das comunidades locais, representantes de entidades especializadas, voluntários e profissionais de instituições sociais e refugiados acolhidos em Lisboa, demarcando, assim, um total aproximado de 3.200 espectadores, entre abril e maio de 2017.