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Boulevard des italiens, Gérard Fromanger, 1972.

2.1 – Uma “pintura fotogênica”.

Boulevard des italiens, Gérard Fromanger, 1972.

Assim, ainda que a série de pinturas de Fromanger expostas na Galeria Jeanne Burcher tenham a cidade como tema privilegiado, não há pretensão de realismo nesses trabalhos. Segundo Foucault, Fromanger ignora a “monótona e fascinante realidade da experiência”;191 não há

perspectiva ilusionista em suas cidades. A fotografia, as cores, as ruas da cidade, as vitrines, os cartazes, os passantes revelam a modernidade, mas fazendo alusão ao surrealismo. Fromanger busca expor a cultura do visível, que com a publicidade “promete uma entrada gratuita no supermercado do real”.192 187 Ibid. 188 Ibid. 189 Ibid. 190 Op. cit., p. 353. 191

IMBERT, C., “Les droits de l’image”, p. 159.

Le peintre et le modèle: Violet de Bayeux, Gérard Fromanger, 1972.

Le peintre et le modèle: Violet d’Egypte, Gérard Fromanger, 1972.

Se em outras séries uma única foto resultava em diversos trabalhos – e sua identificação acontecia pelos “procedimentos técnicos”193 utilizados – agora, fotos diferentes compõem uma

série. Fromanger, ao fotografar a cidade – para projetar seus diapositivos sobre as telas como esboço – não escolheu previamente seus temas, ou objetos. Ele fotografou a cidade aleatoriamente, ao acaso:

(...) Imagens tomadas como um filme sobre o movimento anônimo do que se passa.194

193

FOUCAULT, M., “A pintura fotogênica”, p. 353.

Fromanger contempla o diapositivo projetado sobre a tela a procura, não do “momento em que a foto foi tirada”, mas do acontecimento que “continua incessantemente a ocorrer sobre a imagem”, que é “interior à imagem”.195

La France est-elle coupée em deux?, Gérard Fromanger, 1972.

Nas pinturas de Fromanger, as cidades são indiferentes às regras, aos protocolos e as imagens são dominadas por cores. Ele aplica a tinta sem realizar qualquer rascunho prévio, sem desenho, sem forma. Sobre o diapositivo projetado na tela, cores quentes e frias criam um “acontecimento-quadro” sobre o “acontecimento-foto”.196 Multiplicando imagens, imprimindo

clichês, “formas-acontecimentos” (“formes-evénéments”):197

Os quadros de Fromanger não captam imagens; eles não as fixam; fazem- nas passar.198

“Foto-diapositivo-projeção-pintura”,199 quando o retroprojetor é desligado por Fromanger,

suas imagens não são meras fotopinturas. A “pintura fotogênica” de Fromanger fotografa porque capta o acontecimento, mas é a pintura que deixa passar os acontecimentos:

Cada quadro é uma passagem.200

195 Ibid. 196

Op. cit., p. 352.

197 IMBERT, C., “Les droits de l’image”, p. 159. 198 FOUCAULT, M., “A pintura fotogênica”, p. 352. 199

Ibid., p. 352.

En Chine, à Hu-Xian le désir est partout, Gérard Fromanger, 1974.

No trabalho de Fromanger, a fotografia, segundo Foucault, não seria portadora de “segredos”, não há uma profundidade a ser desvendada. Fromanger inclusive, muitas vezes, pinta a sua própria silueta nas telas. O pintor não somente vê, mas permite ser visto. É a pintura que abre a fotografia e “faz transitar (...) imagens ilimitadas”.201 Fromanger é um “fabricante de sol”.202

A admiração de Foucault por Fromanger é coerente com uma estética que privilegiava poéticas que não seguem uma normatividade, mas que declaram os direitos da imagem. Foucault comenta o “jansenismo” – o conservadorismo – do público francês. Entusiasmado também com os trabalhos de Clovis Trouille (1889-1975), apesar de serem definidos como de mau-gosto, Foucault aposta no surgimento de uma nova pintura. Uma pintura liberta de convenções e limites. Em uma entrevista, perguntado sobre os artistas contemporâneos que mais lhe interessariam, Foucault respondeu que gostava de pintores americanos, como Mark Tobey (1890-1976)203 e também os

hiperrealistas:

Eu não havia me dado conta muito bem do que me agradava neles. Estava sem dúvida ligado ao fato de eles lidarem com a restauração dos direitos

da imagem. E isso após uma longa desqualificação.204

Gérard Fromanger com as séries Boulevard des Italiens, em 1971, Vie et mort d'un mineur, 201 Ibid., p. 351.

202

Ibid., p. 355.

203 Foucault comprou uma pintura de Tobey com os direitos autorais da segunda edição de seu livro História da

Loucura.

204

Je ne m’étais pas très bien rendu compte de ce qui me plaisait en eux. C’était sans doute lié à ce qu’ils jouent sur la restauration des droits de l’image. Et cela après une longue disqualification., Cf. FOUCAULT, M., “À quoi rêvent les philosophes?” (1975), in Dits et écrits I: 1954-1975, p. 1574. Trad. de Elisa Monteiro. “Com o Que Sonham os Filósofos?”, in Arqueologia das ciências e história dos Sistemas de Pensamento, Coleção “Ditos & Escritos”, vol. II, p. 298.

em 1972, Le Peintre et le modèle, em 1972-73, Annoncez la couleur, em 1973-74, Le désir est

partout, em 1975 e Questions et Hommage à Topino-Lebrun, em 1976-77, destacou-se como um

dos maiores expoentes da Figuration Narrative. Fromanger também foi um conhecido militante de movimentos sociais como o GIP.205 Seu universo urbano, do anonimato das ruas, dos transeuntes,

das vitrines, dos supermercados, foi sintetizado por planos de cores e da técnica mista de sua fotografia-pintura.

En Chine à Lo Yang, Gérard Fromanger, 1974.

A Figuração Narrativa, movimento do qual Fromanger fazia parte, nos anos 60-70, questionava o domínio do abstracionismo e movimentos como o Novo Realismo. A Figuração

Narrativa (ou Figuration Narrative), comumente confundida com o movimento da Nova Figuração (ou Nouvelle Figuration) buscava seus temas no cotidiano e em reivindicações sociais,

ou políticas. Seus artistas buscavam fazer uma história das imagens, ou uma Nova Pintura da

História (Nouvelle Peinture d'Histoire):

(...) No contexto dos anos 60, a Figuração Narrativa era uma nova

205

Em fevereiro de 1971, Gilles Deleuze, Pierre Vidal-Naquet, Michel Foucault, Daniel Defert e Jean-Marie Domenach fundaram o Grupo de Informação sobre as Prisões.

figuração: seu engajamento (político) se inscrevia para mim em dois elementos paralelos e complementares: a história em curso e a história da arte (…) a terminologia dos movimentos em pintura desde os impressionistas, os cubistas, abstratos... é muitas vezes obra dos críticos de arte ou de poetas, raramente daquele grupo de artistas; assim o termo Figuração narrativa inventado por Randillac e Telémaque é agora mais rico

do que Figuração Crítica ou do que Nova Figuração.206

Le peintre et le modèle: Bleu Saphir, Gérard Fromanger, 1972.

O hibridismo de Gérard Fromanger, com suas fotopinturas, propõe novas formas de valoração estética e questiona o engajamento na arte:

Eu vou muito longe com a idéia de engajamento: qualquer artista que inventa está comprometido, pois ele encarna a idéia de que pode mudar o mundo, que há algo novo todas as manhãs, que podemos atualizar tudo, recuperar uma virgindade, uma juventude em tudo; ele o prova ao criar, qualquer coisa que nós jamais vimos (...) Criar qualquer coisa é tão difícil, é preciso muito esforço e é uma forma de resistência ao medo. Criar é resistir à morte, como Deleuze evocou, à morte intelectual, emocional,

206

(...) Dans le contexte des années 60, la Figuration Narrative était une nouvelle figuration: son engagement (politique) s’inscrivait pour moi dans deux éléments parallèles et complémentaires: l’histoire en train de se faire et l’histoire de l’art (...) la terminologie des mouvements en peinture depuis les impressionnistes, cubistes, abstraits… sont souvent l’œuvre de critiques d’art ou de poètes, rarement celle d’un groupe d’artistes; ainsi le terme Figuration Narrative inventé par Rancillac et Télémaque fait en ce moment plus fortune que Figuration Critique ou que Nouvelle Figuration (...). Cf. FROMANGER, G., “Fromanger et Figuration Narrative, partie I: son art et la Figuration Narrative” (entretien), in Almanach de l’art moderne et de l’art contemporain – L’actualité de l’art à Paris; http://www.almanart.com/Fromanger-et-Figuration-Narrative.html. Tradução nossa.

histórica e natural; é uma resistência às idéias feitas! Adicione sua pequena

pedra branca à imensa história da criação (...).207

E Foucault, como Fromanger, é comprometido com sua atualidade, com seu presente, com novos modos de ver, com novos modos de ser:

Compreende-se que alguns lamentam sobre o vazio atual e desejem, no âmbito das ideias, um pouco de monarquia. Mas aqueles que, uma vez em suas vidas, encontram um tom novo, uma nova maneira de olhar, uma outra maneira de fazer, estes, acredito, jamais experimentarão a necessidade de se lamentarem de que o mundo é erro, a história, saturada de inexistências, e já é hora de outros se calarem para que, finalmente, se possa ouvir a sineta

de sua reprovação...208

Le peintre et le modèle: Rouge de Chine vermillonné, Gérard Fromanger, 1972.

207 Je vais assez loin dans l’idée d’engagement: tout artiste qui invente est engagé car il incarne l’idée que l’ont peut

changer le monde, qu’il y a du nouveau tous les matins, qu’on peut rafraîchir tout, retrouver une virginité, une jeunesse dans tout; il le prouve en créant quelque chose qu’on n’a jamais vu. (...) créer quelque chose c’est tellement difficile, cela demande tellement d’effort et c’est une forme de résistance à la peur. Créer c’est résister à la mort, comme Deleuze l’a évoqué, à la mort intellectuelle, émotionnelle, historique et naturelle; c’est une résistance aux idées toutes faites! Ajouter son petit caillou blanc à l’immense histoire de la création (...)., Cf. FROMANGER, G., “Gérard Fromanger, la vie des artistes, partie II: les plasticiens et leur vie, conseils aux jeunes” (entretien), in Almanach de l’art moderne et de l’art contemporain – L’actualité de l’art à Paris; http://www.almanart.com/Gerard-Fromanger-la-vie- des.html. Tradução nossa.

208 On comprend que certains pleurent sur le vide actuel et souhaitent, dans l'ordre des idées, un peu de monarchie.

Mais ceux qui, une fois dans leur vie, ont trouvé un ton nouveau, une nouvelle manière de regarder, une autre façon de faire, ceux-là, je crois, n'éprouveront jamais le besoin de se lamenter que le monde est erreur, l'histoire, encombrée d'inexisences, et il est temps que les autres se taisent pour qu'enfin on n'entende plus le grelot de leur réprobation... Cf. FOUCAULT, M., “'Le philosophe masqué” (1980), in Dits et écrits II: 1976-1988, p. 929. Trad. de Elisa Monteiro. “O filósofo mascarado”, in Arqueologia das ciências e história dos Sistemas de Pensamento, Coleção “Ditos & Escritos”, vol. II, p. 305.

Em “Qu’est-ce qu’un auteur?” (“O que é um autor?”) Foucault denomina como “instauradores de discursividade”209 aqueles criadores – e não somente autores de obras filosóficas

ou literárias – que produzem novas possibilidades e regras para a formação de textos, mas também diferentes modos de compreender o mundo. O valor das obras artísticas, desse modo, para Foucault, não se configura somente pela sua qualidade estética, mas também pela sua qualidade crítica.