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1.2 – A materialidade da pintura.

É consenso entre os diferentes comentadores da obra de Michel Foucault que sua conferência sobre Édouard Manet é dedicada à questão da materialidade da pintura. Foucault, sobretudo, avaliaria a importância de Manet na história da arte ocidental por enfatizar a novidade da materialidade como problema central em sua pintura.

La peinture de Manet, desse modo, por descrever as características físicas das composições

do pintor francês, algumas vezes, foi interpretada como um texto formalista.133 Contudo, é

132 É também importante observar que Manet não utiliza o sfumato (do italiano esfumaçado), técnica utilizada com o

objetivo de criar efeitos de profundidade e distância: em pinturas - pela sobreposição de camadas de tinta - e em desenhos - pelo esfumaçamento do grafite, do carvão, ou do pastel. Na Renascença, Leonardo da Vinci inovou o uso do sfumato ao utilizar verniz sobre a última camada de tinta ainda fresca em suas pinturas e ao utilizar o sfumato em suas perspectivas aéreas.

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Foucault, inclusive, foi comparado ao crítico de arte americano Clement Greenberg (1909-1994). Cf. MARTINS, L. R., Manet: uma mulher de negócios, um almoço no parque e um bar, Rio de Janeiro, Zahar, 2007, p. 179.

importante observar que o texto sobre a pintura de Édouard Manet insere-se no corpus da obra de Foucault, não distinguindo-se de seus estudos arqueológicos sobre a literatura e seus trabalhos sobre a escritura de diferentes autores, durante a década de sessenta. Ademais, Foucault não somente admitiu realizar suas análises históricas recorrendo à materialidade de documentos, em diferentes formas de registro, como também, sempre considerou a materialidade desses arquivos em relação ao contexto cultural de sua produção. Com o deslocamento do espectador identificado na pintura de Manet, por exemplo, é possível não somente supor que a mobilidade diante da pintura possibilitaria um outro modo de ver ao espectador, mas que ela também possibilitaria um outro modo de pensar. Assim, o interesse de Foucault por esse elemento da pintura se deveu mais à sua semelhança com o próprio jogo de deslocamento em sua filosofia, do que à admiração de Foucault pelo brilhantismo técnico de Manet.

No texto “Sobre a arqueologia das ciências. Resposta ao Círculo de Epistemologia”, de 1964, por exemplo, Foucault afirmou não realizar uma análise linguística sobre o discurso. O discurso é tomado, sobretudo, como um acontecimento. Mais tarde, em sua genealogia, também explicitou que a noção de dispositivo inclui o não-discursivo entre seus elementos de investigação, ou seja, inclui a análise de práticas, técnicas e instituições. La peinture de Manet, desse modo, com suas minuciosas descrições plásticas, parece se definir como um texto de transição, entre a perspectiva da arqueologia e a perspectiva investigativa da genealogia.

Essa hipótese parece se sustentar, principalmente se observarmos que a questão da materialidade da pintura relaciona-se à outra questão premente no texto de Foucault. Os extensos comentários sobre os “elementos”, “qualidades”, “propriedades” e “limitações” da tela, sobre seu espaço como suporte, teriam sido imprescindíveis para a demonstração de um problema que lhe parecia fundamental: a fundação da própria pintura moderna.

Retomemos os principais apontamentos de Foucault sobre a pintura de Édouard Manet para averiguarmos essa questão. Foucault, inicialmente, concorda com a asserção de que Manet modificou as técnicas e os modos de representação pictural propiciando o surgimento do Impressionismo, movimento que ocupou toda a vanguarda da segunda metade do século XIX. Entretanto, considerando Manet não apenas o pintor precursor do Impressionismo, mas o pintor que possibilitou a própria pintura moderna ascender ao interior daquilo em que se desenvolve toda a arte contemporânea, Foucault afirma:

(...) Essa ruptura profunda ou essa ruptura em profundidade que Manet operou, é sem dúvida um pouco mais difícil de situar que o conjunto das modificações que tornaram possível o Impressionismo (...) essas coisas são

relativamente conhecidas: novas técnicas de cor, utilização de cores puras senão totalmente puras, ao menos relativamente puras, utilização de certas formas de iluminação e de luminosidade que não eram ainda conhecidas pela pintura anterior, etc. (...) Eu creio que essas modificações, podemos totalmente resumi-las e caracterizá-las em uma palavra: Manet realmente foi aquele que pela primeira vez, parece-me, na arte ocidental, ao menos desde a Renascença, ao menos desde o quattrocento, permitiu-se utilizar e fazer jogar, de algum modo, no interior mesmo de seus quadros, no interior mesmo disso que eles representavam, as propriedades materiais do espaço sobre o qual ele pintava.134

Para Foucault, Manet enfatizaria a materialidade da pintura por considerar a tela uma superfície que possui bordas, que possui frente e verso. Assim, se na Idade Clássica a materialidade era perigosa para a pintura, já que a mimésis pretendia alcançar a adesão do espectador à ilusão da pintura, agora com a pintura de Manet, a representação é claramente uma ficção. Se, desde o Renascimento, ou Quattrocento, na arte ocidental, pretendia-se esquecer o suporte sobre o qual se pinta – o muro do afresco, o retábulo, o tecido, ou o papel – se antes a pintura privilegiava as linhas oblíquas e espirais aspirando mascarar sua inserção em um quadrado ou retângulo, e exigia-se representar uma tridimensionalidade da imagem, apesar desta repousar sobre um plano de duas dimensões, a obra de Manet, opostamente, buscou sublinhar as propriedades materiais da tela, ao evidenciar as qualidades e limites de seu suporte. Manet teria sido o primeiro pintor a sublinhar no interior dos seus quadros as propriedades espaciais da tela, a profundidade sobre a qual o pintor trabalha.

Já em relação à luz, a pintura representava uma claridade interior na tela – do fundo ou de um dos lados da tela – negando-se, ou esquivando-se, do fato de repousar sobre uma superfície. Manet, ao contrário jogou a luz exterior do quadro para a pintura, uma luz direta e frontal, que se coloca a partir do próprio espectador. Assim, se desde o Quattrocento, a pintura determinava um lugar ideal a partir do qual o espectador poderia e deveria observar o quadro, fixava o cerne do

134 (...) Cette rupture profonde ou cette rupture en profondeur que Manet à opérée, elle est sans doute um peu plus

difficile à situer que l'ensemble des modifications qui ont rendu possible l'impressionnisme (...) ce sont ces choses relativement connues: nouvelles techniques de la couleur, utilisation de couleurs sinon tou fait purês, du moins relativement purês, utilisation de certaines formes d’éclairage et de luminosité qui n’étaient point connues dans La peinture precedente, etc. (...) Jê crois que ces modifications, on peut tout de même les rêsumer e lês caractériser d'un mot: Manet em effet est celui qui pour la première fois, me semble-t-il, dans l'art occidenta, au moins depuis la Renaissance, au moins depuis le quattrocento, s'est permis d'utiliser et de faire jouer, en quelque sorte, à l'intérieur même de ses tableaux, à l'intérieur même de ce qu'ils représentaient, les propriétés matérielles de l'espace sur lequel il peignait. Cf. FOUCAULT, M., La peinture de Manet, p. 22. Tradução nossa.

espetáculo, com Manet há um deslocamento contínuo do lugar do espectador:

Também se negava o fato de que a quadro era uma peça do espaço diante do qual o espectador poderia se deslocar, em torno do qual o espectador poderia girar, do qual ele poderia, por consequência, apreender um ângulo

ou tomar eventualmente as duas faces (…).135

Segundo alguns comentadores do texto de Foucault, como David Marie,136 a pintura de

Manet dialogaria com a emergência de uma tradição antiteatral na pintura europeia dos séculos XVIII e XIX. Essa tradição rejeita, estrategicamente, o espectador do espaço pictórico, supostamente libertando a obra para uma espontaneidade na representação. No entanto, Marie destaca a aceitação de Manet da convenção pictural de que toda tela é produzida para ser vista.

O espectador, segundo a pintura antiteatral, ameaça a mimésis da representação. Assim, a primeira estratégia dessa pintura consistia em apresentar personagens realizando atividades prosaicas (dormindo, lendo, escrevendo, rezando), parecendo imersos em si mesmos, ignorando completamente qualquer suposto espectador (e Diderot denominava essa pintura como “dramática”). Em contraponto, como segunda estratégia, a pintura “pastoral” pretendia fazer o espectador participar da cena. Gustave Courbet (1819-1877), por exemplo, retira o espectador de seu lugar de observador aproximando-o da cena pintada.137

De qualquer modo, entretanto, seja qual fosse a estratégia dessa pintura, ela continuava a compactuar com a convenção clássica de que deve existir um espectador para aderir (ou não) à cena da pintura.138 Esse pacto, porém, se dilui com a pintura de Manet, na medida em que ele admite a

importância do espectador para a pintura: não pode haver uma pintura sem espectador. Manet encerra a tradição antiteatral da pintura francesa, que se instala a partir de 1750, sob orientação de Denis Diderot e que se concretiza na pintura do século XIX. Manet assume que a presença do espectador é elemento da pintura, desafiando a tradição diderotiana.

135 Il fallait nier aussi que le tableau était un morceau d'espace devant lequel le spectateur pouvait se déplacer, autour

duquel le spectateur pouvait tourner, dont il pouvait, par conséquent, saisir un angle ou saisir éventuellement les deux faces (…). Cf. Ibid., p. 23. Tradução nossa.

136 MARIE, D., “Recto/versu ou le spectatetur en mouvement”, in Michel Foucault, un regard, SAISON, M. (Dir.),

France, Seuil, 2004. Cf também FRIED, M., Esthétique et Origines de la peinture moderne: Le Modernisme de Manet, tome 3, Paris, Gallimard, 2000 e La place du spectateur, Paris, Gallimard, 1990.

137 É interessante comentar que Charles Baudelaire em seu texto “O pintor e a vida moderna” critica a pintura de

Courbet como realista.

138 Denis Diderot (1713-1784) publicou, em 1766, Ensaios sobre a pintura – considerado, hoje, o primeiro texto de

crítica sobre a arte moderna. Diderot também refletiu sobre a teatralidade presente na pintura. Contra a ideia defendida pela história da arte de que os grandes embates da pintura aconteceram com a literatura, Diderot defende que o teatro - e não a literatura - deve servir de parâmetro para a apreciação e julgamento da pintura.

Manet, contudo, não fixa um lugar para o espectador.139 E será justamente esse

deslocamento do espectador, conjugado à exposição do problemas da iluminação e da representação do espaço, que evidenciará as propriedades materiais da pintura. Materialidade que possibilitará o surgimento da pintura moderna.140

Logo, conforme Foucault, a profunda ruptura introduzida por Manet não foi a invenção da pintura não representativa – posto também que tudo em sua pintura seja representação. Manet teria sido o primeiro pintor a afirmar a "tela-objeto" (tableau-objet), a "pintura-objeto" (peinture-objet), condição essencial para que pudéssemos um dia nos libertar da representação, para que pudéssemos finalmente jogar com as propriedades puras e simples do espaço, ou seja, com as propriedades materiais da pintura, em torno da qual gira o espectador. Assim, será a ênfase na materialidade dada por Manet em sua pintura que possibilitará – pelo próprio distanciamento da representação – a constituição da pintura moderna.

Portanto, para Foucault, Manet não somente questionou a tradição, como os cânones estéticos de seu presente. Manet inauguraria a modernidade que seria levada adiante por pintores como René Magritte, ou Andy Warhol, e possibilitaria aos pintores pósteros a abstração e a decomposição do espaço, sem busca por semelhança e sem normas de perspectiva. Manet abriria o campo de possibilidades de inventividade da própria pintura moderna.

Desse modo, por seus aspectos epistemológicos – mesmo não observando as questões estilísticas, ou mesmo as questões normativas da pintura – Foucault identificou de que maneira a própria pintura, a partir da modernidade, dobrou-se sobre si mesma e tomou a si mesma como referência. Sobre essa autonomia, Foucault correlacionou, em um texto anterior, a escrita de Flaubert à pintura de Manet:141

Flaubert é para a biblioteca o que Manet é para o museu. Eles escrevem,

139 É importante destacar que os personagens de Manet não somente olham para o espectador-pintor, como em algumas

situações olham para algo que o observador da pintura não pode enxergar. As telas Le Chemin de fer e La serveuse de bocks, como já foi dito, são exemplos dessa operação de Manet.

140 Michael Fried defende a tese que a pintura moderna é iniciada com Édouard Manet. Com o deslocamento do

espectador, operado por Manet, a pintura ganharia autonomia, não mais mascarando seu meio. Fried, contudo, não aceita a tese de que a “objetivação” da pintura aconteceria com a obra de Manet. Para Fried, ainda que a obra de Manet tenha contribuído para que fosse possível a tomada de consciência de que a pintura repousa sobre uma superfície concreta, a pintura somente passaria a admitir a obra como coisa, ou objeto, a partir dos anos sessenta, com o abstracionismo. A pintura, então, se colocaria como o próprio tema da representação.

141 Foucault teria se inspirado com a tela “A tentação de santo Antão” de Peter Brueghel, para escrever o texto “Posfácio

à Flaubert (A Tentação de Santo Antão)”, em 1964. O texto também foi publicado com o título “A Biblioteca fantástica” - “La Bibliothèque fantastique” - em 1967 e, com algumas modificações, em 1970. Ademais, o título “A Biblioteca fantástica” foi inspirado pelo livro O museu imaginário, de André Malraux (MALRAUX, A., Le musée imaginaire, Paris, Gallimard, 1965). Cf. FOUCAULT, M., “Postface a Flaubert (G.) (La Tentation de saint Antoine)” (1964), in Dits et écrits I: 1954-1975. Trad. de Inês Autran Dourado Barbosa. “Posfácio a Flaubert (A tentação de Santo Antão)”, in Estética: literatura e pintura, música e cinema, Coleção “Ditos & Escritos”, vol. III.

eles pintam em uma relação fundamental com o que foi pintado, com o que foi escrito – ou melhor, com aquilo que da pintura e da escrita permanece perpetuamente aberto. Sua arte se erige onde se forma o arquivo (...) cada quadro pertence desde então à grande superfície quadrilátera da pintura; cada obra literária pertence ao murmúrio infinito do escrito. Flaubert e Manet fizeram existir, na própria arte, os livros e as telas.142

A pintura de Manet constitui-se, portanto, como pintura de museu, ou seja, como a primeira manifestação da interdependência particular que as pinturas adquirem dentro dos museus. Manet em Le Déjeuner sur l'herbe e Olympia, por exemplo, não teria simplesmente buscado replicar os grandes mestres, como Giorgione, Rafael ou Velásquez. Ele teria pintado tomando como referência, não as regras dogmáticas da tradição, mas a própria pintura em suas relações de “parentesco”.143

Entretanto, o museu seria um espaço de heterotopia, um outro lugar para a imaginação, para a liberdade. Com o museu, bem como com a biblioteca, entre textos e pinturas acumuladas, o artista encontra uma infinita enciclopédia de referências. História e espaço de sobreporiam, se entrecruzariam, criando, assim, a possibilidade da utopia, da criação de outros espaços:

Há, inicialmente, as utopias. As utopias são os posicionamentos sem lugar real. São posicionamentos que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa. É a própria sociedade aperfeiçoada ou é o inverso da sociedade, mas, de qualquer forma, essas

utopias são espaços que fundamentalmente são essencialmente irreais.144

A noção de heterotopia – apresentada por Foucault pela primeira vez no prefácio de As

142

Flaubert est à la bibliothèque ce que Manet est au musée. Ils écrivent, ils peignent dans un rapport fondamental à ce qui fut peint, à ce qui fut écrit -ou plutôt à ce qui de la peinture et de l'écriture demeure indéfiniment ouvert. Leur art s'édifie où se forme l'archive. Non point qu'ils signalent le caractère tristement historique -jeunesse amoindrie, absence de fraîcheur, hiver des inventions -par lequel nous aimons stigmatiser notre âge alexandrin; mais ils font venir au jour un fait essentiel à notre culture: chaque tableau appartient désormais à la grande surface quadrillée de la peinture; chaque oeuvre littéraire appartient au murmure indéfini de l'écrit. Flaubert et Manet ont fait exister, dans l'art lui- même, les livres et les toiles. Cf. FOUCAULT, M., “Posface a Flaubert ( La tentation de saint Antoine)” (1964), op. cit., p. 327; “Posfácio a Flaubert (A tentação de Santo Antão)”, op. cit., p. 81.

143 “parenté,” Cf. Ibid, p. 326. Tradução nossa.

144 Il ya a d'abord les utopies. Les utopies, ce sont les emplacements sans lieu réel. Ce sont les emplacements qui

entretiennent avec l'espace réel de la societé un rapport général d'analogie directe ou inversée. C'est la société elle- même perfectionée ou c'est l'envers de la societé, mais, de toute façon, ces utopies sont des espaces qui sont fondamentalement essentiellement irréels. Cf. FOUCAULT, M., “Des espaces autres” (1967), in Dits et écrits II: 1976- 1988, p. 1574. Trad. de Inês Autran Dourado Barbosa. “Outros Espaços”, in Estética: literatura e pintura, música e cinema, Coleção “Ditos & Escritos”, vol. III, pp. 414-415.

palavras e as coisas e, no mesmo ano, mencionada em seu texto “O pensamento do fora” –145

relaciona espaço e pensamento afirmando a possibilidade de destruição da ordem do discurso. Foucault evoca Borges e sua enciclopédia chinesa, com seus animais fabulosos e objetos estranhos, elogiando o que parece paradoxal, sem sentido, como um novo modo de pensar que desafia as sintaxes instituídas. Na literatura, a heterotopia como “fora”146 cria um espaço no dentro e um

dentro no fora, não somente como inovação de linguagem, mas como produção de subjetividade. A arte moderna, desse modo, segundo Foucault, não credita mais a um sujeito soberano, fundador e universal, sua origem. E se as utopias são consideradas impossíveis (ainda que elas sejam otimistas), as heterotopias podem se realizar (ainda que elas sejam consideradas inusitadas):

Esse texto de Borges fez-me rir durante muito tempo, não sem um mal-estar evidente e difícil de vencer. Talvez porque no seu rastro nascia a suspeita de que há desordem pior que aquela do incongruente e da aproximação do que não convém; seria a desordem que faz cintilar os fragmentos de um grande número de ordens possíveis na dimensão, sem lei nem geometria, do heteróclito; e importa entender esta palavra no sentido mais próximo de sua etimologia: as coisas aí são “deitadas”, “colocadas”, “dispostas” em lugares a tal ponto diferentes, que é impossível encontrar-lhes um espaço de acolhimento, definir por baixo de umas e outras um lugar-comum. As utopias consolam: é que, se elas não têm lugar real, desabrocham, contudo, num espaço maravilhoso e liso; abrem cidades com vastas avenidas, jardins bem plantados, regiões fáceis, ainda que o acesso a elas seja quimérico. As heterotopias inquietam, sem dúvida porque solapam secretamente a linguagem, porque impedem de nomear isto e aquilo, porque fracionam os nomes comuns ou os emaranham, porque arruínam de antemão a “sintaxe”, e não somente aquela que constrói as frases — aquela, menos manifesta, que autoriza “manter juntos “ (ao lado e em frente umas das outras) as palavras e as coisas. Eis por que as utopias permitem as fábulas e os discursos: situam-se na linha reta da linguagem, na dimensão fundamental da fábula; as heterotopias (encontradas tão freqüentemente em Borges)

145 FOUCAULT, M., La pensée du dehors” (1966), in Dits et écrits I: 1954-1975. Trad. de Inês Autran Dourado

Barbosa. “O Pensamento do Exterior”, in Estética: literatura e pintura, música e cinema, Coleção “Ditos & Escritos”, vol. III. Foucault escreve “Des espaces autres” em 1967, pronunciando-a no Círculo de Estudos Arquitetônicos, mas somente autoriza sua publicação em 1984.

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FOUCAULT, M.,, “Des espaces autres” (1984), in Dits et écrits II: 1976-1988. Trad. de Inês Autran Dourado Barbosa. “Outros Espaços”, in Estética: literatura e pintura, música e cinema, Coleção “Ditos & Escritos”, vol. III.

dessecam o propósito, estancam as palavras nelas próprias, contestam, desde a raiz, toda possibilidade de gramática; desfazem os mitos e

imprimem esterilidade ao lirismo das frases.147

A pintura como heterotopia, por isso, seria o espelho de uma utopia, mas de algo que pode passar a ter um lugar real, de algo que pode adquirir visibilidade, como a obra de Manet. Coincidência ou não, o próprio espelho de Foliès-Bergere, no qual Manet faz refletir todos os princípios de sua pintura, coaduna com a definição de espelho de Foucault, de espelho também como heterotopia:

Há, igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer civilização, lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis. Esses lugares, por serem absolutamente diferentes de todos os posicionamentos que eles refletem e dos quais eles falam, eu os chamarei, em oposição às utopias, de heterotopias; e acredito que entre as utopias e estes posicionamentos absolutamente outros, as heterotopias, haveria, sem dúvida, uma espécie de experiência mista, mediana, que seria o espelho. O