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1.1 – Três conjuntos analisados.

Após a publicação de As palavras e as coisas, em 1966, Foucault firma um contrato com as

Editions Minuit para um livro que se intitularia Le noir et la surface. Essai sur Manet (O escuro e a superfície. Ensaio sobre Manet), que não chegou a escrever, mas que resultou na conferência La peinture de Manet. Foucault a pronunciou, com algumas variações, em 1967 na cidade de Milão,

Tóquio e Florença em 1970 e na cidade de Túnis em 1971. O texto foi redigido na Turquia, entre os anos de 1965 e 1968, período em que Foucault lecionou na Universidade de Túnis, mas somente foi publicado em 2001.

Diferentes versões do texto circularam clandestinamente durante décadas. Algumas delas eram apenas próximas das conferências originais, outras eram totalmente distorcidas. Preservou-se, contudo, um registro da conferência de Túnis. Assim, através desta gravação, da primeira transcrição da conferência publicada por Rachida Triki107 e das anotações de Daniel Defert – que

remontavam à época da conferência – reconstituiu-se, trinta anos após a última apresentação de Michel Foucault, o estudo sobre Manet para publicação. Ademais, a recepção do texto gerou o colóquio Michel Foucault, un regard, organizado por Maryvonne Saison, agregado à edição de La

peinture de Manet, pela coleção Traces Écrites da editora Seuil. O colóquio cumpriu uma dupla

função, ao refletir tanto sobre a filosofia de Michel Foucault, como sobre a pintura de Édouard Manet. Essa dupla reflexão questionou a relação entre o visível – a pintura – e o dizível – a filosofia – além da própria problematização foucaultiana acerca da relação entre essas duas dimensões.

Admite-se também, entre os comentadores da obra de Foucault, que foi na Turquia que o filósofo elaborou suas investigações mais circunscritas sobre a pintura. É notório o curso, infelizmente perdido, sobre a renascença italiana ministrado durante seu período tunisiano. Além disso, a intensa experiência política de Foucault em Túnis, sugere que se anuncia, a partir desse momento, o estreitamento das relações entre a estética e a política em sua obra.108

Outra peculiaridade interessante que deve ser observada sobre a publicação da Seuil, é que o texto preserva o ritmo da oralidade que caracteriza sua origem. Utilizando diapositivos, Foucault

107

Transcrição efetuada por TRIKI, R., in Les Cahiers de Tunisie, nº 149-150, 3º et 4º trimestre 1989, p. 61-89.

108 Entre 1967 e 1968, Foucault testemunha as revoltas estudantis contra o governo tunisiano e sua violenta resposta.

Supõe-se que o retorno de Foucault para a França tenha sido motivado por pressões políticas, pois Foucault militou em favor dos estudantes. Cf. TRIKI, R., “Foucault en Tunisie”, in Michel Foucault, un regard, SAISON, M. (Dir.), France, Seuil, 2004, p. 51-63.

avaliou uma série de quadros de Manet para demonstrar as operações por meio das quais o pintor francês teria traçado profundas transformações na pintura ocidental. Não se outorgando especialista em pintura e, tampouco, um perito na obra de Manet, Foucault escolheu apenas algumas de suas telas para analisar, dividindo-as em três conjuntos. São treze pinturas, como se segue (dentre as quais, somente algumas serão comentadas nesta dissertação):

1º conjunto: La Musique aux Tuileries (A Música nas Tuileries), Le Bal masqué à l'Opéra (O Baile

de máscaras na Ópera), L'Exécution de Maximilien (A execução de Maximiliano), Le Port de Bordeaux (O Porto de Bordeaux), Argenteuil, Dans la serre (Na estufa), La Serveuse de bocks (A Servente de cervejas) e Le Chemin de fer (A Estrada de ferro). Nestas pinturas, Foucault avalia

como Manet tratou o espaço da tela; as propriedades espaciais da tela (sua superfície, sua altura, seu comprimento), ou seja, as propriedades materiais do espaço sobre o qual pintou.

2º conjunto: Le Fifre (O tocador de pífaro), Le Déjeuner sur l'herbe (O Almoço sobre a relva),

Olympia e Le Balcon (A Varanda). Foucault avalia como Manet trata do problema da iluminação,

como ele a utiliza: não uma luz representada que iluminaria o interior do quadro, mas a luz exterior real que incide sobre a pintura. O quadro acende uma luminosidade exterior que acaba por transformar o espectador.

3º conjunto: Un bar aux Folies-Bergère (Um bar em Folies-Bergère). Foucault avalia como Manet jogou com o lugar do espectador no quadro, analisando uma das últimas telas de Manet - um quadro que resume toda a sua obra.

A – O problema da representação do espaço.

Nesse conjunto de pinturas, Foucault destaca os elementos que organizam as composições de Manet. A pintura de Manet é caracterizada pela ausência de profundidade na composição, pela proximidade excessiva do rosto das figuras dificultando sua observação pelo espectador e pelo jogo de faixas horizontais e verticais. A cor possui uma função construtiva, pois não há ponto de fuga e, tampouco, perspectiva.109 Ademais, Foucault observa que Manet encontra uma maneira adicional de

jogar com as propriedades materiais da tela, pois além de sua tessitura, a tela é afirmada como uma superfície que possui dois lados, uma “frente” e um “verso”.110

Foucault indica o caráter fantasmático das telas de Manet; sua aparência de “tapeçaria”, de 109

Manet passa a utilizar os cinzas e negros em suas telas, com a descoberta de Velásquez, comenta Jorge Coli. Manet, posteriormente, iluminará sua paleta ao iniciar seus impressionismos, mas estas primeiras pinturas tiveram uma influência definitiva na história da pintura, segundo Coli. Cf. COLI, J., “Manet: o enigma do olhar”', in O olhar, NOVAES, A. (Org.), São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 227.

“papel pintado”,111 de cena infinita pela sobreposição de planos e de cores. Não um espaço real da

percepção, mas um espaço da afirmação das propriedades materiais da tela.

Anteriormente, a percepção do artista – ou “percepção pictórica”, segundo Foucault – deveria reproduzir a percepção sensível cotidiana, buscando realismo e o dimensionamento do espaço na mesma proporção do que fosse observado:

(...) era um espaço quase real onde a distância poderia ser lida, apreciada,

decifrada como quando nós mesmos observamos uma paisagem.112

Contudo, no “espaço pictural” construído por Manet, a distância não é mais apresentada e a profundidade não é mais objeto de percepção; além disso, tanto o posicionamento como o alinhamento dos personagens são colocados como “signos” que possuem “sentido” e “função” somente no interior da pintura.113

Manet utiliza-se dos conhecimentos apreendidos nos ateliers onde estudou, incluindo o atelier do mestre Thomas Couture (1815-1879),114 separando-se da tradição, mas dialogando com

ela.115 Na tela L'Exécution de Maximilien, de 1867, por exemplo, quadro inspirado em Francesco

Goya (O três de maio de 1808, de 1814),116 Manet apresenta seus procedimentos. Um grande muro

apóia uma cena de extrema violência, um fuzilamento. O muro como fundo da tela duplica a própria tela e os personagens, comprimidos num estreito trecho de terra, causam um efeito de gradação. Os condenados são menores do que o pelotão de fuzilamento, apesar de estarem no mesmo plano, pois Manet utiliza-se de uma técnica arcaica. Segundo Foucault, técnica anterior ao

Quattrocento, na qual, para se obter o efeito de perspectiva, diminui-se o tamanho das figuras

gradativamente, sem dividi-las em planos. Os blocos das figuras estão tão próximos um do outro que os canos dos fuzis parecem tocar o dorso das vítimas. Foucault afirma, assim, que ocorre um “reconhecimento puramente intelectual” (e “não perceptivo”) de que deveria haver uma distância

111

“tapisserie”, “papier peint”, Cf. FOUCAULT, M., La peinture de Manet, p. 27. Tradução nossa.

112 (...) c'était un espace quasi réel où la distance pouvait être lue, appréciée, déchiffrée comme lorsque nous regardons

nous-mêmes un paysage. Cf. FOUCAULT, M., La peinture de Manet, p. 29. Tradução nossa.

113

“espace picturale”, “signes”, “sens”, “fonction”, Cf. Ibid. Tradução nossa.

114 Manet estudou no ateliê de Couture por seis anos, mas rompeu com seu mestre por não seguir seus academicismos.

Couture, era um pintor oficial, ficou célebre por uma tela composta quase que inteiramente por citações, Os romanos da decadência, de 1847, com a qual ganhou inúmeros prêmios.

115 Segundo Jorge Coli, foi com as imagens do passado que Manet construiu sua modernidade. Manet referiu-se a

“imagens culturalmente muito marcadas”, mas ofereceu-lhes um sentido novo. Sua obra é precedida por Giorgione, Rafael e Ticiano, contudo, apesar de dominar suas técnicas, de modo algum ele pintou ao modo dos antigos mestres. Cf. COLI, J., op. cit., p. 227.

116 Foucault não faz referência à tela de Goya em seu texto, apesar de conhecer a obra do pintor espanhol. Didier Eribon

afirma que Foucaul chegou a visitar o museu do Prado, onde estão todas as pinturas de Goya citadas por ele em seus textos. Cf. ERIBON, D., op. cit.

entre o pelotão de fuzilamento e as vítimas.117

L'Exécution de Maximilien, Édouard Manet, 1867.118

El tres de mayo de 1808, Francesco Goya, 1814.

Já em Le port de Bordeaux, de 1871, a repetição dos eixos verticais (formados pelos mastros e velas das embarcações) e dos eixos horizontais (formados pela água e pelo enfileiramento das embarcações) constitui a cena. Porém a própria textura da tela sobre a qual repousam as pinceladas da pintura, por sua materialidade, igualmente, estabelece a cena. Conforme Foucault, as “fibras” da tela e sobre ela, a “filigrana”, a marca da pintura.119

117 “reconnaissane purement intellectuelle”, “non perceptive”, Ibid., pp. 28-29. Tradução nossa.

118 Todas as imagens utilizadas neste trabalho foram retiradas da internet e não podem ter sua origem definida, por isso,

não foi produzido um índice iconogŕafico.

Le Port de Bordeaux, Édouard Manet, 1871.

Foucault compara esta tela de Manet com as diferentes interpretações de Mondrian de um mesmo tema, Des arbres (1910-1914). Mondrian teria descoberto a própria pintura abstrata, concomitantemente a Wassily Kandisky. O tratamento oferecido por Manet aos barcos criaria o mesmo jogo de perpendicularizações obtido pela pintura de Mondrian.

Adiante, Foucault, antes de finalizar esse conjunto, através de La Serveuse de bocks, descreve uma operação inovadora na pintura de Manet. As duas figuras centrais da cena olham para direções opostas e na cena não é possível vislumbrarmos o que ambas observam: dois pontos de vista distintos são afirmados.

(...) nós temos dois personagens que olham, ou primeiramente esses dois personagens não olham para a mesma coisa, e depois o quadro não nos

mostra o que esses personagens olham.120

La Serveuse de bocks, Édouard Manet, 1879.

De certo modo, conforme Foucault, nada é representado, já que o espectador não pode ver o que os personagens olham. La serveuse de bocks não demonstra uma visibilidade, mas garante a invisibilidade daquilo que os personagens miram, pois a cena pintada é um pedaço de algo maior que acontece, o qual o espectador não pode observar. 121

Manet opera uma inversão, na medida em que o espectador é forçado a se tornar autor da tela, porque a cena que ocorre sobre os ombros das figuras não pode ser observada. Foucault destaca a invisibilidade do que os personagens olham. Invisibilidade esta que forçaria o espectador

120 (...) nous avons deux personnages qui regardent; or premièrement ces deux personnages ne regardent pas la même

chose, et deuxièmement le tableau ne nous dit pas ce que les personnages regardent. Cf. Ibid., p. 33. Tradução nossa.

121 É sabido, contudo, que os personagens assistem à um espetáculo de cabaret, na medida em que a pintura pode ser

contraposta a uma outra pintura de Manet, Coin de café-concert au cabaret de Reichshoffen. Uma pintura posterior que compõe uma série de estudos de Manet, realizados nesse período – como La prune, Buveurs de bocks e Au café-concert –, sobre o café e cervejaria Reichshoffen (ponto de encontro de muitos pintores impressionistas em Paris).

a mudar de posição para tentar desvendar a maneira “viciosa, maliciosa e maligna” de pintar da artista,122 além de reafirmar o jogo que Manet realiza com as propriedades materiais da tela, isto é, o

destaque da frente e do verso da tela.

Foucault contrapõe a tela de Manet a uma pintura de Tommaso Masaccio (1401-1428) da

Capela Brancucci na Igreja de Santa Maria del Carmine em Florença - Le paiement du tribut –

enfatizando a novidade da operação de Manet.123 Personagens em círculo, segundo Foucault,

conversam e olham para o que nós espectadores também podemos olhar, seu diálogo.

B – O problema da iluminação.

Nesse conjunto de telas analisadas, Foucault destaca que os sistemas de iluminação são discordantes e a profundidade das pinturas foi suprimida. A iluminação é tanto frontal e direta, externa e perpendicular ao quadro, quanto interior e lateral. Há, contudo, sempre uma “fresta” que ilumina a cena – técnica consagrada, segundo Foucault, por Caravaggio. Manet, utiliza pela primeira vez uma iluminação “real”, uma iluminação que destaca a materialidade da tela, ainda que não abandone a técnica tradicional da pintura criada no início da renascença.

Le Balcon, Édouard Manet, 1868-1869.

122

“vicieuse, malicieuse et méchante”, Cf. FOUCAULT, M., La peinture de Manet, p. 35. Tradução nossa.

123 Foucault visitou essa igreja com uma amiga – a psicóloga Jacqueline Verdeaux – durante um verão nos anos

cinquenta – fato relatado por Didier Eribon em sua conhecida biografia. A Capela Brancacci contém afrescos de Masolino, Masaccio e Fillippino Lippi, representando o pecado original e a vida de São Pedro. Cf. ERIBON, D., Michel Foucault: uma biografia. Trad. de Hildegard Feist. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

Em Le Balcon, por exemplo, novamente Manet inspira-se em Goya, especificamente nas

Las majas en el balcón, de 1812, para pintar sua conhecida e comentada tela. O jogo de verticais e

horizontais não mascara o suporte da pintura. Manet redobra e multiplica linhas e retângulos para enfatizar a materialidade da pintura. Ademais, inverte mais uma tradição clássica ao utilizar o preto e o branco para definir as figuras. Desde a renascença, cores como o vermelho, o azul e o verde eram utilizadas para as vestimentas dos personagens e cores neutras para os elementos arquiteturais. Manet sublinha o balaustre e as persianas do balcão colorindo-os de verde e o interior da residência não é mostrado. Preservando o fundo da cena, podemos observar apenas sombras de objetos e um garçom. A luz derrama-se no exterior, fora, no balcão e o escuro se coloca dentro, na residência.

Além disso, Manet, para Foucault, continua a demonstrar sua malícia ao colocar os personagens olhando para direções distintas, pois o que eles olham não é mostrado ao espectador. São três direções distintas e três cenas veladas para o espectador. Segundo Foucault, apenas as mãos das figuras garantem a relação entre elas: mãos enluvadas, mãos sem luvas e mãos que estão sendo vestidas. Assim, mais uma vez, a invisibilidade é o que atravessa a pintura.124 Não

fortuitamente, Foucault faz referência à Le balcon de Manet de René Magritte, pintura na qual os personagens são substituídos por caixões.125

Nesse conjunto, também destacam-se as descrições de Foucault sobre duas pinturas de nu:

Le Déjeuner sur l'herbe e Olympia. Pinturas que causaram escândalo e que, ainda hoje, são tema de

discussão. Olympia foi, inclusive, retirada do salão de 1865, em Paris.

Foucault concorda com a opinião comum de que em Le Déjeuner sur l'herbe não há qualquer tipo de convenção social; Manet pintou as figuras como se elas compusessem uma natureza morta. Mas Foucault sugere que não foi a nudez feminina das figuras a causa da rejeição do público. Para Foucault foi a iluminação o motivo para a indignação popular.

A nudez é exposta por uma luz frontal e perpendicular que ao mesmo tempo que se justapõe ao sistema tradicional, dele discorda, criando uma heterogeneidade no quadro. Conforme Foucault, uma iluminação de “pintura à japonesa”, uma iluminação brutal e que não possibilita relevo.126

124

FOUCAULT, M., La peinture de Manet, p. 43. Tradução nossa.

125 René Magritte escreveu para Michel Foucault após ler As palavras e as coisas entre 1966 e 1967 (ano de seu

falecimento). Seu interesse foi despertado pelo capítulo III, Representar. Em 1973, com Ceci n'est pas une pipe, essa correspondência foi publicada.

Le Déjeuner sur l'herbe, Édouard Manet, 1863.

Já o famoso nu Olympia, de 1863,127provocou a crítica, ao longo da história, a levantar

diferentes hipóteses para justificar o repudio do público. Da nudez da mulher ao seu ofício, pois Olympia era uma cortesã, uma mulher que, indiferente aos olhares que a perscrutam, observa o espectador sem pudor.128

Olympia, Édouard Manet, 1863.

Foucault, entretanto, recusa ambas as justificativas, afirmando também que outros nus 127 Olympia foi inspirada na Vênus de Urbino de Ticiano (1490-1576), de 1538, que por sua vez foi baseado na Vênus

Adormecida de Giorgione (1477-1510), de 1510.

anteriormente foram expostos no salão sem qualquer alarde. Para Foucault, são as próprias características pictóricas da composição da tela, fundamentalmente sua iluminação, a causa de sua rejeição.

Novamente Foucault utiliza a expressão “pintura à japonesa”. Foucault identifica, inicialmente, os elementos que apresentam a figura; a nudez da mulher e a iluminação, ligados pelo olhar do espectador. Foucault, desse modo, destaca a implicação do espectador na nudez, é ele quem ilumina a nudez de Olympia:

(...) qualquer espectador se encontra – necessariamente implicado nessa nudez e nós somos por isso até certo ponto responsáveis; e vocês vêem como uma transformação estética pode, em um caso como esse, provocar

escândalo moral.129

Assim, temos dois elementos e não três elementos na apresentação da figura: a nudez da mulher e uma iluminação frontal conjugada com o lugar do espectador, ou seja, o espectador está no lugar da iluminação. O olhar do espectador ilumina a tela e é responsável pela nudez de Olympia.

Foucault compara Olympia com a Vênus de Ticiano. A Vênus joga somente com a nudez e a fonte da iluminação à esquerda. A iluminação da pintura de Ticiano é o princípio discreto da indiscreta visibilidade do corpo, ao contrário da Olympia de Manet, em que a iluminação é violenta e a marca plenamente. Assim, a indignação popular seria provocada por essa operação.130 É neste

sentido que Foucault constatou que uma “transformação estética” pode causar um “escândalo moral”.

C – O problema do lugar do espectador.

Finalmente, Foucault conclui sua reflexão sobre a pintura de Manet analisando a conhecida tela Un bar aux Folies-Bergère, de 1881-1882. Toma como exemplo o Portrait de la Comtesse

d'Haussonville, de Ingres, comentando a tradição na história da arte de retratos com espelhos por

129 (...) tout spectateur se trouve - nécessairement impliqués dans cette nudité et nous em sommes jusqu’à um certain

poit responsables; et vous voyez comment une transformation esthétique peut, dans um cas comme celui-là, provoquer le scandale moral. Cf. FOUCAULT, M., La peinture de Manet, p. 40. Tradução nossa.

130 Jorge Coli recorda a análise de Foucault da tela As meninas de Velásquez e associa a influência deste na obra de

Manet. Apesar de Velásquez configurar uma pintura da representação e Manet constituir o início de uma pintura da materialidade, foi com Velásquez que Manet aprendeu a empregar tal processo – os lugares do rei e da rainha que observam o trabalho do pintor e o lugar do espectador. Cf. COLI, J., op. cit., p. 238.

trás da personagem apresentada. Contudo, afirma que Manet realiza esta pintura de forma totalmente inusitada. Foucault considera esta tela como a última das grandes pinturas de Manet.

Un Bar aux Folies-Bergère, Édouard Manet, 1881-1882.

Novamente Manet utiliza-se do artifício de uma faixa horizontal – o espelho – para reduzir a profundidade da cena. E Foucault observa a incompatibilidade entre a imagem refletida pelo espelho atrás da balconista e a imagem que deveria ser representada:

(...) pois de fato há uma distorção entre o que é representado no espelho e o que deveria estar refletido.131

Ademais, Manet utiliza o mesmo recurso de L'Exécucion de Maximilien: o espelho no fundo da cena é como um muro, ele impossibilita a construção de uma profundidade.

Já a iluminação é frontal e exterior, mas são representados dois lampadários no reflexo do espelho, simulando uma iluminação interior. Foucault indica que, astuciosamente, Manet representa

131

(...) car em fait il y a distorsion entre ce qui est représenté dans le miroir et ce qui devrait y être reflété., Cf. FOUCAULT, M., La peinture de Manet, p. 45. Tradução nossa.

no espelho objetos que não estão à frente da cena. Destacando-se nessa “distorção”, entre o que é representado no espelho e o que se anuncia à sua frente, o casal de personagens.

A mulher, frontalmente observada pelo espectador, tem seu reflexo representado no espelho à direita, produzindo dois lugares para o pintor e, consequentemente, para o próprio espectador. Uma solução para o problema, segundo Foucault, seria o espelho estar em diagonal, contudo, a borda do espelho demonstra a impossibilidade dessa operação. Há também o reflexo de um homem no espelho, que está no lugar onde o pintor-espectador deveria estar: há, desse modo, uma incompatibilidade, tanto na ausência, como na presença do personagem.

Foucault, assim, aponta três sistemas de incompatibilidades: o pintor possui dois pontos de vista, deveria e não deveria haver o reflexo da balconista no espelho e duas fontes de luz estão presentes na tela.

Para Foucault, além disso, é impossível identificar não somente o lugar do pintor, como o próprio lugar do espectador - o que nos causa, ao mesmo tempo, encanto e mal-estar. Para além da