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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Marta Souza Santos

Imagens do pensamento:

a pintura de Édouard Manet e Gérard Fromanger

na obra de Michel Foucault.

MESTRADO EM FILOSOFIA

São Paulo

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Marta Souza Santos

Imagens do pensamento:

a pintura de Édouard Manet e Gérard Fromanger

na obra de Michel Foucault.

MESTRADO EM FILOSOFIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católoca de São Paulo, sob orientação da Profa. Dra. Salma Tannus Muchail.

São Paulo

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Banca Examinadora

____________________________

____________________________

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Aos meus pais, Manuela e João Baptista, in memoriam.

(5)

Agradecimentos

À professora Salma Tannus Muchail pelas aulas formadoras e preciosas. A orientadora mais minuciosa e assertiva. Mestre sempre compassiva.

Ao professor Márcio Alves da Fonseca pelos cursos elaborados, imprescindíveis para a realização deste trabalho e por todo o auxílio.

Aos professores André Yazbek e Sônia Campaner pela presteza, afabilidade e pelas sugestões na ocasião da qualificação.

Às funcionárias do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, as fofas Siméia e Gisele. E ao professor, Edélcio de Souza, pelo apoio (desde a graduação).

Ao Grupo de Estudos Michel Foucault da PUC-SP: Adriana Borghi, Alessandro Francisco, Aroldo Cardoso, Cássia Suzuki, Cláudia Martins, Edélcio Ottaviani, Fabiano Incerti, Flávia D’Urso, Ivan Sampaio, Luiz Pires, Nádia Vieira e Rogério Xavier. Por todos os encontros, debates e lanchinhos. Em especial à Roberta Sendacz, amiga delicada e afetuosa. E aos amigos Aldo Ambrósio e Davis Alvim, pelas boas lembranças de nossas conversas.

Aos colegas professores da Diretoria de Ensino Centro por me auxiliarem com os trâmites referentes à bolsa concedida pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Especialmente ao Supervisor de Ensino, Damião Pereira.

Aos colegas professores, à direção e também aos meus 1.880 alunos da Escola Estadual Professora Zuleika de Barros Martins Ferreira, que me acompanharam durante esse período, em especial, para Felipe Policisse, Leonardo Scola e Thiago Cordeiro. Sem esquecer de Gislene Soares,

amiga querida, pela revisão da dissertação.

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RESUMO

Este trabalho teve como propósito investigar o lugar e o papel da imagem nos escritos de Michel Foucault, avaliando seu uso não somente como recurso narrativo, mas também como elemento de sua metodologia – da qual a pintura seria componente – além de indagar sobre a possível constituição de uma estética em sua obra.

Inicialmente esta dissertação contextualiza a inserção de Michel Foucault na tradição da historiografia e da crítica de arte ocidentais. Em seguida, após um breve panorama sobre a posição e função da imagem na obra de Michel Foucault (com uma descritiva de seus escritos, privilegiando a presença da pintura), segue com a leitura de dois de seus textos, através da perspectiva de sua trajetória metodológica; a dimensão do saber na arqueologia com a leitura de La peinture de Manet, texto pronunciado como conferência entre os anos de 1967 e 1971, no qual Foucault realiza uma análise de treze pinturas de Édouard Manet; e a dimensão da genealogia com a leitura de A pintura fotogênica, de 1975, texto no qual Foucault avalia diversas pinturas-fotografias do artista francês Gérard Fromanger.

A questão da imagem é articulada com algumas noções fundamentais para a demonstração de sua importância na obra de Michel Foucault, tais como as questões do dispositivo, da resistência política e da estética da existência. Ademais, a divisão da leitura nesta pesquisa, dos textos de Michel Foucault sob o recorte de sua arquegenealogia, considera os três domínios (ou eixos) de trabalho percorridos pelo filósofo ao longo de sua obra – o saber, o poder e a ética – além de valorizar o projeto geral foucaultiano de uma investigação histórico-filosófica das relações entre sujeito e verdade, posicionada sob a perspectiva de uma ontologia do presente.

A ontologia do presente, ou ontologia histórica, considera o trabalho crítico que a filosofia deve empreender na atualidade, reunindo tanto a arqueologia do saber – ou dos discursos – que constituíram o homem como objeto e sujeito do conhecimento, como a genealogia – como produção de saberes e de práticas – do poder que intervêm sobre o sujeito e da ética acionada por

ele em sua auto-constituição. Assim, o problema da modernidade, recorrentemente elaborado por Foucault em suas investigações históricas, é também dimensionado a partir da compreensão do filósofo do que constitui a criação artística e sua participação nos jogos e lutas políticas.

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ABSTRACT

This work aimed to investigate the place and the role of the image in the writings of Michel Foucault, evaluating its use not only as a narrative tool but also as part of his methodology – of which the painting would be a component. Besides that, it aimed at investigating a possible constitution of an aesthetic in his work.

Initially this thesis contextualizes the inclusion of Michel Foucault in the tradition of

historiography and criticism of the western arts. Then, after a brief overview of the position and function of image in work of Foucault (with a descriptive of his writings, favoring the presence of painting), follows the reading of two of his texts throught the perspective of his methodological carrrer: the dimension of knowing with reading de La peinture de Manet, text pronounced as a conference between the years 1967 e 1971, in which Foucault performs an analisys of thirteen Manet's paintings; and the dimension of genealogy with the reading of The photogenic painting in the year 1975, text in which Foucault evaluate several photogenic paints from the french artist Gérard Fromanger.

The question of image is in combination with some basic concepts and key to the demonstration of its importance in the Michel Foucault's work, as the issues of device of political resistance and the aesthetic of existence. Moreover the reading's division in this research of the texts by Foucault, under the focus of his archegenealogy considere the three domains of work traversed by the philosopher along his carreer – knowlodge, power and ethics – in addition to valorize the general Foucault's project of a historical-philosophical investigation of relations between subject and truth positioned from the perspective of a present ontology.

The present ontology, or historical ontology, considers the critical work which the philosophy should undertake nowadays gathering the archaelogy of knowlodge – or the speeches – which made the man as an object and subject of knowlodge, like the power of genealogy – as production of knowlodges and the practices – of power which interfere on the subject and the ethics actioned by him in his self-constitution. Considering this, the problem of modernity, frequently

elaborated by Foucault in his historical investigations, it's also based on the understanding of the philosopher about what constitute the artistic creation and his participation in the games and political struggles.

(8)

SUMÁRIO

Introdução …... 09

Capítulo I: Pensamento visual 1 – A visão na obra de Michel Foucault …... 18

2 – Escritos estéticos e pintura …... 22

3 – Teórico, crítico, ou artista? …... 29

Capítulo II. Sob o signo da modernidade 1 – Arqueologia do Saber: Édouard Manet (1967-1971) 1.1 – Três conjuntos analisados …... 39

A – O problema da representação do espaço …... 40

B – O problema da iluminação …... 45

C – O problema do deslocamento do espectador …... 48

1.2 – A materialidade da pintura …... 50

1.3 – Modernidade e estética da existência ... 60

2 – A dimensão do poder na Genealogia: Gérard Fromanger (1975) 2.1 – Uma “pintura fotogênica” …... 65

2.2 – Os dispositivos visuais …... 76

2.3 – A criação como resistência política …... 79

Considerações finais: Foucault e a experiência da modernidade …... 85

(9)

INTRODUÇÃO

Michel Foucault (1926-1984) escreveu sobre expressões artísticas distintas, como a arquitetura, a literatura, a música, a pintura e a fotografia. Contudo, a pintura ocupa um lugar especial nos escritos estéticos de Foucault. Ao longo de uma entrevista, realizada em 1975, Foucault afirma ter sido mais sensível à pintura do que até mesmo à literatura:

(…) Devo dizer que nunca gostei da mesma forma da literatura. Na

pintura, há a materialidade que me fascina.1

E continua:

É uma das raras coisas sobre a qual eu escrevo com prazer e sem me bater

com quem quer que seja. Acredito não ter nenhuma relação tática ou

estratégica com a pintura.2

É possível, entretano, observarmos a importância da pintura não somente como fonte de prazer e como objeto de fascínio para Foucault. Atualmente, passadas algumas décadas desde a morte do filósofo, recupera-se, em diferentes universidades e centros de estudos, a importância

metodológica e conceitual da pintura em seu pensamento. Devido a publicação e a tradução recentes de alguns escritos inéditos de Foucault, a pintura, assim como a imagem, a visão ou o olhar e o espaço, são questões importantes para a renovação da leitura e análise do conjunto de sua obra.

Além disso, seja na área da historiografia e crítica da arte, seja nos denominados estudos de

Visual Culture, ou Cultura Visual,3 é inegável a influência de Foucault para a compreensão dos

1(...) je dois dire que je n'ai jamais tellement aimé l'ecriture. Il y a la matérialité qui me fascine dans la peinture. Cf. FOUCAULT, M., “À quoi rêvent les philosophes?” (1975), in Dits et écrits II: 1954-1975, Paris, Gallimard, 2001, p. 1574. Trad. de Elisa Monteiro. “Com o Que Sonham os Filósofos?”, in Arqueologia das ciências e história dos Sistemas de Pensamento, Coleção “Ditos & Escritos”, vol. II. Org. e seleção de textos de Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2000, p. 298.

2

(la peinture) c'est l'une des rares choses sur laquelle j'écrive avec plaisir et sans me battre avec qui que ce soit. Je crois n'avoir aucun rapport tactique ou stratégique avec la peinture. Ibid., p. 1573. Ibid., p. 297.

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modos pelos quais a produção artística participa de processos históricos e sociais. Michel Foucault inspirou uma geração de teóricos e críticos das artes plásticas (e também de artistas), principalmente nos anos setenta e oitenta, com suas publicações e seu ensino.

Assim, este trabalho teve como propósito investigar o lugar e o papel da pintura nos escritos estéticos de Michel Foucault, avaliando seu uso, não somente como recurso narrativo,4 mas

verificando seu uso como elemento da metodologia filosófica foucaultiana, bem como a possível constituição de uma estética da imagem em sua obra da qual a pintura seria componente.

Desse modo, inicialmente, esta dissertação contextualiza a inserção de Michel Foucault na tradição da historiografia e da crítica de arte ocidentais. Em seguida, após um breve panorama acerca da posição e função da imagem na obra de Michel Foucault (com uma descritiva de seus escritos), prossegue com a leitura de dois de seus textos, através da perspectiva de sua trajetória metodológica; a dimensão do saber na arqueologia com a leitura de La peinture de Manet (A pintura de Manet),5 texto pronunciado como conferência entre os anos de 1967 e 1971, no qual

Foucault realiza uma análise de treze pinturas de Édouard Manet; e a dimensão da genealogia com a leitura de “Le peinture photogénique” (“A pintura fotogênica”),6 de 1975, texto no qual Foucault

avalia diversas pinturas-fotografias do artista francês Gérard Fromanger.

Contudo, a divisão da leitura dos textos de Michel Foucault sob o recorte de três dimensões metodológicas – o saber, o poder e a ética – valoriza o projeto geral foucaultiano de uma investigação histórico-filosófica das relações entre sujeito e verdade, posicionada sob a perspectiva de uma ontologia do presente – herança foucaultiana da tradição crítica inaugurada por Immanuel Kant.

A conferência sobre a pintura de Manet, pronunciada por Foucault em diferentes ocasiões, foi contraposta ao texto “O que é o Iluminismo?”.7 Nesse momento, Foucault avalia a fundamental

e profunda herança kantiana para a cultura, ao propor a filosofia como uma atividade de crítica permanente do presente histórico que se coloca à vista e à indagação do filósofo. A filosofia é empreendida como uma tarefa de crítica da atualidade, todavia instaurada também no presente. Ela

4 Cf. CATUCCI, S., "La pensée picturale", in Michel Foucault: la littérature et les arts, ARTIÈRES, P. (Dir.), Paris, Kimé, 2004, p. 130.

5

FOUCAULT, M., La peinture de Manet, Maryvonne Saison (Dir.), France, Seuil, 2004.

6 FOUCAULT, M., “La peinture photogénique” (1975), in Dits et écrits I: 1954-1975, Paris, Gallimard, 2001. Trad. de Inês Autran Dourado Barbosa. “A pintura fotogênica”, in Estética: literatura e pintura, música e cinema, Coleção “Ditos & Escritos”, vol. III. Org. e seleção de textos de Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2006.

7 O texto “Qu’est-ce que les Lumières?” possui uma versão publicada no livro The Foucault Reader, organizado, em 1984, por Paul Rabinow, mas foi também parcialmente reproduzido, em maio de 1984, na Magazine Littéraire.

(11)

é considerada como atividade que “vê e diz criticamente”,8 mas sob as mesmas condições de

dizibilidade e visibilidade que diagnostica. Pretende-se, por isso, relacionar a tarefa própria da filosofia como atitude de modernidade e a tarefa de Édouard Manet, como artista moderno, segundo o próprio Foucault.

Ademais, a ontologia histórica, ou ontologia do presente, coaduna os três domínios (ou eixos) de trabalho percorridos por Michel Foucault ao longo de sua obra – o saber, o poder e a ética. Nela reunem-se uma arqueologia do saber ou dos discursos históricos que constituíram o

homem como objeto e sujeito do conhecimento; e uma genealogia como produção de saberes e de práticas do poder que intervêm sobre o sujeito e da ética acionada pelo sujeito em sua auto-constituição:

(...) uma ontologia histórica de nós mesmos em relação à verdade através

da qual nos constituímos como sujeitos de saber; segundo, uma ontologia

histórica de nós mesmos em relação a um campo de poder através do qual

nos constituímos como sujeitos de ação sobre os outros; terceiro, uma

ontologia histórica em relação à ética através da qual nos constituímos

como agentes morais.9

É importante observar, contudo, que a estruturação da leitura dos escritos de Michel Foucault, segundo a conhecida (e vastamente utilizada) divisão metodológica proposta por Hubert Dreyfus e Paul Rabinow, que compreende também um percurso cronológico, não ignora a identificação que algumas questões concernentes à visualidade nos escritos de Foucault atravessam os três eixos investigativos delimitados em sua obra. Além disso, o saber, o poder e a ética não constituem-se simplesmente como fases fixas e isoláveis na trajetória foucaultiana. Há um entrecruzamento e uma sobreposição entre as diferentes metodologias. É possível observar, por exemplo, que a arqueologia possui uma dimensão política. Recordemos que a publicação de

Histoire de la folie (A história da loucura),10 no início dos anos sessenta, estimulou uma crítica

combativa à prática psiquiátrica exercida naquele período, não somente na França, mas também em

8 MUCHAIL, S. T., Foucault, simplesmente, São Paulo, Loyola, 2004, p. 106.

9 (...) une ontologie historique de nous-mêmes dans nos rapports à la vérite qui nous permet de nous constituer em

sujets de connaissance; ensuite, une ontologie historique de nous-mêmes dans nos rapports à um champ du pouvoir où nous nous constituons em sujets em train d’agir sur les autres; enfin, une ontologie historique de nos rapports à la morale qui nous permet de nous constituer em agents éthiques. Cf. FOUCAULT, M., “À propos de la généalogie de l'éthique: un aperçu du travail em cours” (entretien avec H. Dreyfus et P. Rabinow), in Dits et écrits II: 1976-1988, p. 1212. Trad. de Vera Portocarrero.DREYFUS, H. e RABINOW, P., Michel Foucault: uma trajetória filosófica (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2010, p. 307.

10

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diversos outros países, repercutindo, ainda hoje, na reflexão sobre as instituições hospitalares. Assim, a divisão metodológica (endossada pelo próprio Michel Foucault) permite não somente a organização da análise nesta pesquisa, mas corresponde à exigência de deciframento das transformações e das expansões que os conceitos foucaultianos sofreram ao longo de sua “trajetória” intelectual.

Desse modo, a questão da imagem é articulada com algumas noções fundamentais para a compreensão do pensamento de Michel Foucault – tais como as questões do dispositivo, da

resistência política e da estética da existência –, acompanhando as modificações da metodologia foucaultiana, mas devido também à exigência de sua própria análise.

Além disso, ainda que a dissertação não demonstre uma avaliação minuciosa de outros textos significativos sobre a pintura, produzidos por Michel Foucault – como as apresentações das exposições do artista grego Constantine (Dikos) Byzantios (1924-2007),11 dos pintores franceses

Máxime Defert (1944)12 e Paul Rebeyrolle (1926-2005),13 ou os livros Ceci n'est pas une pipe (Isto

não é um cachimbo)14 sobre René Magritte (1898-1967) e Raymond Roussel15 ela não ignora a

importância de algumas problematizações que lhes são pertinentes, como a questão do caligrama, além do exame da escritura e das técnicas de criação rousseliana que demonstram as estreitas relações entre a literatura e as imagens.

Destacam-se também, durante a pesquisa, para a discussão de temas caros aos estudos de

Visual Culture, ou Cultura Visual – tais como as noções de “ocularcentrismo” e “hegemonia visual”

os trabalhos de Martin Jay e Gary Shapiro.16

Logo, para a ampliação da discussão sobre a contribuição de Michel Foucault relativamente ao discurso contemporâneo sobre as artes plásticas, os conceitos de ut pictura poësis17 e de

11

FOUCAULT, M., “Paris, galerie Karl Finkler, 15 février 1974. Présentation (D. Byzantios, dessins)” (1974), in Dits et écrits I: 1954-1975, Parias, Galllimard, 2001, p. 1386.

12 FOUCAULT, M., “Máxime Defert” (1969), in op. cit., p. 794 e “Paris, galerie Bastida-Navazo, avril 1977 (sur le peintre Maxime Defert)” (1977), in Dits et écrits II: 1976-1988, p. 275.

13

FOUCAULT, M.,“La force de fuir” (1973), in Dits et écrits I: 1954-1975. Trad. de Ana Lucia Paranhos Pessoa “A força de fugir”, in Repensar a política, Coleção “Ditos & Escritos”, vol. IV. Org. e seleção de textos de Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2010.

14

FOUCAULT, M., “Ceci n’est pas une pipe” (1968), in Ibid., p. 663; Ceci n'est pas une pipe, Fata Morgana, Paris, 1971. Trad. de Jorge Coli, Isto não é um cachimbo, São Paulo, Paz e Terra, 2007.

15 FOUCAULT, M., Raymond Roussel, Paris, Gallimard, 1963. Trad. de Manoel Barros da Motta e Vera Lucia Avellar Ribeiro, Raymond Roussel, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1999.

16 A noção de “ocularcentrismo” indica o momento histórico de uma cultura na qual a visão é privilegiada como forma de apreensão e conhecimento do mundo em detrimento dos outros sentidos perceptivos. Segundo Jay, por exemplo, muitos filósofos franceses contemporâneos enfatizariam a importância do visual em seus sistemas de pensamento – tais como Maurice Merleau-Ponty, Georges Bataille, François Lyotard, Roland Barthes e Michel Foucault. Jay, entretanto, afirma que Foucault realizaria uma crítica da “hegemonia” do visual a partir da modernidade na cultura ocidental, como em Vigiar e punir, através do estudo de práticas visuais panópticas.

(13)

ékphrasis,18 elaborados pela tradição clássica da filosofia da arte, devem ser considerados, não

somente para a análise da ligação entre a pintura e a poesia, ou entre a pintura e a literatura nos escritos de Foucault, mas, principalmente, para a identificação dos conceitos foucaultianos que são instrumentalizados recorrentemente pela teoria e pela crítica da arte atuais. Destacam-se, além disso, as reflexões de Svletana Alpers, Michel de Certeau, Blandine Kriegel, Claude Imbert, Judith Revel, Rachida Triki, Stefano Catucci e Salvo Vaccaro, na indagação das relações entre as análises de Michel Foucault acerca do visual e seus conceitos de arquivo, epistémê, formações discursivas e

não discursivas, acontecimento, espaço, heterotopia, modernidade e verdade.

Não obstante, é importante ressaltar que os artistas, ou obras artísticas, avaliadas e citadas por Foucault, podem ser localizadas nos períodos históricos delimitados como epistémês (nomeadas como renascentista, clássica e moderna). Contudo, realizar um recorte cronologicamente linear sobre os estudos da analítica histórico-filosófica empreendida por Foucault não demonstra qualquer coerência com o próprio método historiográfico do filósofo, já que Foucault não considerou a história como um continuum linear. Para Foucault, a história não possuiria uma origem e nem um

telos.19

Observa-se, ainda assim, segundo Frédéric Keck e Stéphane Legrand,20 que algumas obras

artísticas marcariam, para Foucault, o início das epistémês: Don Quixote de Miguel de Cervantes na

epistémê renascentista, Sade (1740-1814) e As meninas de Diego Velásquez na epistémê clássica, Raymond Roussel e Édouard Manet na epistémê moderna. Através da descrição das obras desses artistas, Foucault buscaria explicitar a maneira pela qual ocorrem as transformações que acarretam a passagem de uma epistémê à outra. Keck e Legrand afirmam que para Foucault a obra artística permite a identificação do limite da experiência de uma época e o que está por vir.

John Rajchman, por sua vez, afirma que a analítica histórica de Foucault propõe a epistémê

como um “sistema de possibilidades do discurso”.21 Contudo, segundo Rajchman, Foucault não

incluiria a literatura e a pintura em sua noção de discurso, pois essas expressões artísticas se configurariam como “não-saberes” (Rajchman emprega uma expressão de Georges Bataille). Rajchman compartilha essa acepção com Gilles Deleuze. No seu livro Foucault,22 Deleuze

18 O termo grego ékphrasis durante todo o século XIX foi traduzido como “descrição” pela crítica literária, contudo, a partir da modernidade ele passou a ser traduzido como “expor em detalhe”. A noção de ékphrasis estabelece a discussão sobre a descrição retórica de uma imagem, ou seja, a narração pela palavra de todo e qualquer objeto visual. Esse debate se inicia durante o helenismo na antiguidade grega e se problematiza também, ao longo dos séculos, até a contemporaneidade, em relação à todo discurso que trata de uma obra de arte visual. Nas vanguardas artísticas europeias, na primeira metade do século XX, a ékphrasis, por exemplo, aproxima a poesia da pintura. A noção de

ékphrasis estabelece-se, assim, tanto no discurso literário, como no discurso filosófico. 19

REVEL, J., Dictionnaire Foucault, Paris, Ellipses, 2007, p. 71.

20 KECK, F. e LEGRAND, S., “Les épreuves de la psychiatrie”, in LE BLANC, G. e TERREL, J (Dir.)., Foucault au

Collège de France: un itinéraire, Pessac, Presses Universitaires de Bordeaux, 2003, p. 85. 21

RAJCHMAN, J., op. cit., p. 26.

(14)

compreende que a literatura e a pintura devem ser consideradas, segundo definição do próprio Foucault, como formações não-discursivas, ou seja, como práticas apoiadas sobre o discurso.

A acepção da pintura como uma formação não-discursiva de Rajchman, entretanto, confronta-se com a interpretação de Roberto Machado23 acerca do mesmo problema. Machado

destaca que Foucault propõe a análise como discurso das ciências e demais saberes, bem como da pintura.24 Segundo Machado, Foucault, em L'archéologie du savoir (A arqueologia do saber),

aventaria a possibilidade de “outras arqueologias”:

Eis o exemplo, entretanto, de uma outra orientação possível. Para analisar

um quadro, pode-se reconstituir o discurso latente do pintor; pode-se

querer reencontrar o murmúrio de suas intenções que não são, em última

análise, transcritas em palavras, mas em linhas, superfícies e cores;

pode-se tentar destacar a filosofia implícita que, supostamente, forma sua visão

do mundo. É possível, igualmente, interrogar a ciência, ou pelo menos as

opiniões da época, e procurar reconhecer o que o pintor lhes tomou

emprestado. A análise arqueológica teria um outro fim: pesquisaria se o

espaço, a distância, a profundidade, a cor, a luz, as proporções, os volumes,

os contornos, não foram, na época considerada, nomeados, enunciados,

conceitualizados em uma prática discursiva; e se o saber resultante dessa

prática discursiva não foi, talvez, inserido em teorias e especulações, em

formas de ensino e em receitas, mas também em processos, em técnicas e

quase no próprio gesto do pintor. Não se trataria de mostrar que a pintura é

uma certa maneira de significar ou de "dizer", que teria a particularidade

de dispensar palavras. Seria preciso mostrar que, em pelo menos uma de

suas dimensões, ela é uma prática discursiva que toma corpo em técnicas e

em efeitos. Assim descrita, a pintura não é uma simples visão que se

deveria, em seguida, transcrever na materialidade do espaço. Não é mais

um gesto nu cujas significações mudas e indefinidamente vazias deveriam

ser liberadas por interpretações ulteriores. É inteiramente atravessada –

independentemente dos conhecimentos científicos e dos temas filosóficos –

pela positividade de um saber.25

23 MACHADO, R., Deleuze, a arte e a filosofia, Rio de Janeiro, Zahar, 2009, p. 182. 24

(15)

Essas diferenças interpretativas quanto à noção de discurso e quanto ao próprio método arqueológico, contudo, não serão avaliadas nesta dissertação. Também não circunscreveremos o problema das relações entre a palavra e a imagem, ou entre o discurso filosófico e o discurso artístico.

Este trabalho, portanto, não toma como definitiva e acabada sua análise. Ele se coloca como um recorte possível acerca da condição da imagem na obra de Michel Foucault. A presente dissertação procura explicitar as relações entre os diversos temas e conceitos percorridos e

cunhados por Michel Foucault no desenvolvimento de sua obra, observando não somente um recorte cronológico de seus escritos, mas admitindo as diversas facetas que seu pensamento possui como objeto de análise. Desse modo, a expressão “poliedro de inteligibilidade”, cunhada por John Rajchaman,26 demonstra sua pertinência na pesquisa sobre a visualidade e sobre a presença da

pintura na filosofia foucaultiana, pois além de constituir-se obviamente como uma metáfora visual, essa expressão indica, ao mesmo tempo, três preceitos para a leitura da obra de Foucault: se, por um lado, a filosofia foucaultiana modifica-se quanto aos seus temas, métodos e objetivos, segundo suas próprias exigências internas de problematização, por outro lado, os conceitos foucaultianos devem ser considerados como um conjunto indissociável, pois seus conceitos constrõem-se como uma trama, o que impossibilita uma avaliação isolada de cada um deles. Os escritos de Foucault, assim, exigem um deslocamento constante de seu leitor, isto é, seu leitor deve modificar continuamente seu ponto de vista para acompanhar as transformações consumadas no pensamento foucaultiano. Consequentemente, do leitor exige-se sempre o mesmo perpectivismo que Foucault defende em seus procedimentos metodológicos e em sua analítica filosófica.

Não é coincidência, portanto, que a pesquisa procure destacar sobretudo a filosofia foucaultiana como uma atividade de diagnóstico das relações entre sujeito e verdade,27 em uma

investigação da constituição histórica da subjetividade do sujeito na cultura ocidental; relações que Foucault concebe como um trabalho de historiografia dos modos de subjetivação e objetivação dos sujeitos: de saberes que intentam ascender ao estatuto de ciências na objetivação do sujeito, de “práticas divisoras” que objetivam o sujeito e de práticas de si, através das quais o sujeito pode

reconhecer a si mesmo como sujeito moral.

A filosofia, para Foucault, é um trabalho de “sintomatologia” e não de busca por uma verdade perene; a filosofia deve buscar investigar a história dos sinais, dos jogos – das regras e procedimentos – de produção da verdade. A filosofia contemporânea para Foucault, ao menos desde 26

RAJCHMAN, J., Foucault: a liberdade da filosofia, Trad. de Álvaro Cabral, Rio de Janeiro, Zahar, 1987, p. 107. Citado por FRAYZE-PEREIRA, J., “Do império do olhar à arte de ver”, in Foucault - um pensamento desconcertante, Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, São Paulo, 7 (1-2), outubro de 1995, p. 157.

27

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Nietzsche, tem como tarefa a escavação sobre o presente de uma história da vontade de verdade:

(...) em dizer isso o que nós somos hoje e o que significa, hoje, dizer isso o

que nós dizemos.28

Assim, o problema da modernidade, recorrentemente elaborado por Foucault em suas investigações históricas – que percorreram o tema da loucura, da clínica, do nascimento das

ciências humanas, da sexualidade, das disciplinas e da biopolítica –, deve ser também dimensionado a partir da compreensão do filósofo do que constitui a criação artística e sua participação nos jogos e lutas políticas. Os textos de Foucault sobre Édouard Manet29 e Gérard

Fromanger – ambos artistas modernos, ainda que virtualmente separados pelo tempo –, demonstram a implicação da pintura em suas últimas pesquisas em direção ao questionamento do êthos de nossa atualidade, pois para Foucault, ainda estamos ligados à epistémê moderna. A pintura, desse modo, ao estabelecer uma perspectiva interpretativa para a compreensão de nossa modernidade, delimita também, concomitantemente, um outro espaço de auto-elaboração, ou subjetivação, para os sujeitos.

28 (...) à dire ce que nous sommes aujourd’hui et ce que signifie, aujourd’hui, dire ce que nous disons. Cf. FOUCAULT, M., “Qui êtes-vous, professeur Foucault?” (1967), in Dits et écrits I: 1954-1975, p. 634. Tradução nossa.

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Capítulo I.

PENSAMENTO VISUAL

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1 – A visão na obra de Michel Foucault.

Foucault alegra-se a enunciar e a descobrir os enunciados dos outros porque ele também tem a paixão de ver: o que o define, antes de tudo, é a voz, mas também os olhos. Os olhos, a voz. Foucault foi sempre um vidente, ao mesmo tempo que marcava a filosofia com um novo estilo de enunciados, os dois num passo diferente, num ritmo duplo.

(Foucault, Gilles Deleuze)

A importância da visão na filosofia francesa contemporânea é conhecida. Pensadores como Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Jean-François Lyotard e Roland Barthes, dentre outros, discorreram sobre o cinema, a fotografia e a pintura. Assim, Michel Foucault, por tomar a visualidade como tema em sua obra, também se filia a essa tradição reflexiva.

Estabelece-se, portanto, devido à diversidade de elaborações acerca do visual no pensamento francês, leituras distintas na interpretação do lugar da imagem na obra de Foucault, distinguindo-se, sobretudo, a análise de Martin Jay. Para Jay, não somente poderíamos incluir Michel Foucault nessa ''obsessão pelo visual'', como poderíamos observar também que sua filosofia seria elaborada como ''antivisão''.30 Em livros como a História daloucura (1961), O Nascimento da

clínica (1963),31 Raymond Roussel (1963) e As palavras e as coisas (1966),32 muito antes de

analisar o panoptismo de Vigiar e punir (1975),33 os textos de Foucault formulariam críticas ao

ocularcentrismo, ao primado do visual e sua nociva hegemonia na cultura ocidental a partir da modernidade.

Esta pesquisa, contudo, opondo-se à perspectiva de Jay - que toma a visualidade como mera crítica à moderna dominação do visual, alinha-se à posição de outros autores, como Gilles Deleuze e John Rajchman34. Posição que observa a obra de Foucault também como analítica-histórica do

papel da visualidade nas lutas do poder, pois Foucault demonstraria em seus livros em que medida o humanismo se sustenta epistemologicamente em um princípio visual. A imagem não seria pura manifestação do poder, mas se colocaria como parte integrante de processos sociais de

30

Cf. JAY, M., “Sous l’empire du regard: Foucault et le declin du visuel dans la pensée française du vingtième siécle”, in ROY, D. C. (Dir), Michel Foucault: lectures critiques, Bruxelles, De Boeck, 1989, pp. 195-223.

31 FOUCAULT, M., Naissance de la clinique. Une archéologie du regard médical, Paris, PUF, 1963.Trad. de Roberto Machado, Nascimento da clínica. Uma arqueologia do olhar médico, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1977. 32 FOUCAULT, M., Les mots et les choses. Une archéologie des sciences humaines, Paris, Gallimard, 1969. Trad. de Salma Tannus Muchail, As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas, São Paulo, Martins Fontes, 1981.

33 FOUCAULT, M., Surveiller et punir. Naissance de la prison, Paris, Gallimard, 1975. Trad. de Raquel Ramalhete,

Vigiar e punir. Nascimento da prisão, Petrópolis, Vozes, 1977. 34

(19)

diferenciação, de exclusão, de assimilação e de controle; de relações de dominação e de assujeitamento que não são postas a posteriori. Elas estariam inscritas no próprio interior dos sistemas de representação ocidentais.

Rajchman afirma, por exemplo, que a noção de espaço, seria muito importante nas análises de Foucault sobre o poder disciplinar e seria em parte avaliada sob o prisma da visibilidade. Para Foucault, os espaços tornariam as coisas visíveis de determinadas maneiras, os espaços possibilitariam modos específicos de ver.

Coadunam com a leitura de Rajchman, as investigações do italiano Salvo Vaccaro. Abordando a questão do olhar em Foucault a partir do conceito de espaço e de espacialização, Vaccaro, como Rajchman, contrapõe-se aos teóricos da Visual Culture que sustentaram o conceito de ocularcentrismo como fundamento para a análise da obra de Foucault. Para Vaccaro, Foucault, opondo-se a um discurso que concebe a hegemonia da visualidade na modernidade (e a necessidade de sua crítica), não somente trataria a visualidade na sua relação com a literatura, com a loucura, com a clínica, mas também no âmbito da estética, colocando em análise diferentes regimes visuais, diferentes epistémês.

Assim, em um pequeno texto de apresentação,35 Vaccaro, junto à Michele Cometta, destaca

três diferentes “sguardos” (“olhares”) na obra de Michel Foucault. O primeiro é o “sguardo clinico” (“olhar clínico”) que se apresenta em sua análise da ação de diagnóstico, da taxonomia da doença, da percepção do sintoma que se expressa no corpo do doente, realizados pelo “olhar médico”. O segundo é o “sguardo estetico” (“olhar estético”) que contrapõe visual – como pintura, fotografia e arquitetura – e verbal, determinando regimes escópicos (“regimi scopici”), diferentes regimes visuais.36 E o terceiro é o “sguardo politico” (olhar político) que na era moderna se apresenta

através do panopticon de Jeremy Benthan e que coloca práticas de controle e vigilância social. Segundo Vaccaro, entretanto, para Foucault, o olhar não se limitaria a observar. O olhar delimitaria tanto a percepção, como o comportamento dos sujeitos, ou seja, o olhar definiria a relação do sujeito consigo mesmo e seu modo de apreender o mundo:

(...) poder perceptivo internalizado e, assim, rendendo-se dócil ao olhar

dos outros, mudando e adaptando seu próprio comportamento, reforçando

35

VACCARO, S. e COMETA, M., “Presentazione”, in VACCARO, S. e COMETA, M. (Curs.), Lo sguardo di Foucault, Roma, Meltemi, 2007, pp. 7-8.

(20)

o estado de sujeição, percebendo-se enquanto sujeito constituído em tal

assimetria.37

Vaccaro, desse modo, partindo da noção de diagrama de Gilles Deleuze e Félix Guatarri, avalia o topos do olhar em Foucault, na sua dimensão epistemológica e na sua dimensão política

como conhecimento das dimensões do ótico e do háptico.38 Essas dimensões implicariam na

fabricação tanto do panoptismo, como também da biopolítica:

O panóptico é uma tecnologia visual em uma geopolicia do estado.39

Para Vaccaro, Foucault delimitaria a inscrição do olhar do “regime clássico da visibilidade do poder à moderna invisibilidade do poder”,40 que penetra e permeia capilarmente os corpos e

mentes dos sujeitos, os aparatos sociais, através de práticas discursivas e não-discursivas. Vaccaro destaca que Foucault não realçou somente os arcana imperii – os segredos de Estado – em sua história política, mas também o olhar que se exercitava sobre os corpos dos indivíduos. O olhar que – como “arte da espacialização da polícia” –41 distribuía a população no território, no século XVIII,

regulando o espaço na constituição de um sujeito dócil.42 O panopticon, como tecnologia visual, se

apoiaria em uma “política visual”43 – o poder se espacializava para distribuir os corpos, para

controlá-los através de saberes, como a medicina, a demografia e a sociologia – construída sobre processos materiais fundados sobre uma “visualidade estatal” – de um poder capturado pelo Estado.44

Vaccaro, por isso, descreve o lugar do olhar na obra foucaultiana, bem como sua função, seu “efeito categorial” na configuração de uma biopolítica, destacando a concepção foucaultiana do olhar em direção à sua fisicalidade, pois como sentido perceptivo, o olhar “toca” através do espaço,45 o olhar ativa um “dispositivo tópico”.46

37

(...) potere percettivo internalizzandolo e cosi rendendosi docili allo sguardo altrui modificando e adeguando propri comportamenti, ribadiscono lo stato di soggezione percependosi in quanto soggeti constituiti in tale asimmetria. Cf Ibid., pp. 136-137. Tradução nossa.

38 Olhar que é tátil - “sguardo prensivo” - pois não possui somente uma função “visiva”(“optique”), mas também “haptique”. Segundo Gilles Deleuze e Félix Guatarri, o olho não somente pode ver, mas também pode tocar com a mente, Cf. Nota 1, Ibid, p 145.

39Il panopticon è una tecnologia visuale in una geopolizia di Stato.Cf. Ibid., p. 136. Tradução nossa. 40

(...) regime clássico di visibilità del potere alla moderna invisibilità del potere. Cf. VACCARO, S., “Lo sguardo prensivo. Per una zoopolitica dei sensi in Foucault”, in Ibid., p. 136.

41 “arte di spazializzazione della police ”, Cf. Ibid. Tradução nossa. 42

O termo utilizado pelos autores é “conscienza” (ou “consciência”). Cf. Ibid.

43 “politica visuale”, Cf. Ibid. Tradução nossa. 44 “visualità statuale”, Cf. Ibid. Tradução nossa. 45

(21)

Na trilha de Merleau-Ponty, Foucault demonstraria que o olhar é um legado de processos históricos. “Visibilidade e discursividade”, desse modo, poderiam ser identificadas (através da arquegenealogia) em práticas “epistêmicas-materiais” produtoras de veredicção.47 Vaccaro afirma,

assim, as noções de “visibilidade e discursividade”, como “imagem e sensação”, por um lado e, por outro lado, como “palavra e conceito”.

Ademais, concordando com a leitura deleuzeana da obra de Foucault, Vaccaro afirma que o ver e o dizer estariam comprometidos na construção de uma “epistemologia estética”48 foucaultiana.

Sem privilegiar um sentido específico, Foucault conceberia o saber como um campo audiovisual de estratificações históricas. Vaccaro recorda, por exemplo, citando os estudos de Rachida Triki, que Foucault se interessou pelo Renascimento (e também por Édouard Manet) no final dos anos sessenta,49 por suas “imagens pictóricas que dizem sem palavras” e por suas operações de

“conjunção” e “disjunção” entre o ver e o dizer.

Foucault buscaria, segundo Vaccaro, delinear um tipo de “epistemologia estética” que coloca o problema da verdade como “construção” estratégica e não como “espelhamento ontológico.50 Foucault, portanto, não concordaria, segundo essa acepção, com um “olhar teórico”51

que de Platão a Heidegger procuraria desvelar (a-letheia) a verdade. Em sua genealogia do campo judiciário, por exemplo, a evidência se colocaria como resultado da relação estabelecida entre prova de verdade e visão, se colocaria como prolongamento de um olho que vê aquilo que a mente projeta como verdade. Para Foucault, assim, um dos resultados possíveis de sua arquegenealogia seria a identificação da “invisibilidade do visível”.52

Desse modo, as histórias foucaultianas – sejam elas da loucura, da clínica, ou da prisão – revelariam, sobretudo, a racionalidade de construções espaciais; o que pode ser visto nas escolas, nas prisões, nos museus, nos hospitais, nos asilos estaria relacionado a um conjunto de práticas pedagógicas, de exclusão, de controle, de divisão e de produção que definem um padrão de normalização e que induzem a certos modelos disciplinares, certos discursos, certas regras epistêmicas.

47

“visibilità e discorsività”, “immagini e sesazioni”, “parole e concetti”, Cf. VACCARO, S., “Lo sguardo prensivo. Per una zoopolitica dei sensi in Foucault”, p. 140. Tradução nossa.

48Ibid., p. 142. 49

Foucault, ministrou um curso público sobre a pintura italiana renascentista, entre setembro de 1967 e final de maio de 1968, na Universidade de Túnis. Mas, não há registros dessas aulas, apenas os testemunhos daqueles que assitiram as explanações de Foucault.

50

Ibid., p. 143. 51Ibid., p. 143.

52 “l'invisibilité du visible”, Cf. FOUCAULT, M., “La pensée du dehors” (1966), in Dits et écrits I: 1954-1975,p. 552. Trad. de Inês Autran Dourado Barbosa. “O Pensamento do Exterior”, in Estética: literatura e pintura, música e cinema,

(22)

2 – Escritos estéticos e pintura.

Michel Foucault dissertou sobre diferentes expressões artísticas – como a literatura, a pintura, a arquitetura, o teatro,53 o cinema e a fotografia – tecendo uma instigante reflexão sobre a

obra de arte. Mesmo assim, essa reflexão é menos conhecida e menos discutida do que outros campos abordados em sua obra.

A presença da literatura na obra de Foucault é, contudo, frequentemente avaliada, principalmente seus escritos sobre Georges Bataille (1897-1962), Maurice Blanchot (1907-2003), Raymond Roussel (1877-1933), Gustave Flaubert (1821-1880), Stéphane Mallarmé (1842-1898), Sade (1740-1814) e Pierre Klossowski (1905-2001) – que também era pintor. Esses textos repercutiram no campo de estudos literários, sobretudo em relação à noção de autoria e no caso dos estudos biográficos.

A pintura, entretanto, sobressaiu-se em diversos de seus escritos e é objeto de interesse, atualmente, entre os estudiosos da imagem e das artes plásticas. Destaca-se, sobretudo, a conhecida análise de Asmeninas de Diego Velásquez em As palavras e as coisas. Menos conhecida, porém, é a face de outros escritos, como artigos e edições particulares de prefácios de catálogos de exposição de artistas, como o pintor francês Paul Rebeyrolle (1926-2005), de 1973, do grego Constantin (Diko) Byzantios (1924-2007), de 1974, na Galeria Karl Finkler em Paris, do pintor-fotógrafo Gérard Fromanger (1939), no ano seguinte, ou do pintor francês Máxime Defert, na Galeria Daniel

Templon (em janeiro de 1969) e na Galeria Bastida-Navazo (em abril de 1977), além de reflexões sobre Paul Klee (1879-1940)54 e Wassily Kandinsky (1866-1944).55

Dentre os artigos destacam-se, igualmente, o ensaio sobre a pintura de Magritte, Ceci n'est pas une pipe (Isto não é um cachimbo), a conferência sobre a pintura de Édouard Manet, pronunciada entre os anos de 1968 e 1971, La peinture de Manet (A pintura de Manet) e o comentário Les mots et les images (As palavras e as imagens),56 sobre a edição francesa dos livros

Essais d'iconologie57 e Architecture gothique et pensée scolastique58 (Ensaios de iconologia e

53

Didier Eribon comenta que Foucault participou de um grupo de teatro, entre 1955 e 1958, período em que morou na cidade Uppsala, na Suécia. Ele produziu as peças da pequena companhia, viajando em tournée para algumas cidades próximas, como Estocolmo e Sundvall. Escreveu também sobre Samuel Beckett (1906-1989) e Antonin Artaud (1896-1948), bem como sobre o teatro francês do século XVII. Cf. ERIBON, D., Michel Foucault, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 91.

54 “C’était un nauger entre deux mots” (1966); “Qui êtes-vous, professeur Foucault?” (1967); “Ceci n’est pas une pipe” (1968), in Dits et écrits I: 1954-1975 e “Pierre Boulez, l’écran traversé” (1982), in Dits et écrits II: 1976-1988.

55 FOUCAULT, M., “Qui êtes-vous, professeur Foucault?” (1967), in Dits et écrits I: 1954-1975. 56 FOUCAULT, M., “Les mots et les images” (1967), in Dits et écrits I: 1954-1975, p. 648. 57

PANOFSKY, E., Essais d'iconologie, Paris, Gallimard, 1967.

(23)

Arquitetura e pensamento escolástico),do crítico e historiador da arte Erwin Panofski (1892-1968). Já no campo da fotografia, apesar de Foucault ter produzido somente duas apresentações de exposição – uma sobre o fotógrafo Duane Michals59 e outra sobre Gérard Fromanger (acima citado)

– verifica-se, entretanto, a importância pontual desses textos para a compreensão do lugar da imagem em sua obra. Em ambos os casos, Foucault tece aproximações entre a pintura e a fotografia, refletindo também sobre a relação entre a produção de imagens e a produção das subjetividades na contemporaneidade. No artigo sobre Fromanger, por exemplo, Foucault, além de

comentar sobre as ligações entre a pintura e a fotografia do final do século XIX, elogia o hibridismo da pintura-fotografia de Fromanger.

Outra influência importante de Foucault, aconteceu sobre a produção e reflexão cinematográfica francesa. Foucault escreveu pouco sobre o cinema, mas, segundo Serge Toubiana, a conceituada revista francesa Cahiers du Cinéma, por exemplo, teve de revisar seu “dogmatismo marxista”60 diante dos comentários críticos de Foucault (principalmente em entrevistas) sobre as

relações entre o saber histórico, o cinema, a memória popular, o nazismo e a guerra.61 Também o

filme Moi, Pierre Rivière, ayant égorgé ma mère, ma soeur et mon frère (Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão), de René Allio, produzido em 1976, foi diretamente inspirado na edição, coordenada por Foucault, das memórias de Pierre Rivière.62

Contudo, para além dos textos de Michel Foucault acerca da pintura, do cinema e da fotografia, podemos observar o próprio “caráter visual” e o “estilo óptico” da obra foucaultiana – notado por Michel de Certeau63 – pois o próprio texto de Foucault é marcado por “cenas e

figuras”.64 Assim, é importante sublinhar que, para a realização de uma reflexão sobre a presença da

visualidade na obra de Michel Foucault, devemos relacionar especialmente seus escritos sobre a pintura e a fotografia com o conjunto de sua obra.

O termo estética, entretanto, apesar da profusão de escritos sobre as artes, raramente foi utilizado por Foucault, pois do ponto de vista histórico ele se referiu à estética essencialmente como a passagem de um saber nominalista para uma experiência ancorada sobre a noção de uma ''bela 59

FOUCAULT, M., “La pensée, l'émotion” (1982), in Dits et écrits II: 1976-1988.

60“dogmatisme marxiste”, Cf. TOUBIANA, S., “Michel Foucault et le cinéma”, in Michel Foucault: la littérature et les

arts, p. 245. 61

Cf. FOUCAULT, M., “Anti-rétro” (1974), “Sur Marguerite Duras” (1975), in Dits et écrits: 1954-1975; “Sade, sergent du sexo” (1976), “Entretien avec Michel Foucault” (1976), “Le retour de Pierre Rivière” (1976), “Pourquoi le crime de Pierre Rivière?” (1976), “Les Matins Gris de la Tolerance” (1977), “Les quatres cavaliers de l'apocalypse et les vermisseaux quotidiens” (1980), in Dits et écrits II: 1976-1988.

62Cf. FOUCAULT, M. (Ed.), Moi Pierre Rivière, ayant égorgé ma mère, ma soeur et mon frère, Paris, Galliard-Julliard, 1973. Trad. de Denize Lezan de Almeida. Eu Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão: um caso de parricidio do século XIX apresentado por Michel Foucault, Rio de Janeiro, Graal, 2003.

63 CERTEAU, M. de, “Le rire de Michel Foucault”, Revue de La Bibliotiquè Nationale, vol 14, Paris, 1984. Citado por CATUCCI, S., op. cit., p. 131.

64

(24)

sensibilidade'', ou seja, ele se referiu ao surgimento da estética como disciplina da filosofia no século XIX. Foucault, portanto, não formulou uma doutrina do conhecimento estético, qualquer teoria acerca da sensibilidade ou dos processos de percepção e cognição. E em relação aos seus escritos sobre a pintura, somente em Isto não é uma cachimbo e La peinture de Manet, traçou relações visuais e semânticas internas nas obras analisadas.

Assim, aparentemente, a palavra estética somente adquire legitimidade na reflexão foucaultiana se analisarmos as referências a obras e artistas presentes em sua obra (sobretudo se

delimitarmos esta questão em relação à pintura).65 Não há uma concepção foucaultiana de uma

estética como disciplina sobre objetos, métodos e escolas. Desse modo, um problema que se configura ao avaliarmos os escritos de Michel Foucault aventando a possibilidade de uma estética foucaultiana, seria a própria localização do pensamento de Foucault na tradição da crítica de arte, já que Foucault impõe-se como uma referência teórica importante na cena artística contemporânea.

Desenham-se, porém, algumas hipóteses interpretativas na comparação de algumas análises dos comentadores da obra de Foucault. Em um primeiro momento, partindo da pesquisa arqueológica de Foucault, poderíamos, por exemplo, destacar que Foucault identificaria os discursos que sustentam e possibilitam um pensamento estético. Na perspectiva de sua arqueologia do saber, Foucault, segundo Manoel Barros da Motta,66 colocaria a pintura entre as manifestações

históricas dos sentidos e não das lógicas da estética clássica, além disso, ele conceberia as transformações históricas da pintura relacionando seu princípio de representação à constituição das

epistémês.

Para Foucault, o discurso não seria o único objeto a ser investigado em uma cultura. É, por isso, importante lembrar que Foucault escreveu sobre Erwin Panofsky.67 Panofsky teria

demonstrado, com seu método iconológico, as relações, dentro da história da arte, entre o visível e o dizível, ou seja, ainda que Panofsky considerasse a visão, ou o universo plástico autônomo, ela estaria atrelada à complexas relações com o dizível. Outra contribuição de Panofsky, no início do século XX, refere-se à própria palavra representação. Para a teoria da arte ela passou a designar uma função representativa, não mais restringindo-se à simples ideia da representação de um objeto

na tela.

Lembremos também de O Nascimento da clínica, onde Foucault nos mostra de que maneira, na segunda metade do século XVII, as transformações da ciência médica passaram de um modelo semiótico próximo da filosofia da linguagem de Condillac – no qual os sintomas são vistos como 65

A noção de “estética da existência”, tão importante para a compreensão da dimensão ética da obra de Foucault, será posteriormente destacada no próximo capíttulo (1.4).

66 MOTTA, M. B. da, “Apresentação”, in FOUCAULT, M., Estética: literatura e pintura, música e cinema, Coleção “Ditos e Escritos”, vol III, p. XXVI.

(25)

signos que revelam a doença (e onde o visível é visível sob a condição de ser enunciado) – a um modelo, no qual, a continuidade entre o olhar e a palavra é rompida, onde a relação dos dois elementos não revela coincidência absoluta, pois a observação médica ainda não apresentava total relação com a linguagem.

Lembremos igualmente de As palavras e as coisas quando Foucault descreve o término da ideia de representação da epistémê clássica, dos séculos XVII e XVIII, com o advento do sujeito moderno; todas as funções da representação são fundidas em um olhar soberano.

Logo, relacionando o papel da visão na analítica foucaultina com seus escritos sobre a pintura, seria possível inferirmos que, para Foucault, muitas vezes, a obra de arte tende a se conformar a certos modelos instituídos por ela mesma, mas exposta à constante afiliação de outros discursos.68

Em um segundo momento, é plausível destacar que a preferência declarada de Foucault por escrever sobre artistas que eram explicitamente militantes, como Paul Rebeyrolle, ou Gérard Fromanger, demonstraria a ligação entre a arqueologia, o método genealógico – com o dimensionamento do poder e suas tecnologias disciplinares – e a construção de uma estética da imagem.

Os sistemas representacionais investigados por Foucault, entretanto, não colocariam a análise de sua apropriação por aqueles que exerceriam o poder, não colocariam a análise do poder pela propaganda, nem a decifração de mensagens ideológicas. Devemos distinguir Foucault de críticos de influência marxista,69 pois ele jamais tratou de interpretar o conteúdo implícito de uma

obra, mas tratou de avaliar o que ela assina por sua significação; o que ela produz e não exatamente o que ela diz.

Finalmente, em um terceiro momento, seria possível deduzir uma estética foucaultiana a partir de seus escritos sobre a pintura. Afirmando a pintura como uma “estratégia narrativa”, por um lado, Stefano Catucci, destacaria a pintura também como um componente da “ontologia do presente” de Michel Foucault:

(...) reconhecemos, no procedimento filosófico de Foucault, a trama de um

“pensamento pictórico’’ cuja articulação se estrutura sobre dois níveis: um

concernente à estratégia narrativa de seus escritos, o outro com a

importância de uma estética da imagem em sua concepção de uma

68

FOUCAULT, M., “Qu’est-ce qu’un auteur?” (1969), in Dits et écrits I: 1954-1975, Paris, Gallimard, 2001. Trad. de Inês Autran Dourado Barbosa. “O que é um autor?”, in Estética: literatura e pintura, música e cinema, Coleção “Ditos & Escritos”, vol. III. Org. e seleção de textos de Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2006. 69

(26)

ontologia do presente.70

Ora, se a noção de “pensamento pictórico” sublinha a pintura como elemento de uma

estética da imagem inserida na ontologia do presente – o projeto geral foucaultiano de questionamento do estatuto do sujeito e da ordem do discurso dentro da história – talvez ela possa instaurar um outro modo de interpelar a obra de Foucault. Obra que não teria sido sistematica e exclusivamente formulada sobre a compreensão dos fenômenos artísticos, mas que, a partir das

relações entre o dizível e o visível – “relações que podem ser de entrecruzamento, tradução, isomorfismo, transformação (...)” – articulou uma reflexão radical sobre a historicidade da verdade:71 pois “(...) Ver e falar, dizível e visível, visibilidade e legibilidade, conteúdo e

expressão”,72 são, segundo Deleuze, as duplas formas que constituiriam o pensamento de Foucault.

Como na História da loucura, na qual Foucault procurou falar de uma experiência que não pertencia à ordem da linguagem, ao jogo do sentido e do significado. No primeiro capítulo de A História da loucura - Stultifera Navis – por exemplo, Foucault faz referência a pintores, como Hieronymus Bosch (1450-1516), Thierry Bouts (1410/1420-1475), Albrecht Dürer (1471-1528) e Peter Brueghel (1525-1568), para demonstrar, na renascença, a loucura como uma “experiência trágica”. E no capítulo sete – O Círculo Antropológico – Foucault estende-se na análise de Francesco Goya (1746-1828),73 que contra Freud e contra a tradição psiquiátrica, fala de uma

loucura “outra”. Loucura que, não somente se insinua no “interstício” da obra como fantasia, mas que se revela, posteriormente, também em Antonin Artaud (1896-1948) e Vincent Van Gogh (1853-1890), no final do século XIX, como delírio e estranhamento do mundo. Oposta à verdade da razão, ela somente podia se manifestar como “ausência de obra”, liberando-se pela linguagem e por imagens.

Ora, a história da loucura na idade clássica corresponde ao ensejo de identificar a diferença que desde a renascença até a modernidade limita a cultura por uma exclusão; a história do outro: “daquilo que, para uma cultura é ao mesmo tempo interior e estranho”.74 Conforme Rajchman,75

mesmo durante os anos sessenta – no denominado período arqueológico de Foucault –, a literatura e

70 (...) on se reconnaîtra, dans la démarche philosophique de Foucault, la trame d'une ''pensée picturale'' dont

l'articulation est structureé sur deux niveaux: l'un concernant la stratégie narrative de ses écrits, l'autre l'importance d'une esthéthique de l'image dans sa conception d'une ontologie du présent. Cf. CATUCCI, S., "La pensée picturale", in ARTIÈRES, P., Michel Foucault: la littérature et les arts, p. 130. Tradução nossa.

71

MOTTA, M. B. da, “Apresentação”, in FOUCAULT, Michel, Estética: literatura e pintura, música e cinema,

Coleção “Ditos e Escritos”, vol. III, p. XXVI.

72 MACHADO, R., Deleuze, a arte e a filosofia, Rio de Janeiro, Graal, 1990, p. 183. 73

Os Caprichos e As Pinturas Negras, realizadas por Goya, entre 1820 e 1823, para Foucault, ironizam a ordem do discurso.

74 FOUCAULT, M., As palavras e as coisas, p. 14. 75

(27)

as imagens não somente implicariam na produção de discurso e na constituição do sujeito, como também articulavam a “experiência do fora”.76

A noção de “fora” (“dehors”) é proposta pela primeira vez por Foucault, em 1966, no texto “La pensée du dehors” (“O pensamento do fora”). Texto que, publicado no mesmo ano em que As palavras e as coisas, relaciona a questão da dissolução do homem com o nascimento das ciências humanas na modernidade, apesar de parecer distante da problematização arqueológica do discurso. Nele, Foucault examina a obra de Maurice Blanchot, demonstrando que a linguagem, para além da

epistemologia, da história e da literatura, através da experiência da escritura, expressa e abre um espaço de liberação para o homem. Inicialmente, para Foucault em seus textos sobre a literatura, certos gestos artísticos se colocariam em um “fora” absoluto, em uma exterioridade radical, na medida em que o sujeito que pensa se dissolve em um sujeito que fala numa linguagem infinita, uma linguagem que escapa à ordem do discurso, às regras da representação, ou seja, a linguagem literária se desenvolveria, a partir dela mesma, criando um espaço próprio.

Posteriormente, contudo, os gestos artísticos se colocarão, para Foucault, entre o dentro e o fora; em uma “dobra” (“pli”) – que é tanto um fora do dentro, como um dentro do fora – delimitando-se, entre a subjetividade, os dispositivos de poder e uma economia de saberes.77 A

“dobra” colocaria um “não lugar” – entre a resistência e a dominação dos dispositivos disciplinares, entre a interioridade do sujeito e a objetivação – em um interstício constituído na própria ordem do discurso, pois à medida em que descrevia arqueologicamente os discursos, Foucault verificava a impossibilidade de se configurar um “fora”. O “fora” não poderia se constituir como pura exterioridade, pois somente poderia haver resistência na “dobra”. Na década seguinte, desse modo, segundo alguns críticos, Foucault intensificaria seus estudos sobre a sexualidade e a política, arrefecendo seu interesse pela literatura.78

Assim, se, nos anos sessenta, a noção de “fora” conduzia ao desaparecimento do sujeito, à dispersão da linguagem, à anulação do eu do discurso, porque ela não era ficcional e nem reflexiva, com a noção de dispositivo, na década de setenta, a pintura passa a ser considerada por Foucault, também como uma forma de resistência. A pintura, desse modo, conduziu a curiosidade de Foucault

76

Cf. FOUCAULT, M., “La pensée du dehors” (1966), in Dits et écrits I: 1954-1975. Trad. de Inês Autran Dourado Barbosa. “O Pensamento do Exterior”, in Estética: literatura e pintura, música e cinema, Coleção “Ditos & Escritos”, vol. III.

77

Foi Deleuze quem denominou essa solução de Foucault, para o impasse da noção de “fora”, como “dobra” (“pli”).

Cf. DELEUZE, G., Foucault, Trad. de Pedro Elói Duarte. Lisboa, Edições 70, 2005.

78 Ainda sim, conforme Philippe Artières, na década de 70, Foucault participaria da edição de textos de Pierre Rivière e Hérculine Barbin Textos que não podem ser estritamente considerados como escritos literários, mas que certamente podem ser relacionados às preocupações políticas de Foucault. Suas preocupações iniciais acerca da morte e do impensável na reflexão sobre a finitude do homem, foram preservadas com outra nomenclatura, o tema do “fora”. Cf.

(28)

pelo engajamento político coletivo e à concretude da história.

Foucault, dessa forma, não possuiria apenas um interesse estético sobre as obras que analisou, mas um interesse ativado pela vontade de realizar uma crítica e, sobretudo, uma intervenção sobre a realidade, na medida em que a arte pode se colocar como recusa contra variadas formas de dominação.

A imagem material seria assim, ao olhar do pensamento filosófico, um fora

que se deixa interiorizar como outro, também totalmente irredutível ao

espaço filosófico quanto à exterioridade pura e simples (...).79

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