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2.2 – Os dispositivos visuais.

O aparecimento da noção de dispositivo na obra de Michel Foucault é aparentemente derivado da influência de Gilles Deleuze. No prefácio de O Anti-Édipo,210 Introdução à vida não-

fascista, de 1977, Foucault fala sobre “multiplicidades”, “fluxos”, “dispositivos” e “ramificações”.

Contudo, a investigação foucaultiana dos planos discursivos obedece, no inicio dos anos 70, à articulação entre a arqueologia e a investigação genealógica. Foucault sobrepõe à noção de discurso a noção de dispositivo com o intuito de articular à descrição dos regimes de discursividade a análise das práticas e estratégias não-discursivas que condicionam seu aparecimento (e também as resistências que suscitam).

Os dispositivos, inicialmente compreendidos por Foucault como operadores materiais de poder, são tanto práticas, como discursos, tanto táticas, como instituições. Os dispositivos são também “disposições arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não-dito (...)”.211 Desse modo, Foucault investiga a natureza e a função estratégica de “dispositivos

disciplinares”, “dispositivos de sexualidade”, “dispositivos de poder”.

Ademais, a noção de dispositivo não exclui a noção de epistémê, mas a expande. Em diversas obras,212 Foucault relacionou “discursividades e evidências”213 na identificação de estratos,

de formações históricas. As práticas de representação e os discursos constituiriam experiências, seja por suas enunciações, seja por suas figurações. Formulariam diferentes regimes de fazer ver e falar, de enunciação e de visibilidade. Em História da Loucura e também em As palavras e as coisas, por exemplo, Foucault recorreu à análise de imagens, mas essas imagens foram postas como resultados,

209 “instaurateurs de discursivité”, Cf. FOUCAULT, M., “Qu’est-ce qu’un auteur?” (1969), in Dits et écrits I: 1954-

1975, Paris, Gallimard, 2001, p. 833. Trad. de Inês Autran Dourado Barbosa. “O que é um autor?”, in Estética: literatura e pintura, música e cinema, Coleção “Ditos & Escritos”, vol. III, p. 281.

210 FOUCAULT, M., “Préface, in Deleuze (G.) et Guattari (F.), Anti-OEdipus: Capitalism and Schizophrenia” (1977), in

Dits et écrits II: 1976-1988, p. 133.

211 FOUCAULT, M., Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1999, p. 244.

212 Obras como História da Loucura, Raymond Roussel, O Nascimento da clínica, As palavras e as coisas, Arqueologia

do saber e Vigiar e punir.

o que difere de pensá-las na sua produção – o que o conceito de dispositivo permite. A epistémê possuía um caráter discursivo e a imagem era lida como sua expressão. A arqueologia que operava suas análises através da noção de epistémê se encerrava na ordem do discurso, mas, com a introdução da análise do poder, a análise do saber passa a ser genealógica e a considerar as relações de poder.

Deleuze concebe que Foucault, com a noção de dispositivo, teria sobretudo superado o dualismo entre discursivo e não-discursivo. Assim, apesar de Foucault não utilizar o termo “dispositivo” em seu texto sobre Fromanger, é clara sua perspectiva de que a pintura se configura não somente como uma prática não-discursiva, mas fundamentalmente como um dispositivo. Em A

pintura fotogênica, por exemplo, Foucault operaria uma análise genealógica do nascimento da

fotografia e de suas estreitas relações com a pintura. Foucault avaliaria a pintura em suas relações com as técnicas, com a tradição (ou práticas) e também com a reflexão acerca do estatuto da arte. Ademais, seu texto sobre Fromanger é contemporâneo da publicação de Vigiar e punir (no qual trabalha a noção de dispositivo e vigilância).

Foucault, além disso, não avaliaria a obra de Fromanger somente como resultado de uma subjetividade, ou de um gênio artístico. A pintura foi analisada por Foucault não em sua estrutura, ou como sentido produzido por um sujeito, mas tomando em consideração as condições de sua existência material.

As imagens de Fromanger seriam dispositivos, porém dispositivos que introduziriam a possibilidade de um espaço de liberdade, de heterotopias. Elas criariam outros lugares, utopias que poderiam se realizar. As pinturas de Fromanger misturaram-se com fotos das ruas de Paris, com imagens veiculadas pela imprensa internacional do motim da prisão de Toul214 e também com

instantâneos de viagens.

Segundo Joseph Tanke,215 para Foucault, Fromanger se distingue do foto-realismo de alguns

de seus contemporâneos americanos, como o fotógrafo Richard Estes (1932) e o pintor Robert Cottingham (1935), por seu método. As estratégias artísticas de Fromanger criam um “curto- circuito”, uma liberação.216

Assim, se as pinturas de Fromanger, para Foucault, seriam dispositivos que liberam

214 A revolta da penitenciária de Toul, no leste da França, integra uma série de levantes que aconteceram em diversas

penitenciárias francesas (Nancy, Nimes, Melun, Fresnes, Toulouse, Loos-les-Lille) entre o inverno de 1971 e 1972. Greves, motins e sítios em mais de trinta estabelecimentos motivaram a reforma penitenciária que aconteceu nos anos seguintes. Foucault não se surpreendeu com a eclosão do movimento, pois participava ativamente do GIP desde fevereiro de 1971. O GIP aventava a possibilidade de conflitos devido à intensa violência a que estavam submetidos os presos.

215 TANKE, J. J., Foucault’s Philosophy of Art: a geneaology of modernity, New York, Continuum Publishing, 2009. p.

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acontecimentos, no texto La peinture photogénique, Foucault demonstraria também a própria operação de constituição de um acontecimento.

Se na historiografia tradicional o acontecimento é comumente descrito como um fato, Foucault compreende que a irrupção de um acontecimento manifesta uma diferença. Foucault, por isso, afirma a necessidade de uma reflexão e crítica sobre esses acontecimentos – esse processo ele denomina “acontecimentalização”. Em um sentido ontológico, ou histórico, com a identificação dos discursos que comportam as regularidades e o novo em nosso presente e em um sentido genealógico, com a identificação dos poderes que assujeitam e controlam os homens.

Logo, se na análise arqueológica o acontecimento é compreendido como discurso e em seus efeitos, na análise genealógica o acontecimento é compreendido como prática e em seus processos de transformação, também como um dispositivo. O acontecimento envolveria uma rede de discursos, de poderes, de estratégias e de práticas.

Ademais, o acontecimento possuiria uma dupla dimensão; por um lado, ele instauraria o mesmo, mas por outro lado, ele se apresentaria como uma novidade histórica. Nas palavras de Deleuze, o acontecimento, como um dispositivo, comportaria um “devir”, um futuro por se fazer.217

Portanto, o acontecimento seria tanto uma continuidade, como também uma ruptura. Ele comportaria tanto a obediência, como também a resistência. O acontecimento seria uma singularidade histórica não necessária, presente na atualidade, muitas vezes, sem ser percebido.

Assim, se tanto a arqueologia, como a genealogia, contam com a participação estratégica e exemplar dos estudos de Foucault sobre a pintura, a noção de “dispositivo visual”, ao articular ambas as dimensões da analítica foucaultiana, permite a relação da pintura também com o problema das resistências suscitadas pelo poder. Este problema também se apresenta (indiretamente) no capítulo que trata do texto “A pintura de Manet”, pois para Foucault, a pintura de Manet introduziu novas visibilidades, novas evidências, ao romper com o olhar soberano da representação clássica. Manet, desse modo, constituiu-se, através de sua obra, como o primeiro pintor moderno, segundo Foucault.

Se, com a arqueologia, Foucault identificou que “cada formação histórica implica uma repartição do visível e do enunciável que se faz sobre ela”218 – delimitando a possibilidade de

217 Devemos separar em todo dispositivo as linhas do passado recente e as linhas do futuro próximo; a parte do

arquivo e a do atual, a parte da história e a do devir, a parte da analítica e a do diagnóstico. Se Foucault é um grande filósofo é por que se serviu da história em proveito de outra coisa: como Nietzsche dizia, “agir contra o tempo, e assim, sobre o tempo, em favor, espero-o, de um tempo futuro”. Porque o que surge como atual, ou o novo, em Foucault, é o que Nietzsche chamava o intempestivo, o inatual, esse devir que bifurca história, um diagnóstico que faz prosseguir a análise por outros caminhos. Não é predizer, mas estar atento ao desconhecido que bate à porta ., Cf. DELEUZE, G., “O que é um dispositivo?”, in O mistério de Ariana. Trad de Edmundo Cordeiro, Lisboa, Vega, 1996. www.prppg.ufes.br/.../Deleuze%20-%20O%20que%20é%20um%20dispositivo.pdf

investigação de formações discursivas e des formações não discursivas – com a genealogia, ao fundamentar-se sobre a noção de dispositivo, Foucault radicalizou sua crítica do saber. Para ele, nesse momento, interessava destacar de que maneira, ao longo da história, os dispositivos produtores de imagens desenvolveram diferentes estratégias, funções e efeitos.

Assim, Foucault não concebeu uma visualidade pura, neutra, desligada dos dispositivos. Em sua pesquisa genealógica acerca da estética e da história da arte, Foucault compreendeu que com a “descrição plástica” e a “leitura temática”219 de obras da pintura em sua construção espacial e

iluminação, não se deve buscar explicitar a experiência perceptiva e as qualidades sensíveis da imagem, mas o poder-saber que as constituem como dispositivos. São eles, ainda que pontuados por movimentos de resistência, que modelariam o olhar e o pensamento dos sujeitos.