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1.3 – Modernidade e estética da existência.

Podemos identificar diferentes acepções para o termo modernidade: em um primeiro momento, sob a perspectiva filosófica, podemos delimitar a modernidade através da afirmação do racionalismo cartesiano no século XVII, ou no século XVIII, com a demarcação da analítica de Immanuel Kant. Em um segundo momento, sob a perspectiva histórica, podemos tomar a modernidade como uma nova situação político-cultural que se instaura com a Revolução Francesa. Ademais, também podemos tomar a modernidade como termo da crítica e teoria da arte, ou seja,

152 La “pensée” ainsi entendue n’est donc pas à rechercher seulement dans des formulations théoriques, comme celles

de la philosophie ou de la science; elle peut et doit être analysée dans toutes les manières de dire,de faire, de se conduire où l’individu se manifeste et agit comme sujet de connaissance, comme sujet éthique ou juridique, comme sujet conscient de soi et des autres. En ce sens, la pensée est considérée comme la forme même de l’action, comme l’action em tant qu’elle implique le jeu du vrai et du faux, l’aceptation ou le refus de la règle, le rapport à soi-même et aux autres. Cf. FOUCAULT, M., “Préface à l’Histoire de la sexualité” (1984), in Dits et écrits II: 1976-1988, p. 1398.

153 Por outro lado, em algumas entrevistas, Foucault comenta o perigo da banalização de certos temas pelo cinema,

como alguns filmes que representaram a atuação da resistência francesa, durante a segunda guerra mundial, heroificando a ação de homens como Charles de Gaulle. Para Foucault o cinema deve representar a história das lutas e não reconciliar, pacificar essa história. Cf. FOUCAULT, M., “Anti-retro” (1974), in Dits et écrits II: 1954-1975. Trad. de Inês Autran Dourado Barbosa. “Anti-retro”, in Estética: literatura e pintura, música e cinema, Coleção “Ditos & Escritos”, vol. III.

154 O texto “Pierre Boulez, l'écran traversé”, de Foucault, investiga o trabalho de Boulez que, em sua pesquisa sobre a

tradição, além de outras expressões artísticas, pretendeu formular uma nova concepção musical. Em outro momento, em uma conversa com Boulez, em 1983, Foucault afirma a indissociabilidade entre a música e outras expressões artísticas em seu desenvolvimento formal e elabora uma reflexão crítica acerca do “isolamento cultural” que condiciona a produção musical na contemporaneidade. Cf. FOUCAULT, M., “Pierre Boulez, l'écran traversé” e “Michel Foucault/Pierre Boulez. Le musique contemporaine et le publique”, in Dits et écrits II: 1976-1988.

podemos definir a modernidade como movimento cultural-artístico, situado entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX.155

Podemos também identificar outras acepções para o termo modernidade na própria obra de Michel Foucault: segundo sua arqueologia, modernidade como epistémê, situada nos séculos XIX e XX, em contraponto com a epistémê clássica, situada nos séculos XVII e XVIII – e avaliada em obras como História da Loucura, O Nascimento da clínica, As palavras e as coisas e Vigiar e

punir. E em A Hermenêutica do Sujeito, modernidade que se inicia com a admissão de que para o

sujeito acessar a verdade é necessário apenas o conhecimento.156 Por fim, modernidade como um

posicionamento; a filosofia é tomada como crítica e como trabalho sobre o presente histórico, a filosofia é tomada como uma atitude de modernidade, ou seja, a filosofia não é definida como uma noção, mas como uma questão.

Tomaremos, entre tantas perspectivas, a última acepção acima referida para o termo modernidade. Em “Qu'est-que ce les Lumières?” (“O que é o Iluminismo?”),157 Foucault, refletindo

sobre o texto de mesmo nome de Kant,158 concebe a modernidade distintamente do modo usual da

historiografia. Foucault observa a modernidade como uma postura, o que difere de observá-la como um período. A modernidade não seria resultado da Aufklärung, ou um fracasso, um desvio dos valores do século XVIII. A modernidade seria o efeito de uma novo posicionamento dos homens perante o mundo e sua atualidade.

Desse modo, para Foucault, o texto de Kant, apesar de ser considerado pela tradição filosófica como um texto menor, colocaria discretamente uma questão à qual a filosofia moderna não conseguiu responder e da qual também não conseguiu se desembaraçar. Uma questão com a qual há dois séculos, sob formas diferentes, a filosofia confrontou-se: o que é o Iluminismo? Ou o que é a filosofia moderna? Ou o que determina o que nós somos, o que nós pensamos e o que fazemos hoje? Kant, enfatiza Foucault, é o primeiro filósofo a colocar o presente histórico como um problema a ser elaborado pelo pensamento.

Assim, retomando a noção kantiana de Iluminismo, não para dissertar sobre suas influências epistemológicas, mas especificamente para avaliar a interrogação filosófica que problematiza nossa relação com nossa atualidade, Foucault considerou a si mesmo como um pensador sob o signo da

155 CASTRO, E., Vocabulário de Foucault. Tradução de Ingrid Müller Xavier, Autêntica, Belo Horizonte, 2004, pp.

301-303.

156 A filosofia moderna teria se iniciado pelo posicionamento de um sujeito que alcança a verdade como sujeito do

conhecimento. Foucault denomina essa ocasião como “momento cartesiano”.

157

FOUCAULT, M., “Qu'est-que ce les Lumières?” (1984), in Dits et écrits II: 1976-1988, p. 1381. Trad. de Elisa Monteiro. “O que São as Luzes?”, in Arqueologia das ciências e história dos Sistemas de Pensamento, Coleção “Ditos & Escritos”, vol. II. Org. e seleção de textos de Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2000, p. 340.

modernidade, alinhando-se também a Max Weber, Nietzsche e aos pensadores da escola de Frankfurt. E, ao sublinhar a “reativação permanente'' de um “êthos filosófico”, como crítica do modo de ser histórico e de nossa constituição como sujeitos autônomos, Foucault formula, por isso, não uma teoria, ou uma doutrina, ou mesmo um corpo acabado de saber que se acumula, mas um “um trabalho paciente que dá forma à impaciência da liberdade”.159

Logo, esse trabalho, como atitude voluntária, postula a ruptura com a tradição e uma tomada de consciência sobre a fugacidade dos acontecimentos. Ato de vontade que Charles Baudelaire - aludido por Foucault neste texto – define como heroificação do presente. Essa heroificação baudelariana é irônica, pois ela não sacraliza o momento, na tentativa de mantê-lo ou perpetuá-lo. Contudo, também não se trata de reconhecer o presente apenas como curioso e interessante – isso apenas configuraria a atitude do homem de “flânerie”, uma atitude simplificadamente de fuga, de veleidade. Baudelaire destaca o efêmero – o fugaz, o passageiro, a circulação – o movimento incessante - e a destruição – as mudanças profundas que ocorrem em sua época com a modernização e que possuem um sentido trágico, ultrapassando a banalidade da vida cotidiana.

Foucault definiu Baudelaire como uma das consciências mais argutas do século XIX. E, comentando sobre sua relação com alguns de seus contemporâneos, Foucault delimita, sobretudo, o posicionamento de Baudelaire sobre seu presente histórico a partir de suas observações acerca da pintura. Baudelaire afirma, por exemplo, que o pintor moderno não é aquele que veste seus personagens com roupas escuras para se mostrar atualizado, mas aquele que recorre às vestes negras para mostrar a obsessão de seu tempo com a morte. É no texto Le peintre de la vie moderne (O pintor da vida moderna), tomado por Foucault como referência, que Baudelaire descreve o que caracterizaria esse homem da modernidade:160

Ele vai, corre, procura. Seguramente, esse homem, esse solitário dotado de uma imaginação ativa, sempre viajando através do grande deserto de homens, tem um objetivo mais elevado do que o daquele que flana, um objetivo mais geral, diferente do prazer fugidio da circunstância. Ele busca

essa alguma coisa que nos permitirá chamar de modernidade.161

159

un labeur patient qui donne forme à l’impatience de la liberte. Cf. FOUCAULT, M., op. cit., p. 1397; op. cit., p. 351

160 Diferentemente de Foucault, contudo, Baudelaire, define o aquarelista Constantin Guys (1802-1892) como o pintor

da modernidade - apesar de contemporâneo de Manet e seu amigo próximo.

161

Il va, il court, il cherche. À coup sûr, cet homme, ce solitaire doué d'une imagination active, toujours voyageant à travers le grand désert d'hommes, a un but plus élevé que celui d'un pur flâneur, un but plus général, autre que le plaisir fugitif de la circonstance. Il cherche ce quelque chose qu'on nous permettra d'appeler la modernité. Cf. BAUDELAIRE, C., Le Peintre de la vie moderne, in OEuvres complètes, t. II, Paris, Gallimard, coll. "Bibliothèque de la Pléiade", 1976, 693-694. Citado por FOUCAULT, M., op. cit., pp. 1388-1389; op. cit., p. 343.

Esse pintor, esse homem da modernidade desprende uma atenção especial ao real. Atenção que não é superficial, pois ele pode intervir, transformar sua vida:

A modernidade baudelariana é um exercício em que a extrema atenção para com o real é confrontada com a prática de uma liberdade que,

simultaneamente, respeita esse real e o viola.162

Esta prática, admite Foucault, envolve um “ascetismo indispensável”,163 uma relação que o

sujeito não estabelece somente com a atualidade, mas também consigo mesmo – comportamento que na época de Baudelaire era chamado de “dandismo”. Essa elegância sobre si mesmo exigia uma atenção do sujeito sobre seu corpo, seus sentimentos e suas paixões. Fazer da própria vida uma “obra de arte”, não implicava na descoberta de uma essência escondida do sujeito, mas na invenção do sujeito de si mesmo.

Foucault, contudo, assinala que sua concepção da filosofia como atitude de modernidade diferencia-se da concepção baudelariana, pois para Baudelaire o trabalho ético somente poderia se produzir no lugar da arte. Para Foucault, no entanto, esse êthos não é meramente subjetivo, ele acontece sempre em relação também à sociedade e ao político.

Logo, a crítica foucaultiana não acontece em um plano formal, mas a partir da própria história. Ela é, fundamentalmente, portanto, uma ontologia que se perfaz como arqueologia na medida em que investiga o conhecimento e a moralidade. E é também, entretanto, uma genealogia, na medida em que investiga o que condiciona e o que assujeita os homens.

Foucault toma a estética da existência como um problema a ser refletido sobre a obediência dos códigos de conduta. Para Foucault, impõe-se a necessidade de inquerir sobre práticas164 que

permitam ao sujeito manter uma relação consigo mesmo e com os outros, a partir de sua atualidade. Assim, a filosofia como conhecimento dos limites do que se pode conhecer, fazer e esperar – não como uma analítica da verdade, mas como crítica de um êthos moderno – lança a pergunta fundamental: o que estamos fazendo de nós mesmos? “Tomar a si mesmo como um objeto de elaboração” não encerra a relação do sujeito somente para consigo mesmo, pois governar a si mesmo implica sempre em uma relação com os outros.

A estética da existência, desse modo, é um tema que – apesar de remontar aos primeiros

162 La modernité baudelairienne est un exercise où l'extrême attention au réel est confrontée à la pratique d'une liberté

qui tout à la fois respecte ce réel et le violé. Cf. FOUCAULT, M., op. cit., p. 1389; op. cit., p. 344

163 Ibid.

164 Não trataremos, contudo, da noção de “cuidado de si” – a epimelia heautou – que em consonância com a noção de

“conhecimento de si” – o gnôthi seauton – delimitaram ao sujeito esse conjunto de práticas e técnicas de auto- constituição.

textos literários de Foucault sobre Raymond Roussel e Brisset, além de seus estudos acerca de uma história da sexualidade – em seus cursos sobre a pahrrêsia é retomado em um contexto político.165

Com Charles Baudelaire, Foucault aprofunda sua reflexão e sua noção de modernidade ganha um novo sentido, pois contrapondo Baudelaire com o texto de Immanuel Kant sobre as luzes, Foucault redimensiona seu projeto filosófico de uma ontologia do presente: Kant define o questionamento da dimensão do contigente e da possibilidade da liberdade como crítica, mas Charles Baudelaire define uma estilística, a tomada da vida como obra de arte. Assim, vinculando a história, a filosofia e a atualidade, por um tempo não linear, Foucault afirma que o artista moderno e o filósofo compartilham da mesma tarefa: elaborar a tradição a partir do presente. A “estética da existência”, por isso, seria a busca ética de uma subjetividade livre de assujeitamento; de uma resistência através da invenção de si mesmo.

O projeto filosófico de Foucault propõe, dessa maneira, através da ideia de estética da existência, a insubmissão aos limites da tradição. Projeto que não foi diferente do projeto artístico de Baudelaire, pois tanto o filósofo, como o artista, tomaram seu tempo histórico como problema. Desse modo, não por acaso, ambos foram também jornalistas da cultura e críticos de arte.166

Assim, o texto “O que é o Iluminismo?” apresenta o projeto foucaultiano de uma ontologia do presente sob a perspectiva de uma filosofia tomada como atividade crítica – de uma filosofia como projeto de modernidade – todavia, sem desconsiderar a importância da arte ou da pintura para a realização dessa invenção.

165 Foucault se interesa pela ética da antiguidade grega por sua não vinculação, ou mera obediência, à um código de

regras, ou seja, pela possibilidade da ontologia da modernidade ganhar uma nova caracterização; ser moderno é aceitar sua relação com o presente e consigo mesmo, “tomar a si mesmo como objeto de uma elaboração complexa e dura” (“prendre soi-même comme object d’une élaboration complexe et dure”), Cf. FOUCAULT, M., “Qu'est-que ce les Lumières?” (1984), op. cit., p. 1389 e “O que é a Ilustração?”, op. cit, p. 344.

166

Baudelaire, contudo, diferentemente de Foucault, considerou Constantin Guys (1802-1892) o pintor moderno por excelência.