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Por “transição” compreende-se aquele intervalo entre um regime político e outro; ou seja, o lapso de tempo que decorre entre a liquidação de um regime autoritário e a institucionalização de um outro regime. Entendida a transição nesses termos, segue-se que um desfecho democrático passa a ser uma entre diferentes hipóteses de desfecho para esses processos (MARTINS, 1989). É uma característica da transição o fato de que durante o tempo de seu transcurso as regras do jogo político não estão definidas. Estas regras encontram-se não apenas em constante modificação, como também estão sujeitas as árduas contestações: os atores sociais lutam não somente para satisfazerem os seus interesses imediatos e/ou os interesses daqueles que representam, mas, também, pela definição de regras e procedimentos, cuja configuração determinará prováveis vencedores e perdedores no futuro.

Segundo Guilherme O´Donnell (1988a), se a hipótese para o desfecho da transição com a qual se trabalha é a de um desfecho democrático, como parte de um processo de “construção democrática”, as questões centrais do processo político – as que vão de fato constituir a problemática da transição – se ampliam. Elas não consistem apenas em: [1] restabelecer direitos e institutos jurídicos abolidos ou deturpados durante o regime autoritário; [2] definir um novo quadro institucional e novas regras democráticas para o jogo político; [3] impedir, nesse meio tempo, o regresso ao autoritarismo; [4] promover as mudanças e as reformas para além das relativas à instauração de um “estado de direito”, que assegurem, no imediato, as condições de governabilidade durante a transição e, em médio prazo, criem condições sociais

e econômicas mínimas de estabilidade para tornar viável o processo de construção democrática.

Para que melhor se entenda a natureza do processo de transição no Brasil, é fundamental ter presente que a sociedade brasileira é marcada por profundas desigualdades sociais que se agravaram com a crise do Estado desenvolvimentista, a desregulamentação da economia e do desmonte do Estado Previdência que já era considerado deficiente. Esse quadro de crise social agravou-se com o esgotamento do modelo autoritário-desenvolvimentista, a partir da crise econômica e da recessão no início dos anos 1980, no qual foram deterioradas as condições de vida da maioria da população brasileira, o que contribuiu para acelerar o fim do regime militar.

Com o fim da ditadura militar e com a Nova República, aparecem, nos discursos oficiais, as promessas de minimizar as desigualdades como condição para se ter um país melhor (MENDES, 2009). A Constituição de 1988 define os princípios e as diretrizes norteadoras das ações desenvolvidas nos planos: social, político, econômico e cultural no Brasil, a partir da democratização do país. O contexto no qual a Carta Magna foi elaborada é marcado pela expectativa de grande parte da sociedade brasileira acerca dos rumos da nação e pelo anseio de liberdade e democracia após um longo período de ditadura militar.

Para Maria Célia Paoli (1992) e Marcus André B. C. Melo (1993), além dos conhecidos fatores histórico-estruturais de nossa formação social autoritária e excludente, os sucessivos fracassos dos governos de transição do regime ditatorial para o democrático e do período pós- transição, também contribuíram para a situação de agravamento da crise brasileira, em que a forma democrática e constitucional dos governos que sucederam o regime militar fracassou em aparelhar-se como instância política de credibilidade mínima para medir os conflitos mais amplos da sociedade e os interesses em jogo, como também fracassou em organizar eficaz e racionalmente o próprio funcionamento do aparato de Estado.

Maria do Carmo Campello de Souza (1988), em sua análise sobre a transição brasileira, constata que a Nova República se instalou sobre as bases institucionais do regime autoritário mais do que seus escombros, permitindo que se mantivesse grande parte da elite política e dos tecnocratas do regime anterior na condução dos rumos políticos. Conforme a análise de Campello de Souza, a Nova República enfrenta esse legado do autoritarismo; o exercício do voto passou a ser considerado um instrumento institucional de afirmação da cidadania, acarretando, no limite, uma confiança quase mística no poder das eleições diretas.

Ainda, conforme Campello de Souza, relacionado a isso nós temos um sistema partidário que se mostra como:

[...] uma mal costurada articulação de elites regionais bem distante daquele corpo de instituições que, por suas estruturas duráveis, constantemente expostas ao olhar público, servem de garantia para a moeda em que são as negociações no mercado político (SOUZA, 1988, p. 595).

No âmbito do Congresso Nacional, o sistema político configurava-se com três distintos vetores: um centro formado pela ala governista, a “aliança democrática” formada pelo Partido do Movimento Democrática Brasileira (PMDB) e pelo Partido da Frente Liberal (PFL); uma oposição à direita protagonizada pelo Partido Democrático Social (PDS, ex-Arena); e outra oposição à esquerda liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Contudo, implícito a essa divisão política, ocorria uma profunda mudança e reconfiguração do imaginário ideológico, tendo como sustentação interpretações divergentes a respeito da própria natureza do recém concluído processo de transição democrática.

De um lado, os ex-oposicionistas que agora participavam do governo compreendiam que a consumação da transição democrática pela via eleitoral fora, dentro da situação, o caminho correto e acreditavam que avanços substanciais seriam imediatamente obtidos no plano jurídico através da remoção do “entulho autoritário” e da convocação de uma Assembleia Constituinte; e que teria iniciada igualmente a reorientação da política econômica e o chamado “resgate da dívida social”.

De outro lado, a outra corrente integrada, especialmente, pela oposição de esquerda, por boa parte da intelectualidade, do clero (ligado à teologia da libertação) e dos porta-vozes da chamada “sociedade civil”, defendia a tese de que havíamos tido apenas uma mudança cosmética, uma “transição transada”; ou seja, de que a transição sem eleições diretas para a presidência fora uma manobra política da cúpula elitista e acomodatícia. A transição estava, portanto, sujeita a uma condição implícita que seria a limitação no “alcance democrático” – conceito que evidentemente combinava considerações institucionais e de equidade social – das mudanças que o país esperava (LAMOUNIER, 1994).

Conforme Carvalho (2011), a despeito do desapontamento com o fracasso da luta pelas “Diretas já” (1984) e da frustração causada pela morte trágica do presidente Tancredo Neves (eleito pelo Colégio Eleitoral, em 15 de janeiro de 1985), os brasileiros iniciaram a “Nova República” com o sentimento de terem participado de uma grande transformação nacional, de terem colaborado com a criação de um país novo.

Com a morte de Tancredo, a responsabilidade pela implantação da chamada Nova República passava para as mãos do vice-presidente José Sarney, que não possuía o mesmo respaldo político e cujas credenciais democráticas geravam desconfiança dos setores mais à esquerda, levando-se em conta a sua trajetória política e longa participação na base de sustentação parlamentar do regime militar.

Segundo Carvalho (2011), a Nova República iniciou em um clima de otimismo, embalada pelo entusiasmo das grandes demonstrações cívicas em apoio das eleições diretas e desse otimismo ter prosseguido na eleição de 1986 que elegeu novos governadores, deputados estaduais, deputados federais e senadores. Também, durante a formação da Assembleia Nacional Constituinte, a quarta da República. A Constituinte trabalhou mais de um ano na redação da nova carta constitucional, fazendo amplas consultas a especialistas e setores organizados e representativos da sociedade. A Constituição promulgada em 1988 é um longo e minucioso documento em que a garantia dos direitos do cidadão era a preocupação central.

No entanto, Carvalho (2011) chamou a atenção para o fato de que a reconquista da liberdade, a ampliação dos direitos sociais e da participação política não impediram que o fenômeno do desencanto político e de déficit de confiança dos cidadãos nas instituições democráticas emergissem associado às dificuldades dos governos democráticos, para solucionar os graves problemas sociais e econômicos do país.

Apesar desse clima de desconfiança e de desencanto político dos cidadãos nas instituições democráticas, a retomada do governo civil em 1985, se fez de modo, razoavelmente ordenado e sem retrocessos. A constituinte redigiu e aprovou, em outubro de 1988, a constituição mais liberal e democrática que o país teve, razão pela qual essa constituição foi chamada por Ulisses Guimarães de Constituição Cidadã.

Nessa época, o debate político centrou a sua agenda da política nacional na questão da democratização da vida política e da construção da cidadania. Os debates surgidos durante o processo constituinte que culminaram na Constituição de 1988, detiveram-se nos direitos de cidadania, na descentralização política e no reforço do poder local.