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Uma democracia é mais do que uma forma de governo é primordialmente um modo de vida associada, de experiência conjunta comunicada (John Dewey). É que a democracia, como qualquer sonho, não se faz com palavras descarnadas, mas com reflexão e prática (Paulo Freire).

A polissemia do conceito de democracia atrela-se às interpretações ideológicas e teóricas que atribuem sentido às experiências de socialização, assim como a projetos de sociedade. Todavia, parece que o senso comum tende a enaltecer o seu caráter polissêmico. Isto se faz fetichizando os processos democráticos, ocultando os pressupostos que informam distintas vivências que, sob a rubrica da democracia, revelam percepções e experiências divergentes acerca da interação entre instituições sociais que podemos denominar como recurso heurístico, Estado, mercado e sociedade.

A polissemia de sentido pode ser observada na sua abordagem etimológica. Na definição de Luiz Antônio Cunha (1998), democracia é uma palavra formada de dois vocábulos, de origem grega: demos, que significa povo e cracia, que significa governo. A união desses vocábulos, democracia, quer dizer: governo do povo. Essa definição de democracia nos traz um elemento fundamental, qual seja, ela obriga a pressupor um nível de

participação do povo no governo; porém, ela não define e nem qualifica o espaço e o nível dessa participação.

Tal definição de democracia trabalha outros elementos relevantes: a democracia pode ser concebida como um regime político ou como um Estado de direito. Esse conceito implica em graus variados de efetivação e vivência, na medida em que alguns regimes podem ser apenas parcialmente democráticos. Portanto, há um espaço de movimento entre democracia e o seu contrário (tirania, autocracia, oligarquia). Em decorrência disso, para que a democracia possa atingir a sua plenitude, ela precisa pressupor o exercício da soberania popular. O poder político pode ser efetivado através de três maneiras: pela escolha de representantes, aos quais se delega o poder (democracia representativa); ou diretamente, no exercício do poder sem intermediários (democracia direta); ou, ainda, mesclando as duas formas (democracia semidireta). Esse aspecto é um dos pontos de disputa e problematização entre os defensores da democracia direta, de um lado, e de outro lado, os defensores da democracia representativa.

O conceito de democracia indica um campo em disputa por diversas correntes, escolas e tradições que reivindicam legitimidade, quer no plano discursivo, quer no acadêmico, político ou social. A realização da democracia é vista mais como um devir do que como fato consumado. Isto não quer dizer que os defensores da democracia compartilham de um telos comum. Por isso, compreender a democracia como processo não implica a adesão ao pensamento utópico. Das interpretações que concebem a democracia como algo que ainda não se realizou plenamente, somente algumas podem ser classificadas como utópicas.

Destaca-se que a polissemia do conceito de democracia deve-se as (re)configurações nas relações Estado-mercado-sociedade. Em outros termos, existe democracia(s) e democracia(s). Estudá-las hoje assinala para a necessidade de se debater os temas da regulação (Estado) e da participação (sociedade civil). Também, e em idêntica importância, é imprescindível considerar o lugar do mercado no significado do Poder Público e da vida em sociedade, observando que tratamos de um tempo, designadamente, globalizado.

Boaventura de Sousa Santos compartilha da tradição da teoria crítica nas ciências humanas, reinterpretando-a como “toda a teoria que não reduz a ‘realidade’ ao que existe” (SOUSA SANTOS, 1996, p. 22). O autor propõe, através do uso do termo ‘pós- modernidade’, construir um novo modelo societário e estabelecer o conteúdo e a natureza

deste novo modelo. Esta construção dá-se mediante ao entendimento de que a globalização é algo inevitável, contudo, é necessário pensar estratégias que visem enfrentar seus efeitos perversos, a saber, a subordinação dos países do sul aos países do norte, aqueles de capitalismo avançado que atingiram o seu clímax civilizatório – atualmente em franca decadência – através de práticas de dominação e exploração daqueles que foram chamados de terceiro e quarto mundos.

Nesse sentido, destaca-se que Sousa Santos, confirmando Habermas (1994), identifica as ciências do norte como incorporadas ao sistema, destituídas de caráter inovador, imersas na engrenagem capitalista, a ciência tradicional. Por isso, o seu empenho em fazer da sua teoria crítica pós-moderna uma profunda renovação epistemológica.

Boaventura concebe o Sul como guardião da potencialidade de construção de um novo padrão civilizatório mais solidário, a sua população é o sujeito de uma transição paradigmática que expressa a radicalidade pós-moderna. O Sul é metaforicamente concebido como um campo de desafios epistêmicos, que buscam reparar os danos e impactos historicamente causados pelo capitalismo na sua relação colonial com o mundo. O colonialismo, além de todas as dominações pelas quais é conhecido, também foi uma dominação epistemológica, uma relação extremamente desigual de saber-poder que suprimiu muitas formas de saber próprias dos povos e/ou nações colonizadas.

Portanto, as epistemologias do Sul são o conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam essa supressão, valorizam os saberes que resistiram com êxito e investigam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos. A esse diálogo entre saberes denominamos de ecologia de saberes (SOUSA SANTOS, 2006).

Nas palavras de Boaventura de Sousa Santos:

Uma epistemologia do Sul assenta em três orientações: Aprender que existe o Sul;

Aprender a ir para o Sul;

Aprender a partir do Sul e com o Sul (SOUSA SANTOS, 1995, p. 508).

Para tanto, o autor sugere inovações e rupturas, abrindo mão do ‘uno’ pelo ‘múltiplo’ nas diversas esferas da existência. Em presença a uma monocultura do saber (pensamento abissal) contrapõe a ecologia de saberes (pensamento pós-abissal); diante da monocultura do

tempo linear abraça a ecologia das temporalidades; contra a monocultura da naturalização das diferenças defende a ecologia dos reconhecimentos; rechaçando a monocultura do universal e do global apoia a ecologia das trans-escalas; finalmente, no que tange o predomínio do que crer ser uma monocultura dos critérios de produtividade e eficácia capitalista corrobora a ecologia das produtividades (SOUSA SANTOS, 2005).

Amparado na sua concepção de sociologia das ausências e das sociologias das emergências, Sousa Santos percebe nas experiências concretas o que nelas está latente ou mesmo ausente e, nesse último caso, o que nasce na ausência como um obstáculo estrutural para o nascimento de práticas sociais desejáveis. Constata, por exemplo, que a ausência de um robusto, quadro teórico-analítico a partir dos países do Sul visando à superação das desigualdades sociais e econômicas, permite a presença hegemônica das ciências do Norte, claramente comprometidas na legitimação discursiva da globalização excludente, incapaz de reconhecer o alter.

Com o seu olhar poético Mario Benedetti reforça a observação de Boaventura de Sousa Santos, de que há uma hegemonia dos países e da ciência do Norte, em relação aos países e a Ciência do Sul, mas é categórico ao defender que:

O Sul também existe

Mario Benedetti

Com seu ritual de aço, suas grandes chaminés, seus lábios clandestinos, seu canto de sereia, seus céus de néon, suas vendas natalinas, seu culto de Deus Pai, e das dragonas

com suas chaves do reino, o Norte é quem ordena. Mas aqui embaixo, embaixo a fome disponível, recorre ao fruto amargo do que outros decidem enquanto o tempo passa e passam os desfiles E se fazem outras coisas que o Norte proíbe. Com sua esperança dura o Sul também existe.

Com seus predicadores, seus gases que envenenam, sua escola de Chicago, seus donos da terra, com seus trapos de luxo, e sua pobre ossamenta, suas defesas gastas, seus gastos de defesa. Com sua gesta invasora, o Norte é que ordena. Mas aqui embaixo, embaixo cada um no seu esconderijo, há homens e mulheres que sabem a que se suster aproveitando o sol e também os eclipses, afastando o inútil e usando o que serve. Com sua fé veterana, o Sul também existe. Com seu corno francês, e sua academia sueca,

seu molho americano e suas chaves inglesas

com todos seus mísseis e suas enciclopédias, suas guerras das galáxias, e sua sanha opulenta, com todos seus louros, o Norte é que ordena. Mas aqui embaixo, embaixo

perto das raízes é onde a memória

nenhuma lembrança omite e há quem ressuscita, e há quem morre de amores, e assim entre todos conseguem o que era impossível,

que todo mundo saiba que o Sul também existe.

Recorrendo a Sousa Santos pode-se perceber que o autor, na sua análise da democracia, compartilha da premissa de que, na primeira metade do século XX, a discussão girava em torno de tratar a democracia como algo desejável ou não, realizável ou não. A esta disputa dedicam-se, entre outros, autores como Max Weber, Robert Michels e Joseph Schumpeter. Apesar das conclusões, fato é que, como previu Tocqueville, a democracia tornou-se, no mundo ocidental, a forma política hegemônica, restrita, como salienta Sousa Santos, ao seu formato representativo e formal.

Após a Segunda Guerra Mundial, teve início um outro debate, quando um grupo de intelectuais, de um lado, temerosos perante as tiranias implementadas; de outro, denunciando a farsa da democracia burguesa, começam a aderir à ideologia socialista. Os primeiros, a exemplo de Barrington Moore Jr (1983), indagam sobre as condições estruturais dos fenômenos democráticos, sem colocar em risco, o modo de produção capitalista; ao contrário, o segundo grupo opõe-se à organização capitalista da produção, considerando-a como a principal responsável pela não efetividade da democracia, dentre eles, destacamos os estudos de Ellen Wood, Boaventura de Sousa Santos, juntamente a Leonardo Avritzer (2002).

Sousa Santos e Avritzer propõem uma nova questão ao afirmarem que o debate não passa mais por: “saber se um dado país está preparado para a democracia, mas antes partir da ideia de que qualquer país se prepara através da democracia” (2002, p. 41). Em outras palavras, democracia para que? Ou democracia para quem? Sousa Santos, não obstante, intenta investigar no plano factual, com as ferramentas da sociologia das ausências e das emergências, a qualidade do processo democrático em sua relação com o potencial de emancipação humana.

Se as denominadas democracias de baixa intensidade, claramente inspiradas no modelo liberal, universalizam-se, há de se discutir, no eixo Sul, as experiências inovadoras – como a experiência de Orçamento Participativo e de educação da cidade de Porto Alegre-RS, durante os governos da Administração Popular [1989-2004] – conhecidas como democracia radical. No capitalismo global, novos arranjos institucionais realçam o caráter local, ou a forma local como as demandas globais são recepcionadas, produzindo uma síntese positiva entre os fatores globais e locais.

Boaventura de Sousa Santos chama a atenção para a emergência de um novo tipo de democracia participativa e suas inovações no aumento do atendimento às demandas de segmentos sociais plurais, oxigenando a democracia representativa. O autor aposta no caráter revolucionário da ampliação dos canais de participação que superam e recriam dialeticamente as formas de regulação, onde o Estado torna-se o ‘novíssimo movimento social.’

O citado autor analisa os ‘experimentalismos democráticos’, nos países do Sul e intencionalmente ressalta suas positividades. A sua metodologia de análise pode acabar subestimando os entraves que ainda impedem o êxito dos movimentos democráticos reais; porém, em sua coerência teórica busca afirmar-se na contramão das abordagens da ciência

política contemporânea, a democracia participativa como sine qua non para uma defesa da emancipação humana.

Segundo Boaventura de Sousa Santos, a democracia participativa tem que ser participativa e expressar a pluralidade das demandas por justiça e igualdade, numa sociedade marcada pela pluralidade de identidades – a pós-modernidade – está o potencial de sua realização como instrumento de subversão da ordem capitalista. No entanto, o autor identifica, no atual modelo de democracia representativa, a acumulação capitalista, e reivindica a radicalização da democracia capaz de distribuir renda.

Para Sousa Santos, a crítica à democracia está relacionada à crítica à totalidade social, na qual a forma de governo é somente uma parte. O autor concentra seu olhar no advento da pós-modernidade, que põe em questão o poder regulatório, mesmo do estado e, assim, afasta- se da promessa socialista de cunho universalista, destacando os experimentos democráticos dos países do Sul, valorizando nas especificidades inéditas o advento de novas subjetividades e a reinvenção da participação social. Ele cita como exemplos, as experiências pós-1970, nos países do Sul, a Revolução dos Cravos em Portugal e a redemocratização no Brasil, passando pela luta contra apartheid na África do Sul, as mobilizações em torno do Orçamento Participativo, em Porto Alegre, no Brasil e das inovações institucionais no estado de Kerala, na Índia (RIBEIRO; COUTINHO; 2006).

O debate sobre o significado estrutural da democracia muda os seus termos, a medida em que uma nova questão emerge: o problema da forma da democracia e da sua variação. Essa questão recebeu a sua resposta mais influente na solução elitista proposta por Joseph Schumpeter, de acordo com a qual, o problema da construção democrática, na maioria das vezes, deveria ser derivado dos problemas enfrentados na reconstrução da democracia na Europa, do entre guerras mundiais.

Schumpeter sustenta que a democracia direta não é viável porque nem todos os indivíduos estão no mesmo estágio de desenvolvimento cultural. Existem os líderes e os seguidores; os que não estão interessados e os que são mal informados. Para ele, as metas da sociedade devem ser formuladas pelos líderes – por uma elite que seja politicamente atuante, que possa dedicar-se ao estudo dos problemas sociais relevantes e seja capaz de entendê-los.

O autor relacionou alguns pontos específicos sobre participação política e democracia. Primeiro, não existe alguma coisa como o bem comum, unicamente determinado, com o qual todas as pessoas poderiam ou seriam levadas a concordar pela força do argumento racional; o bem comum está destinado a significar coisas diferentes para pessoas diferentes (SCHUMPETER, 1942, p. 251). Segundo, mesmo se as opiniões e os desejos dos cidadãos individuais fossem dados perfeitamente definidos e independentes, com os quais o processo democrático atuaria, e se todos agissem, a partir deles, com uma exatidão ideal, isso não acarretaria, necessariamente, que as decisões políticas resultantes desse processo, com base no material bruto daquelas vontades individuais, representassem qualquer coisa que em qualquer sentido convincente pudesse ser chamado de “à vontade do povo” (SCHUMPETER, 1942, p. 254). Terceiro, os cidadãos são, normalmente, mal informados ou desinteressados pelos problemas políticos, exceto em relação àqueles que os afetam, diretamente, economicamente. Nessas situações, antes de agir no sentido do bem comum, eles agirão em prol de seus próprios interesses (CARNOY, 1988).

A concepção hegemônica de democracia é fundada a partir da resposta formulada por Schumpeter. Os principais elementos dessa concepção seriam: a contradição entre mobilização e institucionalização (HUNTINGTON, 1968); valorização positiva da apatia política (DOWNS, 1956); uma ideia bastante salientada por Schumpeter, para quem o cidadão comum não possuía capacidade e nem interesse político senão para escolher os líderes para os quais caberia tomar as decisões; a concentração do debate democrático na questão dos desenhos eleitorais das democracias (LIJPHART, 1984); o tratamento do pluralismo como forma de incorporação partidária e disputa entre as elites (DAHL, 1956, 1971); e a solução minimalista para o problema da participação pela via das escalas e da complexidade (BOBBIO, 1986; DAHL, 1991).

Todos esses elementos distinguidos como constituintes de uma concepção hegemônica da democracia não conseguem enfrentar, adequadamente, o problema da democracia, que retornou com a chamada “terceira onda de democratização”. Quanto mais se insiste na fórmula clássica de democracia de baixa intensidade, menos se consegue elucidar o paradoxo da expansão da democracia ter trazido consigo uma enorme deterioração das práticas democráticas.

A variação da prática democrática é percebida com maior interesse no debate atual rompendo com as adjetivações do período da guerra fria – democracias populares versus

democracias liberais. O processo de globalização suscita, simultaneamente e paradoxalmente, uma nova ênfase na democracia local e nas variações nas formas democráticas no interior do Estado nacional, permitindo recuperação de tradições participativas em países como o Brasil, Índia, Moçambique e a África do Sul.

Todavia, podemos apontar na direção de uma tripla crise da explicação democrática tradicional: há, primeiramente, uma crise no marco estrutural de explicação da possibilidade democrática; em segundo lugar, existe uma crise da explicação homogeneizante, sobre a forma de democracia que surgiu como resultado dos debates do período entre guerras (SCHUMPETER, 1942); e, em terceiro lugar, uma nova tendência em examinar a democracia local e a viabilidade de variação, no interior dos Estados nacionais, a partir da recuperação de tradições participativas minadas no processo de construção de identidades nacionais homogêneas (ANDERSON, 1991; SOUSA SANTOS, 2002).

A forma hegemônica de democracia, a democracia representativa elitista, propõe estender ao resto do mundo o modelo de democracia liberal-representativa vigente nas sociedades do hemisfério norte, ignorando as experiências e as discussões advindas dos países do Sul no debate sobre a democracia.

De acordo com Emir Sader (2002), um dos elementos políticos mais significativos da história contemporânea é o embate entre a generalização dos regimes de democracia liberal e, simultaneamente, a sua crise. Como se a sua máxima extensão fosse a condição da sua realização, e essa, ao mesmo tempo, de sua crise e do seu esgotamento histórico.

O Estado liberal surgiu em oposição ao Estado absolutista e aos obstáculos à livre expansão do capital. O liberalismo foi consolidado, a medida em que foi sendo constituído e expandido o processo de mercantilização capitalista, tendo a Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem a legitimá-lo.

Conforme Sader (2002), a solidariedade e mesmo as contradições entre o liberalismo político e econômico produziram muitas ambiguidades, contudo, não impediram que ambos fossem vítimas dos efeitos da crise de 1929. A partir da crise hegemônica surgiram três modelos alternativos, todos antiliberais, em distintos graus e formas, produzidos pelas consequências da crise, disputando o espaço livre deixado pelo liberalismo: o ‘socialismo soviético’, o fascismo e o Keynesianismo.

O fracasso desses modelos, ao longo das décadas seguintes, abriu o campo para que o liberalismo político e econômico ressurgissem juntos como um projeto hegemônico associado ao Estado mínimo e extensão inédita das relações mercantis sob a égide do neoliberalismo. Nas palavras de Sader (2002, p. 651), “o mundo parecia refeito à imagem e semelhança da utopia liberal”.

Nas duas últimas décadas, somam-se às tradicionais democracias da Europa ocidental, regimes da Europa oriental (substituindo as então conhecidas “democracias populares”), na América Latina (em países em que anteriormente havia ditaduras militares) e inclusive em países africanos (dos quais a África do Sul tornou-se o melhor exemplo, mas, também, se estendendo a outros países, que passaram adotar os critérios gerais da democracia liberal). O quadro, na sua globalidade, aparece como um avanço impetuoso, ao qual uns poucos países resistiram caracterizados como “antidemocráticos”, porque eram antiliberais; outros, como China, Coréia do Norte e Cuba, acusados de não democráticos devido à ausência de pluralismo no seu sentido liberal; outros, ainda, como Iraque, Irã e Líbia, por serem “fundamentalistas” (não separarem a religião da política).

O entusiasmo liberal proclamava, por exemplo, a América Latina como um continente povoado de democracias, do qual somente Cuba destoava como “um longínquo ponto vermelho no mapa convertido à democracia” (SADER, 2002, p. 652). Em referência a esse novo mapa histórico a ideologia liberal passou a ser considerada como o horizonte histórico mais avançado no mundo contemporâneo. Esse reducionismo ganhou ares de universalidade instituindo–se numa canonização consagrada e multiplicada por diversas instâncias, praticamente, sem qualquer tipo de contestação.

A naturalização da democracia liberal se fez crescentemente sob uma variante norte- americana - campanhas eleitorais ‘midiáticas’ e com financiamentos milionários, com partidos políticos cada vez menos diferenciados, substituição do espaço público pelo espaço privado. A sua ideologia (o pensamento neoliberal) identifica o cidadão com o consumidor e o processo eleitoral com o mercado, que seria, nas palavras de George Soros: “mais democrático que as eleições” (SOROS, apud SADER, 2002, p. 653). Soros ainda declara: “Os mercados votam todos os dias. Eles forçam os governos a adotar medidas certamente impopulares, mas indispensáveis. São os mercados que têm a direção do Estado” (SOROS, apud RAMONET, 1995, p. 22).

A formação da opinião pública é feita, cada vez mais, pelos meios de comunicação, que estão cada vez mais condicionados por critérios comerciais de busca de audiência e publicidade. Ao mesmo tempo é naturalizada, também, a economia capitalista de mercado como a forma por excelência de organização da economia.

Contudo, após o clima eufórico que sucedeu os acontecimentos de 1989 (a queda do