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O Brasil tem uma longa tradição de política autoritária. O Estado brasileiro historicamente consolidou o seu caráter vertical e autoritário. A predominância de um modelo de dominação oligárquico, patrimonialista e burocrático resultou em uma formação de Estado, um sistema político e uma cultura política caracterizada pelos seguintes aspectos: marginalização política e social das classes populares, ou a sua integração e cooptação através do clientelismo e do populismo; restrição da esfera pública e a sua privatização pelas elites patrimonialistas; a “artificialidade” do jogo democrático e da ideologia liberal, desencadeando uma enorme oposição entre o “país legal” e o “país real”.

Segundo Boaventura de Souza Santos e José Clóvis de Azevedo, o Estado brasileiro sempre foi considerado um poderoso e decisivo instrumento que produziu a ordem institucional necessária à afirmação dos interesses das elites econômicas; por isso, sempre

expressou e determinou suas ações orientadas pelos interesses privados em discrepância aos interesses públicos (SOUSA SANTOS, 2002; AZEVEDO, 2000a).

A classe dominante, em diferentes momentos históricos, soube criar pactos e mecanismos de dominação política e social, que se expressaram nas diversas formas de organização do aparato estatal, cujas características se alinharam à historicidade e às transformações destes segmentos sociais.

Após a independência do país, durante o período imperial e da República Velha, a elite agrária brasileira projetou-se. A classe dominante ramificou-se a partir dos anos 1930, desenvolvendo um segmento urbano configurado, numa burguesia industrial e comercial que atravessa o Estado Novo e chega ao período da “redemocratização” entre 1945 a 1964. Ao sentir-se ameaçada em seus interesses, essa burguesia apoia o golpe militar de 1964, sustenta a ditadura militar, controla o processo de transição conservadora e, com o fim do regime militar, nas últimas décadas do século XX, compõe a base de sustentação política e social do projeto neoliberal, que subordina a sociedade aos interesses do mercado (AZEVEDO, 2000a).

Uma das principais características da sociedade e da política brasileira foi o predomínio do Estado sobre a sociedade civil. O aparato estatal criou enormes obstáculos à construção da cidadania, à participação popular, ao exercício pleno dos direitos e à autonomia. Conforme Azevedo (2000a, p. 43): “Suas diferentes características nunca esconderam seu verdadeiro conteúdo. Hegemonizado pelos interesses da classe dominante, sua substância política esteve quase sempre na contramão da democracia, da participação e da soberania popular”.

Luciano Fedozzi (1997) estudando a causa da nossa histórica “não-cidadania” aponta justamente a existência de um ethos profundamente autoritário do modelo patrimonialista, presente na formação social e política do país, caracterizado, principalmente, pelos seguintes elementos interdependentes:

[1] a concepção tutelar do poder, concebido pela precedência e primazia histórica do Estado em relação à sociedade, a qual se processa através dos mecanismos de cooptação e de exclusão social e política, assentada no modelo patrimonialista de Estado (vinculada à noção teórica que admite – embora de maneira diversa e com diferentes nuances entre os autores – a possibilidade histórica de o Estado existir relativamente independente e autônomo do sistema de classes sociais ou da infraestrutura econômica da sociedade);

[2] a ausência da noção de contrato social nos padrões de relacionamento da ordem social e política, que pressupõe o reconhecimento do outro como sujeito portador de direitos enquanto noção igualitária básica da democracia;

[3] a não distinção entre o que é público e o que é privado, configurando a inexistência da noção republicana que está na base das democracias;

[4] a permanente reposição da dualidade entre o país real e o país formal assinalando uma esquizofrenia entre os níveis institucional e o social.

A nossa história social e política é marcada pelos mecanismos de exclusão dos setores populares na produção de um espaço público “descidadanizado”. Entretanto, é uma evidência das resultantes sociopolíticas daquelas características essenciais apontadas pelos críticos “radical-democrático” de nossa origem patrimonialista: um sistema de dominação que articula e reproduz constantemente o artificialismo das leis e a concepção tutelar de poder, que acabam formando uma realidade de disjunção entre o país real e o país formal.

Ao longo da história brasileira, observa-se uma falta de comprometimento do Estado com os anseios dos cidadãos. Governos se sucederam exercendo o poder de forma autoritária e vertical, comprometidos mais com determinados interesses privados do que com a soberania popular. A participação nas decisões do governo era restrita a certos grupos que defendiam os interesses das elites em detrimento dos interesses de grande parcela da população, alijada dos processos decisórios pela impossibilidade de participar do jogo político.

Ângela de Castro Gomes (2002) ressalta que na maioria dos estudos sobre o Estado no Brasil, até meados da década de 1970, tem se mantido a avaliação de que:

[...] sobra poder privado e falta poder público no Brasil, uma sociedade dominada por arranjos clientelistas e personalistas que datariam do ‘período colonial’. Porém, tais arranjos não se manifestariam apenas pelo ‘mandonismo local’, expresso nos currais eleitorais dos coronéis do interior e pelos viciados partidos de ‘notáveis’. Essa face‘tradicional-privada’ de nossa vida política estaria igualmente presente na atuação de um sistema partidário nacional e de massas, enraizado nos grandes centros urbanos, mas considerado fraco e incapaz de representação legítima, sendo presa fácil dos sempre existentes políticos profissionais (GOMES, 2002, p. 540- 541).

Entre as décadas de 1950 a 1980, o Brasil passou por profundas transformações sociais, políticas e econômicas. Nesse período, a sociedade brasileira, anteriormente, estruturada no

modelo econômico agrário-exportador, transforma-se numa sociedade urbano-industrial. O país passa por um extraordinário processo migratório, que foi impulsionado e viabilizado pelo modelo de modernização conservadora instaurado no país, durante as décadas de 1930 a 1950.

Conforme Fany R. Davidovich e Olga M. B. L. Fredrich, entre os anos 1950 a 1980, ocorreu um extraordinário processo migratório - considerado um dos maiores do mundo contemporâneo - a população das cidades teve um acréscimo de mais de 60 milhões de pessoas, sendo que deste contingente, 29 milhões de pessoas somente durante os anos 1980, nos quais 2/3 da população brasileira passaram a viver nas áreas urbanas (DAVIDOVICH, FREDRICH, 1988, p. 16).

Esse processo migratório intensificou-se a partir de 1964, durante o regime ditatorial, que manteve a estrutura fundiária herdada do período colonial, ligada ao processo de modernização urbana e industrial, o qual promoveu a concentração de riquezas, de renda, de terras (tanto no campo como nas cidades), de acesso seletivo aos equipamentos e serviços públicos, sem precedentes na história do país, criando os pólos de desenvolvimento capitalista e os bolsões de miséria no Brasil, principalmente, nas capitais e nas regiões metropolitanas, onde um cenário de profunda desigualdade social, de degradação ambiental e de aumento da violência apontou o país, conforme os relatórios da ONU, como uma das nações mais desiguais do mundo do final de século XX.

Pode-se dizer, portanto, que o Brasil, nas décadas finais do século XX, modernizou-se, industrializou-se e urbanizou-se; porém, não deixou para trás os seus contrastes, ambiguidades e desigualdades, pois, nas palavras de Vera da Silva Telles (2001, p. 14), ainda estão presentes “os velhos dualismos nas imagens de um atraso que ata o país às raízes de seu passado e resiste, tal como força da natureza, à potência civilizadora do progresso”.

Deve ser reconhecido, por outro lado, que a sociedade brasileira tem uma longa tradição política autoritária, é uma sociedade dominada por arranjos clientelista, paternalistas e personalistas, os quais foram reforçados pelo vasto período de ditadura militar (1964- 1985) em que viveu o país, durante o qual os setores populares tiveram o exercício da sua cidadania impedida e a oposição ao regime foi duramente reprimida.

Um aspecto a igualmente ser destacado é que embora o país, a partir de 1964, tenha passado a ser governado por um Estado burocrático-autoritário, o regime militar instaurado

buscou manter uma fachada de democracia, conservando, por exemplo, a figura do Presidente da República, papel exercido por um general-presidente e, num primeiro momento, a Constituição de 1946, apesar dos arranhões por ela sofrida e até mesmo os partidos políticos da fase anterior (PETERSEN, 1999).

No que se refere aos objetivos do Estado burocrático-autoritário instaurado, segundo O´Donnell (1982), esse regime possui duas tarefas essenciais: 1) conter a ação política do setor popular e 2) normalizar a economia do país. Tais tarefas são desempenhadas com o respaldo das organizações especializadas no uso intensivo de repressão. O setor popular é excluído do pacto político que sustenta o regime através do cerceamento da cidadania e da liquidação das instituições democráticas.

Esse setor popular, também é excluído economicamente, na medida em que o regime burocrático-autoritário promove um padrão de acumulação que objetiva beneficiar os grandes oligopólios do capital privado nacional e transnacional, contendo drasticamente os salários, o que, consequentemente, aprofunda as desigualdades sociais. Finalmente, o regime busca despolitizar as questões sociais, tratando-as com critérios técnicos supostamente neutros.

Scot Mainwaring (1988) e Maria Helena Moreira Alves (1989) salientam o empenho constante, da ditadura instalada no país após o golpe militar de 1964, de manter junto à sociedade, uma certa “aparência” de estabilidade institucional, a fim de garantir a legitimidade e a legalidade do regime, através da implementação de mecanismos de representação mais flexível e controlado pelo Estado.

Durante grande parte do Regime Militar (1964 a 1985), o eleitorado foi privado de eleger o Presidente da República (1964-1985); de 1965 a 1982, proibido de votar para governador e de 1965 até 1984, impedido de votar pra prefeito das capitais, das áreas de Segurança Nacional e das instâncias hidrominerais. Afora isso, as eleições legislativas foram mantidas, especialmente, para as Assembleias estaduais, Câmaras de Vereadores, Câmara de Deputados e para o Senado, embora nessas eleições muitas vezes, tenham sido eleitos parlamentares que tiveram seus mandatos cassados pelo regime (PEDROSO, 1998).

As eleições para Presidente da República, durante o Regime Militar, no intervalo 1964 a 1984, passaram a ser indiretas: entre 1964- 1967, através do Congresso Nacional e, entre 1967 e 1985, pelo Colégio Eleitoral. A principal alteração efetuada nesse período foi à criação em 1967, do Colégio Eleitoral que era constituído pelos membros do Congresso Nacional e mais uma delegação das Assembleias Legislativas estaduais, cujo número variava de 3 a 6

delegados, todos oriundos do partido majoritário que geralmente, era o partido que dava sustentação ao governo (ARENA, até 1979 e após o PDS).

Este Colégio Eleitoral elegia o Presidente da República, assegurando aos militares que o seu candidato fosse o vitorioso. E quando o governo percebia que poderia perder as eleições, utilizavam expedientes para aumentar o número de delegados da bancada estadual governista e diminuir o peso do eleitoral da oposição, como a introdução dos Senadores “biônicos”; a fusão de estados oposicionista (Rio de Janeiro e Guanabara) para reduzir a delegação contrária ao governo: dividir estado situacionista (Mato Grosso) para ampliar a representação favorável ao governo: elevar o território de Rondônia à categoria de estado para aumentar a representação situacionista; e limitação das bancadas estaduais para reduzir a representatividade dos estados maiores, geralmente oposicionistas (PEDROSO, 1998).

Embora o regime tenha mantido as eleições legislativas, o Poder Legislativo em todos os níveis sofreu inúmeros cerceamentos: fechamento do Congresso, suspensão de inviolabilidade dos mandatos, cassação de mandatos, além de imposição de reformas partidárias e eleitorais arbitrárias e impedimento de cumprir livremente com sua função de legislar.

Para Pedroso (1998) a eficácia desses mecanismos durou até 1984, tendo o governo enfrentado oposição crescente dos setores democráticos do país que, finalmente, em 1983, começaram vigorosas campanhas nacionais em prol das Eleições Diretas, a qual ficou conhecida como “Diretas Já”, que apesar do apelo e da pressão popular pela aprovação da emenda Dante de Oliveira que acabou sendo derrotada no Congresso.

Contudo, a campanha das “Diretas Já” contribuiu para que o Regime Militar fosse derrotado no Colégio Eleitoral, vencendo o candidato da oposição, Tancredo Neves, que prometeu restituir as eleições diretas em todos os níveis. Mesmo que Tancredo não tenha assumido a presidência, pois veio a falecer, o seu vice, José Sarney cumpriu a promessa de ser o último candidato eleito indiretamente e, logo após a sua posse enviou ao Congresso Nacional, em 1985, um projeto de lei restabelecendo eleições diretas em todos os níveis, o que mais tarde foi confirmado pela nova Constituição de 1988.

De acordo com Mainwaring (1988), sem partidos políticos a democracia representativa, tal como a conhecemos seria impensável. Os partidos são a principal organização através da qual pessoas e tendências, de diferentes pensamentos, crenças e ideologias concorrem pelo poder. Onde os partidos são fracos e tem uma existência efêmera, a oportunidade de escolha

do eleitorado entre ideias e as políticas propostas é prejudicada, pois, na melhor das hipóteses, se escolhe líderes personalistas nem sempre identificados com os anseios da maioria da população. Assim a simples existência e funcionamento dos partidos políticos, não é suficiente para que seja consolidada a democracia.

Evidencia-se durante o período militar um aumento dos mercados de consumo e de emprego acompanhado de um grande crescimento das cidades o que de uma certa maneira propiciou as condições para a ampla mobilização e organização social, principalmente, dos movimentos populares e sociais após as eleições de 1974. O movimento pelas eleições diretas em 1984 foi o auge de um movimento de mobilização política e de efervescência da participação popular, de dimensões inéditas na história do país.

O período militar aprofundou as características presentes em nossa formação e a compreensão das relações que se estabeleceram durante o mesmo, constituem-se em um importante elemento para que se compreenda a natureza do processo de transição política no país.

O período anterior ao processo de “abertura política” – 1968 a 1974 - que ficou conhecido como o do “milagre econômico” – foi o mais violento e criminoso da ditadura militar.Entretanto, problemas de ordem internacional também tiveram um papel destacado no processo de abertura. O principal deles foi à crise do petróleo em 1973, da qual resultou um aumento brusco no preço do produto, promovido pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep). A triplicação do preço do barril de petróleo atingiu o Brasil com muita força, pois 80% do consumo dependia do petróleo importado. O general Geisel, que fora presidente da Petrobras, soube muito bem avaliar a gravidade da situação. Medidas urgentes precisavam ser implementadas.

A partir de 1974, começa a lenta e gradual transição política no Brasil, com a chamada “política de distensão” do General Ernesto Geisel. Logo após assumir a presidência da República, Geisel afirmou de que estava disposto a promover um lento e gradual processo de retorno à democracia. A “abertura política” iniciada em 1974, pelo então general presidente buscou implementar políticas que assegurassem ao governo o controle do processo de transição democrática. Para tanto, foram diminuídas as restrições à propaganda eleitoral e deu- se um grande passo com a revogação do Ato Institucional n.5 (AI-5), em 1978, com o fim da censura prévia e com o retorno ao país dos primeiros exilados políticos.

Assim, para José Murilo de Carvalho e Francisco Weffort, os anos do “milagre econômico” estavam com os dias contados. Era necessário criar novas estratégias para enfrentar os tempos difíceis que se anunciavam. É nesse contexto que o general Golbery (o grande estrategista do regime militar) conseguiu convencer os setores mais autoritários das forças armadas (conhecidos como linha dura), de que seria melhor para o governo e para os militares promover a redemocratização do país, enquanto ainda houvesse prosperidade econômica e apoio de segmentos da população, do que fazê-lo após a instauração da crise, quando os custos da manutenção e controle do regime seriam maiores. O processo de transição democrática iniciou quando a economia entrava em crise e o país começava a perder o ritmo de crescimento (CARVALHO, 2011; WEFFORT, 1988).