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Capítulo 3. Hip hop “Tupiniquim” Um fenómeno glocal?

3.1 O break dance entra em cena

O break dance foi a vertente do hip hop que mais conquistou adeptos na sua fase inaugural. Muitos dos primeiros rappers, dj's e grafiteiros do Brasil foram inicialmente b-boys

98 Este nome foi dado pela imprensa para designar o circuito artístico e cultural criado pelos bailes de música

soul e funk que contagiaram a juventude pobre e negra dos subúrbios do Rio de Janeiro (Vianna, 1997b).

99 De acordo com Hermano Vianna foram poucas as bandas brasileiras que não se revelaram um fracasso

ou b-girls, fundadores de um movimento cultural urbano que iria contagiar a juventude de norte a sul do país. Os bailes black foram responsáveis pela emergência dos primeiros dançarinos de break dance, designadamente em São Paulo, cidade que se assumiu como vanguarda do hip hop no Brasil (Felix, 2005; Silva, 1998). Embora alguns dos primeiros b- boys de São Paulo fossem antigos frequentadores dos bailes black – onde se familiarizaram com o rap e o break dance –, rapidamente a rua tornou-se o seu espaço de referência100. As

rodas dinamizadas pelos b-boys para pôr em prática os seus movimentos eram desestimuladas pelos organizadores dos bailes que alegavam prejuízo, preferindo que os clarões abertos pelos dançarinos fossem ocupados por mais frequentadores. Diante do boicote dos organizadores e de festas cada vez mais lotadas a dificultar os seus movimentos, os b-boys transferiram-se para a rua (Felix, 2005; Silva, 1998). Até o princípio da década de 1980, os grupos de break dance estavam circunscritos aos mais importantes centros urbanos brasileiros (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília), onde a exposição da juventude aos media era mais intensa, e a influência da dança inovadora, vinda dos guetos norte-americanos, despertava101.

Um dos mais emblemáticos foi o Funk & Cia, liderado por Nelson Triunfo, um pernambucano que migrou para São Paulo, em 1977. Considerado o primeiro b-boy brasileiro, ou melhor, breaker (como eram nomeados naquele período), Triunfo montou o Funk & Cia para dançar nos bailes black (Leal, 2007; Felix, 2005). Mais tarde, fascinados pelos passos que viram na televisão e pelas informações que alguns amigos trouxeram dos EUA, os seus membros transformaram-no num grupo de break dance102. Como explica Billy, antigo

integrante do Funk & Cia:

“Em 1983, por intermédio de amigos nossos que iam buscar discos 'lá fora' [no estrangeiro], a gente ficou sabendo do break e toda aquela história do hip hop (que hoje a gente sabe que é hip hop). Mas, na verdade, na época a gente não sabia o nome de nada, a gente só sabia que era uma dança robotizada e que se dançava na rua. Então a gente resolveu levar essa dança para a rua e começamos a desenvolvê-la do modo que a gente achava que era na época. A primeira vez que a

100 Vários autores apontaram os bailes black como responsáveis pela propagação do break dance e da música rap

em São Paulo, Rio Janeiro, Belo Horizonte e outras cidades onde a “música negra” também teve sucesso (Dayrell, 2005; Vianna, 1997b). Contudo, dada a diversidade e o tamanho continental do Brasil, levanto a hipótese de que muitos dos b-boys precursores poderão não ter passado pelos bailes black, designadamente após a rua ter adquirido um papel central.

101 Informação recolhida no documentário Nos tempos da São Bento (2010).

102 De acordo com Sérgio Leal (2007), o apresentador do programa de auditório Sílvio Santos passou a promover

concursos de break dance na televisão em 1983, um desafio aceite por Nelson Triunfo que se torna um fiel divulgador da dança.

gente dançou break na rua em São Paulo foi em frente ao Teatro Municipal. Depois a gente achou melhor migrar para a rua 24 de Maio que já era um ponto histórico de encontro de blacks e tal.” [Billy. Nos Tempos de São Bento, 2010]

Após uma breve temporada na frente do Teatro Municipal de São Paulo, o grupo Funk & Cia passou a treinar na rua 24 de Maio, próximo da “Galeria do Rock103”, chamando a atenção

dos transeuntes no tumultuado centro paulistano. Esse point foi importante para dar visibilidade ao break dance, e permitiu o diálogo e a troca de informações entre praticantes de diferentes locais da cidade. Exemplo disso foi a presença do b-boy Ricardo em algumas apresentações na rua 24 de Maio, a exibir algumas técnicas desconhecidas para os demais, dado ter aderido ao break dance em Nova Iorque, cidade onde viveu. Posteriormente, ele criaria o grupo Electric Boogies e faria apresentações de dança em programas de TV (Leal, 2007).

Em 1984 integrantes do Funk & Cia foram convidados pela Rede Globo para fazer a abertura da telenovela “Partido Alto”. Com o break dance no horário nobre na principal rede de televisão brasileira já não havia como ignorá-lo. No entanto, essa efémera fama não foi suficiente para o reconhecimento desta dança pelo poder público, pois as performances do grupo na rua 24 de Maio eram constantemente interrompidas pela polícia, que, por vezes, levava os seus integrantes para a esquadra. Esses episódios foram assim descritos por Nelson Triunfo:

“A gente tinha problemas porque a polícia baixava, prendia a gente, dispersava. Eles pediam carteira de trabalho. Eu virei freguês da delegacia. Tinha um delegado que gostava de mim e quando eu chegava lá ele perguntava: ‘Por que trouxeram esse cara aí de novo? Vai embora’. O cara estava de saco-cheio de mim.” (Dip, 2006)

As apresentações no espaço público também não eram bem aceites pelos comerciantes locais, pois consideravam-nas concorrentes dos produtos expostos nas montras de suas lojas. Às vezes chamavam a polícia para reprimir os dançarinos, noutras sabotavam o local de apresentação com creolina, um produto de limpeza com odor intenso e desagradável (Felix,

103 A Galeria do Rock foi um dos primeiros centro comerciais a serem construídos no Brasil (1963). Chamado

inicialmente de Shopping Center Grandes Galerias, este espaço ficou famoso por servir de ponto de encontro para diferentes culturas juvenis. Desde os anos 1970, concentra inúmeras lojas de disco e outros estabelecimentos direcionados para os fãs do rock – daí a designação Galeria do Rock – e, atualmente, também abriga lojas voltadas para outras “tribos urbanas”, designadamente as identificadas com a cultura hip hop. Para mais informações aceder à página: http://www.galeriadorock.com.br/blog/

2005; Silva, 1998). No final de 1984, o Funk & Cia deixou de treinar na rua 24 de Maio em função de um esgotamento físico do seu líder. Todavia, a contribuição do grupo para o desenvolvimento do break dance em São Paulo já havia sido dada. Por um lado, agregou os dançarinos que estavam dispersos na cidade, por outro, tirou o break dance do anonimato, conquistando novos adeptos.

A importância dos mediadores no intercâmbio de informação e bens culturais (nomeadamente aqueles com algum tipo de vínculo com os EUA), numa altura em que não existia Internet e no Brasil persistia um certo fechamento comercial e político, foi decisiva. Nos bailes black de São Paulo e do Rio de Janeiro a atualização da discografia dos dj's já era garantida por eles, que se adiantavam ao lançamento no mercado nacional, como revelaram José Silva (1998) e Hermano Vianna (1997b) em seus trabalhos. Nesta primeira fase, os praticantes de break dance também conviviam com uma acentuada escassez de informação. Portanto, não havia outra solução senão redefinir a dança e os seus significados segundo as suas experiências locais e as poucas ligações internacionais que conseguiam obter. Nesse processo de tradução do break dance à realidade brasileira, os nomes dos movimentos diferiam, a ideia de “cultura hip hop” ainda não existia, tal como havia um amplo desconhecimento sobre a história desta expressão cultural (Silva, 1998). A atuação desses intermediários era um dos poucos recursos que detinham para incrementar as trocas culturais com uma cultura juvenil ainda bastante recente nos EUA. A dificuldade em obter informações foi bem evidenciada nos depoimentos recolhidos para o documentário Nos tempos da São Bento, um dos quais transcrevo a seguir:

“A gente descobriu um diamante, mas a gente tinha de lapidar. A gente teve que reinventar o break. Porque o break foi inventado nos EUA, mas não teve ninguém que veio de lá para cá na época para a gente poder treinar, pegar a fita [técnica] dos caras. A gente via eles dançando uma ou outra vez num clipe e a partir daí a gente teve que reinventar o break no Brasil.” [Mr.

Mistério. Nos Tempos de São Bento, 2010]

Como explica Stuart Hall (2002), as manifestações culturais globais são apropriadas, construídas e legitimadas através de práticas quotidianas de âmbito local, não podendo ser compreendidas fora do seu contexto. Por sua vez, a globalização altera e produz significados, valores e identidades muito diversos no interior das culturas locais. Portanto, há uma interdependência dos fenómenos locais e globais, o que remete para uma conceção híbrida e

dinâmica da ideia de cultura. As culturas juvenis são exemplares na visualização dessa interdependência dado muitas das suas práticas serem produtos da fusão de uma variedade de referências culturais, o que remete para a ideia de “globalização da diversidade” (Simões, 2002:23). Além disso, certas práticas culturais locais – como é o caso do break dance (num primeiro momento restrito ao Bronx) – são passíveis de se transformarem num produto global consumido em múltiplas partes do mundo. Quando isso ocorre, existe a hipótese de os seus significados e práticas serem “reinterpretados, reorganizados ou até recusados” (Hannerz, 1998:51).

A difusão do break dance (e do hip hop) é interessante por realçar o maior acesso das pessoas a um “inventário cultural do mundo”, resultado de uma maior interconexão global (Hannerz, 1998:45). No entanto, Ulf Hannez salienta que é na experiência quotidiana (vivida localmente) que se experimenta em pleno a realidade, mesmo quando uma determinada prática cultural é configurada a partir do exterior. Daí a importância de não menosprezarmos a experiência local, e percebermos as particularidades vividas pelos b-boys brasileiros, que sentiam o break dance como algo verdadeiramente emanado deles, e não uma mera reprodução.