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Capítulo 2. Das Ruas de Nova Iorque à Difusão Global Breve história do hip hop

2.1 Crise no Gueto

Antes de abordar o processo de surgimento do hip hop nos anos 1970, vale a pena fazer um breve enquadramento sobre as profundas transformações ocorridas no Bronx, Nova Iorque, após a Segunda Guerra Mundial. Este bairro, “berço” de um conjunto de práticas artísticas que iriam revolucionar a estética e o modo como os jovens produziriam cultura, tornou-se alvo de intervenções urbanísticas radicais que alterariam profundamente as sociabilidades dos seus moradores, principalmente os mais jovens.

No início da década de 1960 vivia-se o auge das lutas pelos direitos civis dos afro- americanos, e líderes como Malcom-X e Marthin Luther King davam esperança a toda uma geração que não queria viver como cidadãos de segunda categoria. Nesta época, todas as principais cidades do norte dos EUA (Nova Iorque, Chicago, Cleveland, Boston, Detroit) possuíam bairros habitados (quase) exclusivamente por afro-americanos – os chamado guetos negros –, única área possível (e permitida) para um negro viver. A sua homogeneidade não tinha paralelo com outros bairros étnicos72, funcionando como verdadeiras “cidades negras

dentro das cidades” (Wacquant, 2008:19). No seu interior existiam igrejas, jornais, sociedades de assistência mútua, associações culturais e políticas, bares e locais de diversão, empresas e

72 Diferente dos chamados bairros étnicos que possuíam uma ampla heterogeneidade – no bairro “Pequena

Irlanda” em Chicago, por exemplo, 1/3 dos habitantes eram irlandeses (abrigava apenas 3% da população de ascendência irlandesa da cidade) –, o gueto negro de Chicago era (e continua a ser) exclusivamente negro, onde vivem mais de 90% dos habitantes negros da cidade (Wacquant, 2008).

uma grande variedade de comércio73.

Maioritariamente judeu na década de 1940, o Bronx era habitado por populações diversas étnica e culturalmente. Com a construção da Cross Bronx Expressway (autoestrada que corta o bairro ao meio e liga Manhattan aos subúrbios), entre 1948 e 1972, mais de 60 mil residentes perderam as suas casas, dando início a uma rápida e agoniante deterioração do bairro74

(Chang, 2005:11). Incentivada pelo boom imobiliário e por intervenções urbanísticas desastrosas, metade da população branca abandonaria o South Bronx até o final da década de 1960, levando consigo parte significativa dos empregos75. Simultaneamente, afro-americanos

e imigrantes do Caribe (principalmente porto-riquenhos) vieram ocupar as antigas residências, num processo que alterou significativamente a composição populacional do bairro.

Bronx entraria num novo patamar de destruição e desamparo, quando milhares de edifícios foram incendiados criminosamente: em menos de dez anos 43 mil residências foram destruídas pelas chamas (Chang, 2005:14). Os proprietários das habitações perceberam ser mais lucrativo incendiá-las, com vista a ficarem com o dinheiro do seguro do imóvel, do que fazer obras de manutenção para arrendá-las. A partir da década de 1970, o bairro (principalmente a sua parte sul) transformou-se num aglomerado de ruínas, destroços e prédios abandonados. Uma paisagem apocalíptica, típica de uma cidade bombardeada, destituída da vitalidade comercial de outrora. A insegurança cresceu substancialmente, motivada pelo desemprego e por uma avalanche de drogas que fez crescer uma economia predatória que faziam das habitações abandonadas “salas de chuto”.

Naquela época, a economia norte-americana atravessava uma reestruturação que converteu Nova Iorque, outrora uma cidade industrial, num poderoso centro administrativo e financeiro orientado para o setor de serviços76. Tal mudança deteriorou a qualidade de vida das

73 O gueto negro surge no norte dos EUA a partir das primeiras migrações vindas do sul do país em princípios do

século XX. Segundo Loic Wacquant (2008), o gueto é um instrumento institucional que serve para enclausurar um grupo subordinado, definido a partir de certas características étnicas e raciais, facilitando o seu controlo pelo grupo dominante.

74 Aqueles que tinham melhores condições financeiras – nomeadamente norte-americanos brancos (de origem

irlandesa, italiana ou judaica) – aproveitaram a indemnização para ir viver nos subúrbios de Nova Iorque. Os afro-americanos e latinos, em geral bastante mais vulneráveis economicamente, não tinham outra escolha senão aceitar o realojamento em conjuntos de prédios isolados e de alta densidade populacional (alguns com mais de 1700 apartamentos), inspirados no arquiteto modernista Le Corbusier (Chang, 2005).

75 Foram extintos milhares de empregos no Bronx devido ao encerramento de fábricas e o declínio do comércio

local, fazendo a taxa de desemprego juvenil disparar para mais de 60% no início da década de 1970 (Chang, 2005:13).

populações mais pobres, principalmente dos jovens, ao reduzir brutalmente as suas possibilidades de obter trabalho no setor industrial, para muitos deles a única hipótese de ter um emprego legal e com direitos77 (Bourgois, 2010). Este processo também foi abordado por

Tricia Rose:

“(…) a nova população imigrante e os habitantes mais pobres da cidade pagaram um preço altíssimo pela “desindustrialização” e pela reestruturação da economia. Essas comunidades ficaram entregues aos “donos da favela”, aos desenvolvimentistas, aos refúgios de traficantes, aos centros de reabilitação de viciado, aos crimes violentos, às hipotecas e aos serviços municipais e de transporte inadequados.” (Rose, 1997:199)

Para a juventude do Bronx – empobrecida e excluída das decisões de poder e do acesso aos lazeres típicos da sua idade –, aderir aos gangues era o principal meio de ingresso na sociedade, uma maneira de se defenderem da agressão de grupos rivais e desafiarem as instituições convencionais que não ofereciam qualquer garantia de dignidade. Esta adesão correspondia também à necessidade que qualquer jovem tem de contrariar o isolamento através da integração num grupo de pares e afirmar uma identidade positiva frente à marginalização quotidiana. Portanto, os gangues proporcionavam abrigo, respeito e conforto, constituindo-se num importante instrumento de defesa contra a violência da polícia e dos ataques de junkies, além de ser uma criativa forma de sociabilidade e organização juvenil (Costa, 2006a).

A história dos gangues do Bronx tem o seu apogeu entre 1968 e 1973, quando mais de uma centena desses agrupamentos disputavam o espaço público do bairro. Os seus membros totalizavam mais de dez mil indivíduos, principalmente porto-riquenhos e afro-americanos78,

um número que evidenciava a importância desse modelo de organização para a juventude do bairro naquela época, para muitos um rito de passagem que marcava o fim da infância (Chang, 2005:51). Qualquer jovem era obrigado a levar em conta as divisões territoriais que setor de serviços duplicou (Bourgois, 2010:137).

77 Philippe Bourgois explica em seu livro En busca de respeto: vendiendo crack en Harlen as consequências

desse processo para a juventude de origem porto-riquenha, sacrificada e desiludida por não se adaptar à precariedade, à maior exigência escolar e às regras de trabalho dominantes no ramo de serviços, cujas características de subordinação e feminilidade chocavam-se com o seu sentido de dignidade (Bourgois, 2010:157).

78 Os Black Spades e os Savage Skull eram os maiores gangues negros e porto-riquenhos, respetivamente, tendo

cores próprias, gritos de guerra e sedes para os seus encontros. Embora os confrontos entre os gangues fossem frequentes, estes também serviam como fóruns de discussão sobre os problemas do bairro, a violência da polícia e as preocupações comuns à juventude. Alguns deles desenvolviam, inclusive, ações sociais, como é o caso do Ghetto Brothers, que organizava pequenos-almoços grátis para as crianças do Bronx (Chang, 2005).

os gangues impunham para circular no Bronx, dado o risco de ser agredido por bandos rivais daquele que controlava a sua área de residência79.

Numa altura em que as bases do hip hop ainda não tinham sido geradas, a rivalidade entre gangues no Bronx fez a violência disparar “em flexa”. Mas, partiu desses próprios agrupamentos, nomeadamente do Ghetto Brothers, o esforço precursor para haver união e harmonia entre a juventude do bairro, quando as lideranças dos principais gangues assinaram um tratado de paz em 1971. No entanto, o esforço para uma vivência pacífica teria uma duração breve. Como assinala Chang (2005), ações consecutivas da polícia levaram à prisão as principais lideranças dos gangues com vista a desarticulá-los. Não interessava às elites políticas e económicas da altura a coesão interna no gueto. Iniciou-se um processo de fragmentação dos gangues do Bronx, levando a maioria ao desaparecimento.