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Capítulo 3. Hip hop “Tupiniquim” Um fenómeno glocal?

3.2 São Bento: o santuário do break dance em São Paulo

O capítulo seguinte da história do break dance no Brasil fixou morada em São Bento, estação de metro localizada no centro de São Paulo. Foi de João do Break a ideia de irem treinar lá, e a partir de 1985 o pátio do lado de fora da estação (hoje um pequeno jardim) tornou-se o palco para os seus ensaios. Tiveram de negociar a partilha do espaço tanto com a direção do metro quanto com os punks que já frequentavam o local. Estes acabaram por habituar-se à presença dos b-boys, tendo se dispersado nos anos seguintes104.

A veiculação de filmes como Flash Dance (1983) e Beat Street (1984) e de clipes (principalmente do Michael Jackson) converteu o break dance na dança do momento, alvo de várias reportagens, inclusive tema de uma série televisiva produzida pela TV Cultura em 1986, Lucy Puma. A gata da pesada. Essa moda teve fortes repercussões nos treinos em São Bento, cujo número de frequentadores explodiu105. Os treinos de sábado passaram a agregar

104 Informação recolhida no documentário Nos tempos da São Bento (2010).

“gangues” de diferentes partes de São Paulo, entre as quais: Back Spin, Crazy Crew, Nação Zulu, Street Warrior. Esses grupos de dançarinos dividiam o espaço nem sempre de forma pacífica. Por vezes, quando as “batalhas” (ou “rachas”) de dança entre os b-boys não eram suficientes para resolver certos desentendimentos o conflito real sobrevinha. Nesse período, o termo gangue era o mais habitual entre os b-boys brasileiros, uma denominação proveniente dos filmes norte-americanos, artigos de jornais e revistas106. Todavia, este termo só tinha a

função de identificar os agrupamentos informai, e nunca cumpriu estratégias de ação territorializada ou voltada para fins criminais. Tampouco os gangues de b-boys brasileiros eram dotados de uma hierarquia interna bem definida como os seus homólogos do Bronx. Constituíam apenas um símbolo de afirmação identitária e diferenciação entre os dançarinos, maioritariamente provenientes do subúrbio e/ou das classes baixas. Convertiam um termo negativo (entendido como desviante) num emblema capaz de conferir respeito e reconhecimento (Costa, 2006a).

No final da década de 1980, São Bento já não era só um ponto de encontro para b-boys e b-girls, pois rappers, dj's e grafiteiros passaram a frequentá-lo, alguns deles antigos dançarinos107. Configurava-se o mais importante polo do hip hop de São Paulo, um espaço de

criatividade cultural e sociabilidade para os seus frequentadores. A fama de São Bento ultrapassou as barreiras geográficas, tornando-se no “farol” do hip hop em todo o Brasil, principalmente para os dançarinos de break dance. B-boys e b-girls de múltiplas partes do país viajavam para São Paulo com o propósito de conhecer São Bento, um espaço aglutinador numa altura em que as redes de contacto entre os praticantes brasileiros quase não existiam. O depoimento abaixo ilustra bem o importante papel da São Bento no esboço de um primeiro circuito de hip hop no Brasil:

“Quando a gente dançava aqui em Belo Horizonte [Minas Gerais], a gente não sabia se existia hip hop noutros estados, a gente tinha suspeitas, mas sempre ficava na dúvida. Aí, graças a um amigo nosso que foi em São Paulo em 1987 (ele conhecia um pessoal nas Galerias da 24 de Maio), ele ficou sabendo que tinha um lugar onde o pessoal se encontrava que era São Bento. Até então a gente não sabia o que era São Bento: se era uma praça, um bairro, uma rua. Então a

imaginário que havia sobre o hip hop de Nova Iorque: os brasileiros também tinham a sua própria estação de metro para a prática.

106 Diferente dos b-boys dos EUA que abandonaram a noção de gangue por implicar a ideia de rivalidade e

violência, o termo crew só mais tarde seria predominante entre os dançarinos brasileiros (Silva, 1998).

107 O rapper Thaíde, o mc Jack, o dj KLJay (do grupo Racionais MC's) e a dupla de grafiteiros Gêmeos são

gente não tinha ideia do que era São Bento. Aí nós fomos na semana santa de 1987 para São Paulo conhecer São Bento. Chegando em São Paulo, a gente ficou um dia praticamente andando com o decorflex [tapete de material sintético apropriado para a dança] nas costas, e a gente abria no centro de São Paulo (nos lugares que a gente achava que era legal de dançar) e ficava dançando na esperança de encontrar algum hip hopper, alguém que fizesse parte da cultura passar e nos informasse onde era São Bento. (…) São Bento foi muito importante, esse contacto que a gente teve lá, ver de perto, foi muito legal e foi uma injeção de ânimo para Belo Horizonte. (…) A amizade é que foi legal, a gente chegando, depois os caras vieram para cá, os caras recebendo a gente, depois a gente voltando para São Bento de novo. Foi foda. Muito bom lembrar isso, porque essa ida a São Bento foi como ter descoberto vida noutro planeta.” [Roger

Dee. Nos Tempos de São Bento, 2010]

Quase inexistente até então, a participação feminina em São Bento ampliou-se ligeiramente, mas sem deixar de ser residual, o que está relacionado com a maior dificuldade das mulheres em aceder ao espaço público. Creio que outro fator a contribuir para essa desproporção de género poderá ser a estética envolvida nas performances do break dance. Nas “batalhas” que travam com outros dançarinos, b-boys e b-girls devem usar expressões ásperas e pouco cordiais, e a componente teatral emprega mímicas que simulam atos de violência, como cortes de cabeça, tiros e facadas. Apesar da violência dos gestos dos dançarinos ser de natureza fictícia, as performances acabam por ser mais atrativas aos rapazes do que às raparigas, talvez por se coadunarem com a imagem de masculinidade vigente na sociedade108.

Com a crescente participação das outras vertentes do hip hop, em São Bento, especialmente rappers, alguns jovens quiseram ter um espaço próprio, menos voltado para o break dance. Interesses distintos motivaram uma cisão, e um grupo maioritariamente composto por rappers abandonou São Bento para promover encontros na Praça Roosevelt, também no centro da cidade. Alguns dos depoimentos recolhidos por Sérgio Leal (2007) dão ênfase à perspetiva racial, central para alguns dos frequentadores de São Bento, que não viam lá um espaço confortável de discussão e tomada de consciência. Outras entrevistas recolhidas por ele e por José Silva (1998), mencionam as rivalidades entre os grupos que conviviam na São Bento e a marginalização dos frequentadores mais recentes, postos de lado pelos mais antigos, como uma das justificativas da cisão. Independentemente de quais os fatores foram mais determinantes (o que dependerá da experiência de cada um), importa ressaltar que a música rap adquiriu uma maior relevância no contexto do hip hop de São Paulo. Daí que na

108 Segundo Carles Feixa e Francisco Ferrándiz, é preciso “desjuvenilizar a violência” presente nos rituais de

certos estilos juvenis, pois estes expressariam muito mais uma determinada noção de masculinidade do que de juventude (2005:10).

ótica de muitos rappers, continuar em São Bento – um espaço onde a prática do break dance imperava – significava restringir o desenvolvimento do rap (Leal, 2007; Silva, 1998).

Se as primeiras experiências fonográficas ocorreram em 1984 – quando a influência do break dance era predominante na sua sonoridade109 –, só no final da década de 1980 assistiu-se

ao lançamento das primeiras gravações realizadas por rappers. As coletâneas Ousadia do Rap (Kaskata, 1987), Som das Ruas (Chic Show, 1988) e Hip hop Cultura de Rua (Eldorado, 1988) foram algumas das mais importantes produções da época, abrindo passagem para que o movimento rap crescesse e ganhasse maior visibilidade. O período na Roosevelt cumpriu um papel fundamental no lançamento das bases do estilo rap que dominaria a década seguinte. As conversas em torno da produção musical norte-americana – sobre os grupos Public Enemy, KRS One e NWA, entre outros – logo passaram a ser enquadradas no contexto brasileiro, e as temáticas do racismo e da violência policial vieram à tona (Felix, 2005). A decisão de criar o Sindicato Negro em 1989, a primeira “posse” de São Paulo110, surgiu nesse ambiente de maior

engajamento político, dando maior consistência às experiências do grupo. A formação dessa “posse” teve um significado simbólico poderoso, tanto que alguns autores a invocam como marco do início do hip hop no Brasil, como é o caso de João Felix (2005). Apesar de o Sindicato Negro ter se desagregado poucos anos depois, não se pode menosprezar o papel que desempenhou na definição dos parâmetros políticos e organizativos do movimento hip hop, influenciando a própria produção da música rap. Como sublinha José Silva (1998), até os anos 1990 houve duas experiências no processo de entrada no mercado fonográfico entre os rappers. A primeira foi resultado dos concursos de rap realizados nos bailes black, cujas letras eram bem humoradas e pouco interventivas em relação aos problemas vividos pelos jovens pobres e/ou negros dos subúrbios paulistanos. As coletâneas que ilustram esta tendência foram lançadas entre 1987 e 1990, entre elas as duas primeiras já citadas. A segunda experiência desenvolveu-se na rua (São Bento e, a seguir, Roosevelt), e os grupos originados estavam integrados no contexto do hip hop. As suas letras eram muito mais politizadas e tinham como principal temática o dia a dia na periferia de São Paulo, dando especial destaque ao racismo, às especificidades locais onde viviam e à violência policial. Embora o primeiro registo

109 Os grupos Black Juniors, Villa Box e Electric Boogies foram formados por b-boys que aproveitaram a recém

chegada moda do break dance para gravar os seus discos (Leal, 2007; Silva, 1998).

110 No decorrer da década de 1990, houve uma multiplicação de “posses” em São Paulo, a maioria delas

fonográfico seja de 1988 com o Hip hop Cultura de Rua, este estilo de rap só ganhou força no início dos anos 1990 (designadamente com o lançamentos dos álbuns do grupo Racionais MC's), quando passou a ser dominante111.

O maior relevo da música rap esvaziou a prática do break dance na São Bento, dado muitos b-boys terem deixado a dança para se tornarem rappers ou dj's. Simultaneamente, um maior número de dançarinos optou por treinar nos seus próprios bairros. De modo a inverter essas lógicas alguns dos b-boys mais respeitados, em conjunto com a ONG Geledés – Instituto da Mulher Negra112, organizaram a I Mostra Nacional de hip hop na São Bento em

1993. Grupos de todo o Brasil compareceram a esse encontro, que reuniu milhares de pessoas, tendo uma forte difusão nos meios de comunicação. O sucesso da Mostra não foi suficiente para impedir o fim dos encontros na São Bento, que culminaram com a proibição pela direção do Metro, sob a alegação de que os dançarinos atrapalhavam o fluxo dos pedestres. O fim dos encontros na São Bento não significou o enfraquecimento do break dance no Brasil, mas apenas o fim de um ciclo (Leal, 2007). Todavia, nunca mais houve um lugar que conseguisse reunir tantos b-boys e b-girls de diferentes locais da cidade (e do Brasil) como São Bento, identificada como o “santuário” do break dance. Essa função aglutinadora passou a ser desempenhada pelos campeonatos de break dance e encontros de hip hop, cada vez mais frequentes com a maior penetração da indústria cultural.

Se o início da música rap e do break dance, no Brasil, deu-se no contexto dos bailes black na periferia das grandes cidades, o amadurecimento dessas expressões artísticas, em São Paulo, ocorreu após a sua transferência para as ruas do centro: rua 24 de Maio, Estação São Bento e Praça Roosevelt. Contrariamente à experiência norte-americana, na qual o hip hop sempre teve os bairros como locais privilegiados, em São Paulo essa centralidade só aconteceria posteriormente (Felix, 2005). A partir das experiências do Sindicato Negro e do fim dos encontros na São Bento, o hip hop pulverizou-se no subúrbio. Organizado nos bairros periféricos da cidade através das “posses”, o hip hop ganhou uma projeção de massas,

111 As equipas de som que realizavam os bailes black foram fundamentais para difundir a música rap pois

contavam com experiência e estrutura organizacional, fatores que permitiram uma rápida penetração no mercado fonográfico. Contudo, até o início dos anos 1990 havia uma rejeição por parte dos organizadores desses bailes às produções artísticas feita por rappers e b-boys no contexto da cultura de rua (Silva, 1998).

112 Essa ONG teve um importante papel ao fazer parcerias com rappers e b-boys de São Paulo, como por

exemplo o apoio à edição da Pode Crê, a primeira revista voltada para o hip hop no Brasil, publicada entre 1991 e 1994 (Felix, 2005).

conquistando autoridade e legitimidade (cultural / política) junto da sociedade113. Atualmente,

quando autointitulam-se porta-vozes da periferia, os rappers não falam à toa, mas apoiados num movimento cultural que influencia milhões de jovens em todo o país.