• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 1. Lazer e Cultura na Mediação para a Vida Adulta Um debate sobre a juventude

1.3 Violência, segregação e cidadania no Brasil

Os discursos sobre os jovens das classes desfavorecidas costumam variar em torno de duas perspetivas principais. A primeira essencializa esses jovens na imagética da pobreza, da carência e da violência. Obrigados a uma luta constante pela sobrevivência que lhes retiraria imaginação e capacidade criativa, eles viveriam num vazio de ideias e cultura, apenas superado pela boa vontade de organizações e “almas caridosas”, responsáveis por levar-lhes civilização e retirar alguns deles (poucos) da barbárie em que estariam mergulhados. Tais ideias encontram muitas interseções no conceito de anomia problematizado pela Escola de Chicago. Segundo Robert Park, um dos expoentes dessa corrente de pensamento, os comportamentos anómicos teriam origem em certas “regiões morais” da cidade, incentivados pelo contágio social.

comuns e a suprimir os caracteres que os unem aos tipos normais à sua volta. A associação com outros de sua laia proporciona não apenas um estímulo, mas também um suporte moral para os traços que têm em comum, suporte que não encontrariam numa sociedade menos selecionada. Na cidade grande, o pobre, o viciado e o delinquente, comprimidos um contra o outro numa intimidade mútua doentia e contagiosa, vão-se cruzando exclusivamente entre si, corpo e alma (…) Devemos então aceitar essas 'regiões morais' e a gente mais ou menos excecional e excêntrica que as habita, num sentido, ao menos, como parte da vida natural, se não normal, de uma cidade.” (Park, 1973:66)

Tornava-se premente para Park situar espacialmente certos comportamentos e sociabilidades desviantes, designadamente aqueles onde prevaleceriam uma crise de moralidade, em que os costumes, valores tradicionais, laços familiares e de vizinhança estariam enfraquecidos (Zaluar, 1997). Seria a desorganização social provocada pelos fluxos migratórios para determinadas áreas da cidade, marcadas pela pobreza e marginalidade, a responsável pela criação das condições para o aparecimento da criminalidade e do fenómeno da violência juvenil. Estes seriam o resultado previsível de um contexto social condenado pela anomia47.

Um importante autor desta escola foi Frederic Thrasher (1963), cuja pioneira investigação sobre a delinquência juvenil (publicada em 1927) abrangeu mais de mil gangues como refere o próprio título da obra: The Gang: A study of 1,313 gangs in Chicago. De acordo com ele, os agrupamentos juvenis possuíam um aspeto territorial, estando ligados a certas zonas da cidade, designadamente às áreas que faziam a divisão entre duas secções, as denominadas “áreas intersticiais”. O seu estudo representou uma forte crítica ao racismo e ao darwinismo social prevalecente em sua época. Sublinhava que mais do que uma mera questão étnica, a formação dos gangues (e os conflitos associados) tinha um forte componente territorial e de classe. Dotados de solidariedade interna, os gangues concebiam uma tradição cultural distintiva que proporcionava alívio em meio a uma sociedade que não atendia aos seus anseios e necessidades (Feixa, 1999; Hannerz, 1993). No entanto, foi William Foote Whyte que proporcionou um salto qualitativo às pesquisas sobre a tríade juventude, pobreza e violência através do livro Street Corner Society. O trabalho deste autor afastava-se das análises que invocavam os problemas das áreas pobres e degradadas da cidade sob a égide da

47 Também Robert Merton (1970 [1949]) fez uso do conceito de anomia, formulando uma das obras mais

influentes sobre o comportamento desviante. Segundo o autor, este seria resultado da influência de estruturas sociais e culturais em estado de anomia que exerceriam pressão sobre determinados grupos e segmentos da população nelas inseridos (Velho, 1979:12).

desorganização social. Até porque, como demonstrou em relação ao bairro onde fez o estudo: “O problema de Cornerville não é a falta de organização, mas o fracasso de sua própria organização social em se interconectar com a estrutura da sociedade à sua volta.” (Whyte, 2005:276)

Longe de ver os indivíduos desintegrados e atomizados no caos social que seria Cornerville, Whyte percebeu a existência de padrões e regularidades na sua vida interna, expressas num complexo sistema de interações e de redes sociais entre os seus habitantes48.

Numa época em que as associações entre juventude e patologia eram predominantes, a Escola de Chicago contribuiu decisivamente para a desmistificação do desvio juvenil, contrariando o consenso que o associava a uma personalidade patológica adquirida pelo indivíduo à nascença ou decorrente da adolescência, visto como período de transformações fisiológicas potencialmente explosivas e conflituais. Apesar das críticas ao comprometimento de algumas das suas abordagens teóricas a uma ideia consensual de ordem – muito próximas de uma matriz funcionalista –, é indiscutível a larga contribuição da Escola de Chicago (e de Robert Park em particular) à compreensão da vida urbana49.

A segunda perspetiva dos discursos adotados sobre os jovens das classes desfavorecidas dá ênfase aos comportamentos rebeldes e contestatários desses jovens, numa análise que tende a sobrevalorizar o caráter de resistência de algumas culturas juvenis. As pesquisas do Center for Contemporary Cultural Studies (CCCS) da escola de Birmingham foram responsáveis por proporcionar suporte teórico a essas ideias, cuja associação aos paradigmas da corrente classista é evidente. Influenciada pelo aparecimento de culturas juvenis “espetaculares” (teddy boys, rockers, mods, skinheads e punks), essas “contra-culturas” eram pensadas sob a premissa de que atuariam como uma espécie de “resposta subcultural” aos problemas decorrentes das relações antagónicas de classe e da crise da cultura parental. Ou seja, os estilos construídos por esses jovens seriam manifestações simbólicas das contradições da

48 Whyte fez uso de um intenso estudo etnográfico em que predominou o trabalho de campo e a observação

participante, bem diferente da metodologia de Thrasher. A aproximação ao quotidiano dos rapazes que estudou foi tão intensa que, ainda hoje, permanece como uma das principais referências para as investigações que pretendem ter um “olhar de perto e de dentro” (Magnani, 2002).

49 Décadas após a elaboração dos clássicos escritos da Escola de Chicago, o seu legado teórico permanece

essencial, designadamente nas análises sobre a vida citadina, fundadas numa expressiva heterogeneidade sociocultural, forte mobilidade dos urbanitas e multiplicidade de relações e papeis sociais que estes desempenhariam (Park, 1973).

cultura dominante, sendo também reflexo de uma desestruturação familiar e comunitária50. A

insistência dessa abordagem na capacidade das culturas juvenis de resistir às instituições e ao “sistema opressor” foi censurada por muitos autores, que apontavam a existência em seu seio de alguns aspetos conservadores e tradicionais (Cruz, 2002; Vianna, 1997a; Clarke, 1990). Limitadas a reagir, as ações desses grupos juvenis estariam condicionadas a responder a um “outro” hierarquicamente superior, encarcerando a sua existência à mera posição de coadjuvante, além de secundarizar as suas produções culturais e estéticas.

No Brasil, a juventude das camadas populares só começou a ganhar visibilidade na cena pública a partir do final da década de 1970, com o aparecimento das primeiras culturas juvenis. Foram os punks e os frequentadores dos bailes black (ambos, em sua maioria, jovens das classes baixas) os precursores deste novo tipo de agrupamento, marcado por estilos de vida distintivos ligados a preferências estéticas, hábitos de consumo e de lazer geradores de novos padrões comportamentais. Desta forma, abriram caminho para o multiplicar de “tribos urbanas” na década de 1980: darks, metaleiros, carecas, b-boys, rappers, rastafáris, etc. (Vianna, 1997a; Abramo, 1994). A explosão desses movimentos identitários deve ser compreendida no contexto de alargamento do conceito de juventude no Brasil, cujas premissas já não eram monopólio das classes médias e altas. Como explicou Helena Abramo, “o cenário juvenil se diversifica”, e novos personagens e práticas culturais entram em cena no espaço público (1994:55). Os locais de lazer, as produções culturais e as preferências de consumo dos jovens das favelas e periferias urbanas ganharam um maior relevo, o que provocou um reenquadramento da forma como se via a juventude. Até princípio dos anos 1980, o foco dos discursos dirigia-se exclusivamente para os jovens das classes médias, especialmente para aqueles organizados no movimento estudantil (idem). As pesquisas sobre o lazer e os estilos de vida ainda eram muito raras, e estes temas, tratados como um assunto menor ou subordinado às temáticas relativas ao trabalho, à escola e à política (Magnani, 2003).

Rotulados como carentes de idealismo e de projetos de transformação, os jovens das

50 Phil Cohen (1972) foi um dos fundadores desta linha de pensamento ao defender que a cultura juvenil

divergente expressaria uma forma de contestação aos valores sistémicos. Também o livro Resistance through rituals (1976), de Stuart Hall e Tony Jefferson, constituiu um dos principais legados teóricos dessa corrente. A rejeição da escola de Birmingham às teorias que viam a juventude de maneira homogénea e interclassista demonstrou que a suposta uniformidade de hábitos e crenças da juventude é falsa, inaugurando um conjunto de pesquisas etnográficas de grande valor para as Ciências Sociais.

classes populares que protagonizavam esses estilos “espetaculares” eram postos em contraponto aos jovens dos movimentos estudantis das décadas anteriores, cujos integrantes eram apontados como modelo ideal da condição juvenil contestatária (Abramo, 1994). Nos anos seguintes, o processo de estigmatização e rotulação da juventude das camadas populares (e das suas práticas culturais) ganharia contornos mais pronunciados51, em consequência

também do aumento vertiginoso do crime violento nas cidades brasileiras. Até a ditadura as questões relativas à segurança pública tinham pouca visibilidade, um assunto que ganhou projeção com a militarização da polícia e a Lei de Segurança Nacional, promulgada com o objetivo de reprimir a luta armada protagonizada por grupos que reivindicavam o fim do regime autoritário52. Entretanto, foi a partir da intensificação da violência verificada nas

principais capitais brasileiras (principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo), na década de 1980, que o tema da segurança pública passou a receber especial destaque. A responsabilidade pelo aumento da criminalidade no país recaía sobre os jovens das classes desfavorecidas das favelas e periferias urbanas, tratados como “problema social” ou “bandidos em potencial” (Machado da Silva, 2008).

A histórica segregação espacial das favelas do Rio de Janeiro, associada à existência de numerosos pontos de venda de drogas no seu interior, afetou profundamente o imaginário dos cariocas quanto ao seu papel na expansão da violência urbana. Considerados territórios condenados pela “anomia”, nas favelas prevaleceria a desordem, a miséria, o comportamento desviante e uma crise de moralidade. Esta representação sustenta-se em torno da equação pobreza-violência-favela e produz uma interpretação caricatural desses territórios: ocupações ilegais em morros, inexistência de lei e ordem, local de habitações degradadas e lugar de concentração de pobres, analfabetos e criminosos. Não haveria diferença entre as várias favelas, e o seu eixo paradigmático estaria assente naquilo que elas, supostamente, não teriam quando comparadas a um modelo idealizado de cidade. Deste modo, a favela passou a ser

51 A estigmatização do funk carioca é exemplar desse processo. Após um suposto arrastão na praia do Arpoador

em 1992, os dançarinos de funk (funkeiros) foram culpabilizados e este estilo transformado em ícone da violência urbana, alterando a imagem do funk e dos funkeiros no Rio de Janeiro (Vianna, 1996).

52 A função repressiva da polícia no contexto da ditadura militar contribuiu para politizar o tema da segurança

pública. À medida que mais membros das camadas médias envolviam-se na luta armada – cujas ações iam de assaltos a bancos a sequestros de embaixadores –, crescia a atenção da sociedade sobre os métodos do governo no combate à violência. A não admissão da existência de presos políticos, pois a ditadura tratava-os como presos comuns, deu visibilidade às péssimas condições das cadeias brasileiras e ao tratamento indigno de que os detidos eram alvo por parte da polícia (Machado da Silva, 2006).

representada nos discursos mediáticos e institucionais como lugar de privação, sem Estado, globalmente miserável e “base de operações do crime violento” (Machado da Silva, 2006:4). E os seus moradores, especialmente os jovens, pensados como bárbaros imorais, tornando-se o bode expiatório dos problemas da cidade.

Em virtude da intensificação da violência, o medo passou a fazer parte do quotidiano de milhões de famílias brasileiras, principalmente nas grandes cidades do país53. Apesar de o

Estado e os media por vezes manipularem o sentimento de insegurança para fins políticos e de controlo social, o facto é que os índices de violência na sociedade brasileira cresceram substancialmente nas últimas décadas. O exemplo mais trágico desse fenómeno foi o exponencial aumento do número de vítimas de homicídio no Brasil, que, em 2010, foi de 49.932 indivíduos54, um aumento de 259% em comparação com 1980 quando foram mortas

13.910 pessoas. A taxa de homicídio para 100 mil habitantes disparou de 11,7 para 26,2, um crescimento que resultou em mais de um milhão de assassinatos nas últimas três décadas55

(Waiselfisz, 2011). Da leitura do Mapa da Violência 2012, organizado por Julio Waiselfisz (2011), quero sublinhar alguns elementos fundamentais para a presente pesquisa. Primeiramente, frisar a relação entre homicídio e juventude. Na faixa etária dos 15 aos 29 anos, registou-se, em 2010, 26.854 assassinatos, o que correspondeu a mais de 53% do total de homicídios no Brasil naquele ano56. Em segundo lugar, importa ressaltar que 91,4% das

vítimas de homicídio eram do género masculino57. Por último, observou-se que 33.264 dos

53 Segundo uma pesquisa do IPEA (Instituto de Pesquisa Económica Aplicada) realizada em 2010, oito em cada

dez brasileiros têm muito medo de ser assassinado, e apenas 10,2% dos entrevistados referiram não ter qualquer medo (Waiselfisz, 2011).

54 Em números absolutos, o Brasil foi o país no mundo com a mais elevada taxa de homicídios em 2009 de

acordo com o escritório da Organização das Nações Unidas para Drogas e Crimes. Para mais informações consultar: http://www.onu.org.br/estudo-do-unodc-mostra-que-partes-das-americas-e-da-africa-registram-os-mai ores-indices-de-homicidios/

55 A não correspondência do crescimento entre o número total de homicídios e a taxa de homicídios por 100 mil

habitantes prende-se com o aumento da população brasileira nesse período que passou de 119 para 190,7 milhões de habitantes (Waiselfisz, 2011).

56 Ao longo de trinta anos houve um crescimento de 204% na taxa de homicídio juvenil (dos 15 aos 24 anos),

uma tendência que foi bem menor entre a população não-jovem, cujo aumento foi de aproximadamente 100%. Na faixa etária juvenil, 38,6% dos óbitos em 2010 tiveram o homicídio como causa (a grande maioria por arma de fogo), constituindo-se como o principal responsável pelo total de mortes de jovens no país. Esta proporção diminui para 2,9% entre os não-jovens. A taxa de 52,35 homicídios por 100 mil habitantes na faixa etária juvenil indica que os jovens têm uma hipótese 156% superior de serem assassinados em comparação aos restantes grupos etários (Waiselfisz, 2011).

57 A baixa participação feminina nesse índice esconde um progressivo aumento da sua taxa de homicídio entre

1980 e 2010, quando o índice de homicídios cresceu de 2,3 para 4,4 para 100 mil habitantes, respetivamente, tendo sido contabilizado um total de 4.273 mulheres assassinadas em 2010 (Waiselfisz, 2011).

assassinatos vitimaram negros – termo que abrange os pretos e pardos no sistema de classificação do censo brasileiro –, aproximadamente 66,6% do total. Se formos analisar as estatísticas de homicídio consoante a proporção de negros e brancos em cada um dos estados federativos brasileiros, chegaremos à preocupante conclusão de que são vitimadas mais 139% pessoas negras do que brancas, ou seja, um negro tem mais de o dobro de hipótese de ser assassinado58 (idem).

As razões para o vigoroso aumento da violência na sociedade brasileira foram objeto de pesquisa de inúmeros investigadores, motivados não apenas por este ser um dos temas centrais do debate público no país, mas também pelas potencialidades que este fenómeno oferece na renovação dos discursos (institucionais, científicos e de senso comum) sobre pobreza, juventude e áreas faveladas. Sem dúvida, a violência condiciona o olhar do citadino sobre a cidade, influenciando representações sociais, sociabilidades e políticas públicas. A violência urbana transformou-se numa nova categoria social coletivamente construída no imaginário dos brasileiros, reflexo das novas formas de criminalidade que se organizaram em torno do tráfico de armas e drogas. Para Machado da Silva, a violência urbana tornou-se o novo paradigma para a formulação de políticas públicas de combate ao crime, o que fez despolitizar o debate sobre a cidadania e obscurecer a tónica nos direitos humanos, reduzindo os problemas relativos à insegurança “a uma simples questão de eficiência dos aparatos de repressão na garantia da ordem social” (2006:11-12). A violência urbana para este autor não pode ser entendida apenas como um crime comum violento, mas como uma prática imbuída de força e articulação suscetível de se manter por um certo período de tempo, e cuja representação:

“(...) indica um complexo de práticas legal e administrativamente definidas como crime, selecionadas pelo aspeto da força física presente em todas elas, que ameaça duas condições básicas do sentimento de segurança existencial que costumava acompanhar a vida cotidiana rotineira – integridade física e garantia patrimonial. (…) o foco de atenção não é o estatuto legal das práticas consideradas, e sim a força nelas incrustadas, que é interpretada como responsável pelo rompimento da 'normalidade' das rotinas cotidianas” (Machado da Silva, 2008:36).

De acordo com este pesquisador, os traficantes de drogas são habitualmente os principais

58 Se entre 2002 e 2010 as taxas de homicídios dos brancos passaram de 20,6 para 15 por cada 100 mil habitantes

(uma queda de 27,1% ), entre os negros as taxas passaram de 30 para 35,9 (por cada 100 mil habitantes), o que representou um crescimento de 19,6% (Waiselfisz, 2011).

(mas não únicos) protagonistas da violência urbana, dada a forte influência que exercem sobre o quotidiano de moradores que vivem em bairros (favelas e periferias) onde é praticado o comércio ilegal de drogas. Num meio onde os confrontos armados entre as diferentes quadrilhas do tráfico são frequentes, os seus moradores não têm outra opção senão aceitar (e suportar) o jugo dessas quadrilhas. Essa “contiguidade territorial inescapável” também os tornam vítimas da truculência policial, que os considera coniventes com os bandidos que agem na sua vizinhança (idem:13).

Alba Zaluar foi uma das pioneiras no estudo da violência urbana no Brasil, tendo criticado as análises que reduziam esse fenómeno às questões associadas à pobreza e à desigualdade social. Segundo a autora, ambas as propriedades por si só não esclarecem as razões da crescente violência na sociedade brasileira, dando o exemplo da Índia (e de outros países asiáticos), nações bem mais pacíficas apesar dos altos índices de miséria e desigualdade social59. Ela sugere a necessidade de articular o forte aumento da violência às novas formas de

criminalidade urbana, trazendo à tona as redes internacionais do tráfico de armas e drogas (principalmente de cocaína), naquilo que a autora chama de “globalização do crime” (Zaluar, 1996:60). Ora, não se pode restringir o estudo da violência à dimensão local, sendo essencial estender a análise para fora das fronteiras nacionais, inclusive associando o crime organizado a certos políticos, empresários e negociantes de diferentes quadrantes sociais, responsáveis por levar drogas e armas às favelas e periferias brasileiras e açambarcar a maior parte desse lucrativo comércio transnacional (Zaluar, 2004a).

Os persistentes estereótipos que culpabilizam os pobres pela violência vivida nas cidades brasileiras atrasa a formulação de políticas de segurança pública eficazes. Simultaneamente, legitima uma desigualdade (de justiça) social que enche as cadeias de pequenos e médios traficantes de drogas – habitantes das favelas e periferias urbanas –, deixando impune os verdadeiros “barões da droga”. Para Zaluar, torna-se urgente uma postura epistemológica que rompa com dois extremos do espectro ideológico dos discursos de senso comum. O primeiro, mais conservador, transforma os territórios associados à pobreza numa “fábrica de criminosos

59 A pesquisadora refere, também, que em meados de 1980 houve uma grande redução dos homicídios nos EUA,

período que coincide com cortes volumosos nas verbas destinadas às políticas sociais e de combate à pobreza durante o governo Reagan. Não que a diminuição da pobreza e da desigualdade social não ajude a criar uma sociedade mais pacífica, apenas que é preciso levar em consideração outras condicionantes na análise sobre a violência como a maior ou menor facilidade de obtenção de armas de fogo, o modo como atua o tráfico de drogas, a corrupção das forças de segurança pública, o funcionamento da Justiça, etc. (Zaluar, 1996).

a encarcerar” (Zaluar, 2009:569). Na outra extremidade estariam os discursos “progressistas” que veem os delinquentes como vítimas passivas de um sistema imoral e injusto e o combate à pobreza como o único meio de pôr fim à criminalidade. Ambas as perspetivas cristalizariam o estatuto do criminoso na figura do jovem pobre e habitante de favela, presumível traficante que deve ser alvo da repressão policial ou de programas sociais que o “resgate” da vida do crime.

Também Gilberto Velho (1996) referiu que a pobreza e a desigualdade social são elementos