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Capítulo 4. Do Rio de Janeiro à Maré Críticas à “cidade partida”

4.1 A insistência no mito favela

Definida como um problema praticamente à “nascença”, a favela é parte integrante do processo de urbanização do Brasil. As primeiras favelas de que se têm registo surgiram no final do século XIX na antiga capital federal (Rio de Janeiro), um tipo de moradia que se multiplicou nas décadas seguintes, dada a ausência de políticas habitacionais voltadas para as camadas populares125. Batizada como a primeira favela carioca126, o morro da Favella (atual

morro da Providência) foi responsável por dar visibilidade a este novo tipo de ocupação habitacional popular, tendo generalizado o termo para outros conglomerados de moradias

125 Não obstante a grave crise habitacional que o Rio de Janeiro atravessava, devido a um forte crescimento

populacional no início do século XX, a primeira iniciativa efetiva de construção de moradias populares só surgiu na década de 1940 com a construção dos Parques Proletários (Leeds e Leeds, 1978).

126 Convencionou-se na literatura ser o morro da Favella (1890) a primeira favela carioca, embora já houvesse

similares127. Localizado nas traseiras da Central do Brasil, ganhou notoriedade por ter sido

ocupado inicialmente por soldados da guerra de Canudos com o objetivo de pressionar o Ministério da Guerra a pagar os seus soldos em atraso (Valladares, 2008).

Durante o século XX, em especial na sua segunda metade, milhões de pessoas migraram do interior para as cidades – especialmente do Nordeste para o Sudeste – para fugir da fome e das más condições de vida. Em cerca de 40 anos, o Brasil tornar-se-ia um país urbano, invertendo a relação urbano / rural, naquele que foi um dos maiores movimentos populacionais da história da humanidade (Velho, 2008:11). Se em 1940 os moradores das cidades eram aproximadamente 30% do total do país, esta percentagem cresceu para 68% em 1980, segundo os Censos do IBGE. Em 2010, a taxa de urbanização era já de 84,4%. Esta intensa urbanização produziu um crescimento caótico das cidades, provocando a explosão de favelas e o agigantar das periferias urbanas. Hoje, o Rio de Janeiro tem mais de seis milhões de habitantes128 (11.711.233 milhões de habitantes na área metropolitana), dos quais

aproximadamente 23% vivem numa das suas 763 favelas129 (Cavallieri e Vial, 2012).

Na figura 4 é possível visualizar a distribuição das favelas na cidade do Rio de Janeiro (em manchas vermelhas), assim como identificar as favelas da Maré, cujos limites, por mim acrescentados, estão em amarelo.

127 Há duas hipóteses para explicar a origem do nome “favela”. A primeira refere uma planta do mesmo nome

muito comum tanto na vegetação que cobria o município baiano de Monte Santo (palco da guerra de Canudos), como no morro da Favella; a segunda hipótese é a existência de um morro da Favella nesse campo de batalha, cuja conquista pelas tropas do exército representou uma reviravolta decisiva na guerra de Canudos (Valladares, 2008). A Guerra de Canudos foi o confronto entre o exército brasileiro e integrantes de um movimento popular de carácter religioso, liderado pelo carismático António Conselheiro, ocorrido nos anos de 1896-97 no sertão baiano.

128 São quinze as cidades brasileiras com mais de um milhão de habitantes. O Rio de Janeiro é a segunda mais

populosa do país, atrás apenas de São Paulo. Para ver a lista das maiores cidades e áreas metropolitanas consultar: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2010/12/confira-o-ranking-das-maiores-regioes-metropolitanas.html

129 O total de 763 favelas na cidade do Rio de Janeiro foi avançado pelo IBGE (2011) num estudo sobre os

aglomerados subnormais baseado no Censo Demográfico 2010. No entanto, este número é apenas uma estimativa, pois está dependente da definição de favela utilizada.

A premissa de que más condições ecológicas favoreceriam comportamentos não civilizados e marginais pautou grande parte dos discursos mediáticos e das políticas habitacionais. Recorreu-se às teorias psicologizantes e ao essencialismo cultural para rotular certos estilos de vida e práticas culturais como desviantes, transformando-se a favela no lugar por excelência do “outro” na cidade130. Distintos dos residentes de territórios mais abastados,

portadores de uma identidade urbana civilizada, os habitantes das favelas passaram a ser representados como pré-cidadãos, almas carentes de uma “pedagogia civilizatória” que os preparasse para viver em sociedade (Burgos, 2006:29). Tal perspetiva justificou múltiplas ações de controlo social e reeducação por parte do Estado, cujo alto grau de autoritarismo e de violência fez gerar, por vezes, a resistência organizada da população.

130 Alvo de campanhas higienistas, como a de 1907, sob a direção do médico sanitarista Oswaldo Cruz, o Morro

da Favella começou a ser representado pelos jornais da época como um novo “mal” a ser combatido, a antítese de um modo de vida urbano (Valladares, 2008). Em meados dos anos 1920, aproximadamente 100 mil pessoas habitavam as favelas no Rio de Janeiro, o que correspondia a cerca de 9% da população total. Foi nessa década que ocorreu a primeira grande campanha contra a favela, período em que esse fenómeno habitacional se expandiu para o conjunto da cidade. O seu principal dinamizador foi o médico e jornalista Augusto de Mattos Pimenta, que a apresentava como “lepra da esthetica”, um problema de saúde pública (Silva e Barbosa, 2005).

Figura 4: Mapa da Cidade do Rio de Janeiro – Uso do Solo (2011). Fonte: Instituto Pereira Passos

Os preconceitos que sustentam a estereotipia das favelas foram construídos em torno de discursos que as caracterizavam como problema social, moral ou de saúde pública, legitimando as tentativas do Estado para erradicá-las. No entanto, as políticas remocionistas revelaram-se um fracasso, pois o efeito conseguido foi diametralmente oposto ao esperado131

(Valladares, 1978). As tentativas de eliminação das favelas via decreto ou por políticas de realojamento não conseguiram impedir a sua afirmação na cidade. Definitivamente, as favelas venceram. Conquistaram a legitimidade de existir ao alterar a legislação (que previa a sua remoção132), passaram a constar nos mapas da cidade, e hoje o Rio de Janeiro não pode ser

131 No período em que esta orientação foi levada a cabo mais intensamente (1962-73) – quando quase 140 mil

pessoas foram removidas e transferidas para conjuntos habitacionais (Silva e Barbosa, 2005) –, o crescimento das favelas e do número de seus moradores não cessou. Pelo contrário, efeitos não previstos do realojamento alimentaram esse crescimento. Como observou Lícia Valladares (1978), o sonho da casa própria atraiu novos moradores para a favela na esperança de poderem ter acesso às unidades habitacionais. E muitos dos removidos retornaram às favelas após venderem as suas casas nos conjuntos habitacionais devido à má qualidade das construções, os insuficientes equipamentos públicos, a distância do local de trabalho e a impossibilidade de arcar com as prestações.

132 A partir de 1992, a favela carioca passa ser reconhecida pelos órgãos oficiais como local legítimo de

residência e surgem propostas concretas para a sua oficialização. No artigo 44 do Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de Janeiro consagra-se a “não remoção das favelas e a inserção das favelas e loteamentos irregulares no planejamento da cidade com vista à sua transformação em bairros ou integração com os bairros em que se situam” (CEASM, 2003).

Figura 5: Oswaldo Cruz limpando a imundice do Morro da Favella. Fonte: Oswaldo Cruz Monumenta Histórica, tomo 1, CLXXXVIII

pensado sem referenciar algumas das suas mais famosas favelas133.

As favelas são um património do Rio de Janeiro e deveriam ser vistas assim. (…) É só você pensar o que seria do Rio de Janeiro se não tivesse o Cartola [da Mangueira], sem o Bezerra da Silva [morro do Cantagalo], sem o Romário, lá do Jacarezinho. A favela é sempre vista como um problema, porra nenhuma. Se os caras começarem a olhar a favela com um outro olhar, e começarem a entender que esses caras são foda, a ponto de construir um local como esse, que é funcional, mesmo com todos os problemas. Ela tem comércio, ela tem vida, ela tem lazer, e com quase nenhum investimento público. Favela é isso: é essa riqueza de diversidade, cultural, social, é um grande património dessa cidade. O Rio de Janeiro não seria o Rio de Janeiro sem as favelas. O povo do Rio de Janeiro não seria conhecido mundialmente como um povo alegre, sorridente, e que consegue superar as dificuldades se não fossem as favelas. Tenho certeza.

[Marcelo, 34 anos. Entrevista, 12 de Janeiro de 2010]

A maior parte das pesquisas académicas sobre as favelas alimenta perceções obsoletas, não levando em conta mais de um século de história e transformações. Os três dogmas que Lícia Valladares (2008) assinalou – ausência, carência e homogeneidade – mantêm-se mais vivos do que nunca na literatura sobre esses territórios134. As transformações verificadas em

algumas favelas do Rio de Janeiro – urbanização, desenvolvimento de um rico comércio local, emergência de uma classe média baixa – não foram incorporadas no imaginário dos cariocas, persistindo uma ideia anacrónica e preconceituosa. Esta crise de representações não só cristalizou a imagem dos moradores de favelas como pobres incivilizados, mas também acabou por fomentar artificialismos duais e metáforas que favorecem conceções estigmatizantes. A designação “cidade partida” para descrever as desigualdades territoriais presentes na cidade, ou a polarização “asfalto – favela”, oferecem uma leitura da realidade pouco complexa da segregação carioca, em que a possibilidade de mistura, ambiguidades e trocas culturais entre indivíduos que ocupam hierarquias distintas na cidade seria quase

133 Como o Rio de Janeiro sediará o Mundial de Futebol de 2014 e as Olimpíadas de 2016, o atual governo do

Estado voltou a ter como parte integrante das suas políticas públicas a remoção de favelas. Sob a justificação de preparar a cidade para os futuros “megaeventos”, famílias estão a ser removidas de suas casas para dar lugar a equipamentos desportivos, vias expressas e projetos de requalificação de caráter duvidoso. O “apetite” voraz da especulação imobiliária está a incentivar remoções arbitrárias e pouco transparentes com o intuito de multiplicar as oportunidades de lucro. De acordo com o Comitê Popular Rio da Copa e das Olimpíadas (2012), cerca de 7.185 famílias (cerca de 0,5% do total da população da cidade) terão de deixar as suas casas (a grande maioria moradores de favelas e de outros bairros pobres) até 2016, um número ainda subestimado reconhecem os seus organizadores. Como alternativa, essas famílias receberam indemnizações reduzidas ou imóveis na Zona Oeste da cidade – justamente a área que apresenta os piores indicadores de infraestrutura, serviços, mobilidade e emprego –, uma política que visa ressituar o lugar dos pobres na cidade.

134 Segundo a autora há um consenso em torno de três características essenciais: i) ausência – um território

urbano destituído de serviços, equipamentos, leis e Estado; ii) carência – locus de pobreza criador de uma espécie de “cultura da favela” que condiciona o comportamento dos seus habitantes; iii) homogeneidade – um universo reduzido a uma categoria uniforme e pouco dinâmica (Valladares, 2008:150-151).

inexistente. O intercâmbio cultural entre grupos sociais de classes distintas no Rio de Janeiro sempre ocorreu, e os pobres (moradores ou não de favelas) nunca deixaram de circular pelas zonas ricas da cidade. Afinal, sempre foram eles que ocuparam os postos de trabalho do vigoroso comércio do Leblom, Ipanema ou Copacabana. O problema central não seria a falta de mobilidade dos moradores de favelas e dos subúrbios, mas a “engessada” posição social que eles ocupam no espaço urbano. Os pobres sempre tiveram dificuldade em romper com as “amarras simbólicas e materiais” que os mantêm presos a uma posição subalterna. Nas áreas ricas da cidade a sua presença é aceite enquanto porteiro de edifício, empregada doméstica, padeiro, pedreiro ou motorista. Representações que não os colocam numa posição de potência. De outro modo a sua presença é rejeitada e, por vezes, criminalizada, especialmente quando se trata de jovens negros. Todavia, em certos contextos lúdicos ou desportivos (a música e o futebol são alguns exemplos) as barreiras de classe e de “raça” tendem a ser subvertidas e, não raras vezes, são os negros das favelas os “donos do pedaço135”.

Embora os moradores da favela estejam em desvantagem na disputa simbólica pela significação dos territórios onde vivem, constantemente “alvejados” pelos juízos generalizadores e estereotipados dos meios de comunicação e de uma elite conservadora, podemos ter algum otimismo nesta matéria. A abertura democrática brasileira criou novas possibilidades de os seus moradores se afirmarem na cidade. Não só permitiu que se iniciasse um processo de urbanização nas favelas, como abriu caminho para que organizações (estatais e privadas) pudessem atuar de forma mais eficaz, ampliando serviços e oportunidades para os seus moradores. Na Maré atuam algumas das mais importantes ONGs da cidade, entre as quais o Museu da Maré (ligado ao Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré – CEASM), com uma exposição permanente que narra a história do bairro e dos seus moradores, através de fotografias e objetos doados. Resgatar a história da Maré, com as suas lutas e transformações, incita os moradores a refletir sobre o território onde vivem, aprofundando a compreensão sobre si próprios e o seu lugar no mundo. Esta questão é de particular relevância dado ser comum as populações das classes populares serem apresentadas como destituídas de

135 Hermano Vianna em sua pesquisa sobre o processo de “invenção” do samba (e a sua incorporação como

música nacional) enfatizou o grande número de grupos sociais envolvidos – negros, ciganos, compositores eruditos, ricos e pobres –, uma heterogeneidade cultural que não pretende minimizar o papel decisivo dos afro- brasileiros. Segundo o autor, a existência de “mediadores transculturais” foi importantíssimo para que alguns membros da elite brasileira e das classes populares criassem laços entre si em torno desse género musical (2004:122).

passado, presentificadas na luta pela sobrevivência. Como denuncia Marcos Faustini, superintendente da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, em 2011:

O personagem popular nunca teve a memória como campo de ação. (...) Quem tem a memória como plano e ação dramática? A classe média que faz reminiscências, lembranças… O personagem popular nunca está no campo da memória. A memória é uma grande disputa do mundo contemporâneo: quem produz arquivos, quem produz memória, quem detém os arquivos. Daí a importância de trazer essa operação de memória para a periferia de maneira não folclórica, porque tudo o que vem da periferia também é ainda analisado pela academia como folião, folclórico. O folclore é algo que está no passado, é algo que está dado, consolidado, e o que está no passado não disputa o presente. [Marcos Faustini. Entrevista, 20 de setembro de

2011]

A Maré também está na Internet. Inúmeros sites de ONGs e outras instituições vinculam informações e notícias que tentam romper com uma visão de senso comum. As sociabilidades inovadoras criadas pelos jovens jogam um papel fundamental na ressignificação dos territórios favelados. A existência de b-boys, writters, funkeiros, skatistas, rappers, rockeiros, emos, adeptos de street basket e futebolistas, na Maré, fundamenta a heterogeneidade desses territórios e possibilita a ampliação das suas redes sociais a outros espaços e a indivíduos com percursos biográficos distintos. Estas dinâmicas contribuem para uma nova conceção do urbano, em que a favela não estaria a cercar a cidade civilizada, mas a integrá-la. Resistentes da cidade dual, fragmentada e bipartida, “refundam” o espaço público através de expressões artísticas, culturais e desportivas na tentativa de reivindicar o seu “direito à cidade” (Lefebvre, 2012).