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Favelas da Maré “A esperança não vem do mar, nem das antenas de TV.”

Capítulo 4. Do Rio de Janeiro à Maré Críticas à “cidade partida”

4.2 Favelas da Maré “A esperança não vem do mar, nem das antenas de TV.”

Alagados, Trenchtown, Favelas da Maré.

A esperança não vem do mar, nem das antenas de TV. A arte de viver da fé, só não se sabe fé em quê.

(Música Alagados, Paralamas do Sucesso)136

A Maré não é uma favela, mas um conjunto de 16 favelas criadas em diferentes momentos históricos e políticos, em que a heterogeneidade habitacional e arquitetónica é a marca dominante. Palco de múltiplas experiências habitacionais, coexistem no seu interior desde

136 Essa música trouxe à ribalta as duras condições de vida dos moradores das favelas da Maré, imortalizando as

unidades multifamiliares ou unifamilares construídas pelo Estado até habitações produzidas por ocupações espontâneas ou planeadas; da favela em morro (com seu emaranhado de ruas labirínticas) aos conjuntos habitacionais “favelizados” de ruas cartesianas em áreas planas. Localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro, à margem da baía de Guanabara, e comprimida por três importantes vias rápidas (Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela), a Maré é avistada por todos aqueles que chegam ao Aeroporto Internacional, estando a poucos minutos de autocarro do centro da cidade. Considerada um bairro desde 1994 pela prefeitura do Rio de Janeiro (Silva, 2009), é o maior “complexo137” de favelas da cidade, onde vivem mais de 130

mil pessoas (CEASM, 2003). Até ao início da década de 1980, a Maré reunia seis favelas: morro do Timbau, Baixa do Sapateiro (as suas primeiras construções datam da década de 1940), Parque Maré, Parque Rubens Vaz e Parque União (década de 1950) e Nova Holanda (década de 1960) (Vieira, 2002). A implantação do Projeto Rio, lançado em 1979 pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), alterou profundamente a paisagem do bairro. Não só dotou a Maré de infraestruturas básicas (água, eletricidade, instalações sanitárias, pavimentação) como erradicou as suas palafitas (barracas fincadas por pilares de madeira no fundo da baía de Guanabara). Estas foram substituídas por conjuntos habitacionais construídos na própria Maré, o que deu origem a novas localidades: Vila do João, Vila do Pinheiro, Conjunto Pinheiro e Conjunto Esperança. Com a criação da 30ª Região Administrativa da Maré em 1988, novas localidades foram anexadas: Conjunto Marcílio Dias, Parque Roquete Pinto e praia de Ramos. Estas três localidades, em virtude do isolamento físico em relação ao núcleo original da Maré (há uma via rápida a separá-las) e da sua história particular (não foram abrangidas pelo Projeto Rio), costumam estar menos conectadas ao conjunto do bairro. Posteriormente, o Estado constrói novos conjuntos habitacionais para instalar famílias removidas das áreas consideradas de risco, aproveitando os amplos espaços desocupados na Maré e a sua ótima acessibilidade: Conjunto Bento Ribeiro Dantas (1992), Nova Maré (1996) e Novo Pinheiro (2000), mais conhecido como Salsa e Merengue em alusão à telenovela de mesmo nome, dado o colorido das casas (Silva, 2009).

O território da Maré era originalmente uma região pantanosa de pouco interesse para a

137 Este termo, utilizado para designar conjuntos de favelas, é muito comum no linguajar da polícia e dos meios

de comunicação, tendo um forte teor estigmatizante por, originalmente, servir para denominar complexos penitenciários (Alvito, 2001:54). Por esta razão, utilizarei as categorias bairro da Maré, conjunto de favelas da Maré ou, simplesmente, Maré ao longo desta tese.

especulação imobiliária, mas apetecível para quem não tinha opções de moradia. Não foi à toa que os pobres da cidade, muitos dos quais oriundos de outros estados brasileiros, ergueram as suas casas justamente nessas áreas (morros e áreas alagadiças), onde os mecanismos públicos de repressão eram pouco atuantes. O início da ocupação efetiva da Maré está intimamente associado à construção da Avenida Brasil (década de 1940), via rápida que passa a ligar o centro da cidade aos seus subúrbios, criando as condições para o surgimento de um cinturão industrial nos seus arredores. A facilidade de acesso aos locais de trabalho e às áreas centrais da cidade tornou atraente esta região, e foi a partir do morro do Timbau que se iniciou o processo de ocupação138.

A paraibana Dona Orosina e o seu esposo foram, na década de 1940, os precursores da ocupação da Maré. Apaixonaram-se pelo local que abrigava a antiga praia de Inhaúma, hoje inexistente devido aos sucessivos aterros promovidos pelo Estado, e foram viver no morro do Timbau.

“Foi ali, aliás, como resultado de um passeio de domingo à praia de Inhaúma que os primeiros ocupantes se apaixonaram pelas características da localidade. Nada existia ali, exceto o matagal que, na linguagem do dia a dia significava que a região estava coberta por espessa vegetação. A praia estava coberta de pedaços de madeira trazidos pela maré, e que pareciam sugerir seu uso para alguma boa finalidade. E foi isto exatamente que uma mulher inteligente fez, ignorando os protestos de seu marido e começando a juntar pedaços de madeira, com o intuito de levantar um barraco naquele ponto deserto que parecia não ter interesse a ninguém. (…) outras pessoas vieram e, olhando para sua casa e para suas plantações, criaram coragem de se mudar para lá também.” (Santos in Vieira, 2002:12)

Descrita num tom quase heróico, a chegada de D. Orosina é apresentada por Carlos Nelson Ferreira dos Santos como um mito fundador da região, que simboliza a força de vontade das famílias da Maré para erguerem as suas casas, contrariando as forças da natureza e as dificuldades em permanecer no local. Já falecida, D. Orosina é uma personagem lendária para os habitantes da região, dando nome ao Arquivo (de fotografias, textos e mapas)

138 A área da Maré era habitada, inicialmente, por índios da tribo Tupinambás, quando cerca de 30 a 40 aldeias

margeavam pontos estratégicos da baía de Guanabara. Os nomes Timbau (nos mapas antigos aparecia Tybhau) e Inhaúma, em idioma tupi-gurani, são marcas dessa época, cujo significado é, respetivamente, “entre as águas” e o nome de uma ave preta que possui na cabeça um espículo córneo com 12 centímetros de altura. Por volta de 1570 foi construído um importante porto na praia de Inhaúma para escoar o açúcar e a aguardente produzidos pelos engenhos das adjacências. Há relatos de que a rainha Carlota Joaquina costumava vir de barco até o porto de Inhaúma, após ter adquirido, em 1819, um engenho de cana de açúcar em terras próximas, hoje o bairro Engenho da Rainha. Com a decadência dessas atividades o porto foi perdendo importância até desaparecer no final do século XIX, sobrando uma antiga colónia de pescadores, extinta após sucessivos aterros (Vieira, 2002).

existente no Museu da Maré.

Após a chegada das primeiras famílias, instalou-se um regimento do exército nas proximidades que passou a exercer uma certa fiscalização na região. Diziam ser donos do morro (chegaram a cobrar taxas de ocupação aos seus moradores) e impediam que houvesse melhoramentos na estrutura das habitações. Também o acesso às infraestruturas básicas era reprimido, o que evidenciava as pretensões governamentais daquela época de manter as favelas precárias e provisórias, passíveis de serem erradicadas a qualquer momento139. A

diminuição de terrenos disponíveis no morro do Timbau, tendência agravada pelo controlo dos militares, fez com que novos moradores passassem a ocupar as suas áreas contíguas, dando origem à Baixa do Sapateiro e, em seguida, ao Parque Maré. Com o fim da oferta de terrenos nas suas margens secas, o processo de expansão transferiu-se para as áreas pantanosas da baía de Guanabara através da construção de palafitas. A estrutura deste tipo de habitação ajustava-se ao ciclo das marés para não ser invadida pelas águas. Os seus alicerces eram formados por quatro estacas verticais de 15 metros fincadas na lama que sustentavam uma base horizontal (constituída de tábuas) a partir da qual as moradias podiam ser erguidas140. O processo de formação dessas barracas é melhor explicado pela arquiteta Paola

Jacques:

“Os barracos avançavam pelas águas da baía e eram construídos de duas formas distintas: na maioria das vezes, para garantir ao terreno uma área maior, a habitação era erguida na frente do 'terreno', o banheiro nos fundos, a vários metros de distância, e entre eles eram construídas pontes de madeira sobre as águas; os mais pobres, sem recursos para fazer o banheiro, erguiam seu barraco encostado ao vizinho, para poder utilizar a sua ponte.” (2002:36)

Até hoje, algumas das confusas ruelas das localidades da Baixa do Sapateiro e do Parque Maré seguem os traçados das pontes de madeira que conectavam as antigas palafitas. Os aterros eram feitos em regime de mutirão141 pelos moradores, de forma a contrariar os

movimentos da maré, utilizando-se carvão e diversos tipos de materiais de demolição. Os

139 Diante desse forte autoritarismo, os residentes do morro do Timbau criaram, em 1954, uma das primeiras

associações de moradores em favelas do Rio de Janeiro (Jacques, 2002).

140 Não é difícil perceber o porquê da escolha “Maré” para o nome do bairro. A centralidade da baía de

Guanabara (e dos ciclos das suas marés) na vida da população era total e influenciava desde o modo de edificação das moradias até as práticas quotidianas e laborais, existindo uma forte presença de pescadores em décadas anteriores (Vieira, 2002).

141 O mutirão é uma mobilização coletiva não remunerada para alcançar um determinado fim que beneficia todos.

Muito comum nas favelas cariocas, o regime de mutirão foi responsável pela implementação de importantes infraestruturas básicas nesses territórios.

moradores aproveitavam o facto de trabalharem na construção civil e estarem perto da Avenida Brasil para construírem aterros a partir do entulho que traziam ou era deixado pelos camiões na entrada do bairro (Vieira, 2002).

Figura 6: Ponte sobre as palafitas da Maré (década de 1960). Fonte: Arquivo Orosina Vieira do Museu da Maré

Figura 7: Vista aérea da Maré (década de 1960). Fonte: Arquivo Orosina Vieira do Museu da Maré

As péssimas condições de habitabilidade dessa época tornavam a vida dos moradores extremamente difícil. Moradores mordidos por ratos e crianças magoadas por caírem das pontes de madeira nas águas poluídas da baía de Guanabara eram casos frequentes. No princípio, a energia elétrica era raridade para os moradores dessas favelas, e esse serviço passou a ser obtido através de ligações clandestinas, o chamado “gato”. A rede de esgoto era inexistente ou implementada pelos próprios moradores em mutirão. A água era recolhida de pequenas bicas clandestinas na Avenida Brasil e trazida até às casas pelo “rola-rola”, um sistema criado pelos próprios moradores que consistia em armazenar a água em barris e latões envoltos em pneus, puxados por uma alça de ferro (Vieira, 2002). A repressão da Guarda Municipal era constante, e os moradores viviam sob a permanente ameaça de perderem as suas casas. Apesar das proibições, a população resistia e ia reconstruindo os barracos derrubados.

A insegurança aumentou ainda mais a partir de 1964, ano do golpe que derruba o governo eleito e implanta uma ditadura militar. Um dos traços que caracterizou o período da ditadura foi a opção pela extinção definitiva das favelas, quando o voto desses moradores deixou de ter relevância. Para implementar uma política única para as favelas e proceder a remoções em massa, o governo federal criou a CHISAM (Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio), para atuar em conjunto com a COHAB (Companhia de Habitação Popular). Ambas as instituições foram as grandes responsáveis pelo programa de remoção de favelas do Rio de Janeiro que, entre 1968 e 1975, realojou mais de 100 mil pessoas em conjuntos habitacionais, destruindo cerca de 60 favelas (Burgos, 2006).

As favelas da Maré surgiram através de diferentes processos de ocupação. O movimento de ocupação do Parque Rubens Vaz e Parque União deu-se em meados de 1950 e foi espontâneo, com famílias a aproveitar parte de um aterro feito nas margens da Avenida Brasil para construir as suas casas. A invasão do terreno realizou-se durante a noite para evitar que os ocupantes fossem despejados pela polícia. Para aumentar a altura do terreno e reduzir a hipótese de o mar invadir as suas casas, os novos moradores adicionaram mais uma camada de aterro. No Parque União a ocupação foi planeada pelo advogado Margarino Torres, ligado ao PCB (Partido Comunista Brasileiro), que demarcou os lotes e os arruamentos no final da década de 1950. As ruas largas e paralelas entre si, a pouca incidência de becos e vielas e o

maior tamanho dos lotes das casas indicam as intenções deste advogado, que desejava criar um bairro proletário com boas condições de habitabilidade. O nome Parque União advém das várias lutas que ocorreram contra as ameaças de remoção feitas pelo Estado (Vieira, 2002).

A Nova Holanda teve um processo de ocupação completamente distinto dos anteriores, pois foi projetada pelo poder público, na década de 1960, para ser um Centro de Habitação Provisório (CHP). Construída sobre um imenso aterro ao lado do Parque Maré – cuja dimensão, de tão grande, influenciou o próprio nome –, os seus moradores vieram de várias favelas removidas pelo Estado: Esqueleto, Morro do Querosene, Praia do Pinto e Morro da Formiga. Sob a alçada do recém-eleito governador Carlos Lacerda, intensificava-se a política remocionista, tendo sido criada a COHAB com recursos do BNH para pôr em prática um programa massivo de construção de conjuntos habitacionais e CHPs a serem ocupados por moradores de favelas (Perlman, 1977). Semelhante aos antigos Parques Proletários do tempo de Getúlio Vargas, o CHP da Nova Holanda servia como centro de triagem de “favelados”, removidos em massa das áreas ricas da cidade, para serem reeducados e aprenderem cuidados básicos de higiene e “hábitos mais civilizados e urbanos” (Jacques, 2002:40). Segundo esta ideologia, bastava remover a população das favelas para moradias adequadas de baixo custo que a sua incorporação na sociedade moderna e civilizada estaria garantida (Zaluar, 1985). A Fundação Leão XIII era responsável pelo bom uso das moradias, geria o processo de transferência de moradores de favelas para os CHPs, exercendo uma atitude intimidatória e controladora sobre os residentes. Sob a justificativa de serem habitações provisórias, as casas foram construídas em madeira, e as autoridades não permitiam que os seus moradores fizessem melhorias. No entanto, o que era para ser provisório tornou-se definitivo (foram poucas as famílias realojadas para conjuntos habitacionais), tendo ocorrido uma rápida deterioração das moradias.

Com a falência dessa política habitacional, no contexto de uma maior abertura política (que culminaria com o fim da ditadura militar), a partir do final da década de 1970, os moradores passaram a alterar a arquitetura e estrutura das suas casas142. Num primeiro

momento, as antigas casas de madeira foram substituídas por casas de alvenaria e, depois,

142 Como inicialmente o Estado proibia qualquer tipo de melhoria, algumas reformas foram feitas de forma

clandestina no interior das residências. Com o fim dessa proibição, essas remodelações apareceram “da noite para o dia”, porque os moradores limitaram-se a retirar as velhas madeiras que envolviam as casas (Vieira, 2002).

vieram os chamados “puxadinhos” (extensão das casas até aos limites da calçada) ou a construção de lajes, para fazê-las crescer verticalmente, de acordo com as condições financeiras do proprietário. Atualmente, as antigas casas do CHP já não existem, e a heterogeneidade de construções (em altura, arquitetura ou tamanho) tornou as diferenças entre a Nova Holanda e as favelas vizinhas quase impercetíveis, a não ser pelo traçado simétrico das suas ruas.

Foi a partir do Projeto Rio que se iniciou uma mudança no paradigma da política habitacional brasileira, quando o governo federal passou a optar pela urbanização das favelas. Desenvolvido na fase final da ditadura militar, esse projeto tinha a finalidade de sanear toda a orla da baía de Guanabara e previa a remoção de todo os moradores das favelas da Maré para conjuntos habitacionais. No entanto, a mobilização dos moradores contra o autoritarismo na definição e implantação do projeto impediu que as remoções fossem generalizadas, limitando- se às palafitas da região. Essa população foi transferida para conjuntos habitacionais (Vila do João, Vila do Pinheiro, Conjunto Pinheiro e Conjunto Esperança), construídos sobre um grande aterro na baía de Guanabara.

As transformações da Maré a partir do Projeto Rio foram gigantescas. Não só se generalizaram infraestruturas urbanas, como se conseguiu que centros de saúde, escolas, praças e áreas de lazer fossem construídos. Mas o não cumprimento de certas diretrizes acordadas (a regularização da propriedade de terrenos é uma delas), a exclusão da sua população na participação do projeto e o atraso na conclusão das obras impulsionaram a organização dos moradores. Alguns deles formaram grupos de oposição às direções tradicionais das associações de moradores, e formou-se a Comissão de Defesa das Favelas da Maré (CODEFAM). Essas organizações tiveram um papel fundamental como veículo de pressão sobre os organismos públicos para que as promessas fossem cumpridas.