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Breve evolução do desenho de materiais arqueológicos

No documento O desenho como substituto do objecto (páginas 56-63)

Das origens do Desenho à descrição cientifica na Arqueologia

2. Da arte à ciência: percurso de finalidades do desenho até ao séc

3.3. Breve evolução do desenho de materiais arqueológicos

O desenho de objectos arqueológicos, como interesse arqueológico, só terá surgido por volta do renascimento, porém o desenho de objectos sempre existiu. O seu percurso não manifesta rupturas repentinas mas altera-se lentamente e de forma distinta nos vários locais e tempos. Contudo podemos considerar seis estados diferenciados de evolução global:

1- Os primeiros desenhos de objectos aparecem sobretudo na arte parietal pré- histórica. As representações são reduzidas ao essencial de acordo com um esquematismo simbólico. Figuram particularmente armas, possivelmente desenhadas pelos ‘próprios fabricantes’, pelo intermédio de linhas gravadas ou pintadas. “Beaucoup d’animaux dês figurations parietales sónt percé d’arms dans lequeles nous croyons distinguer javelots, sagaies, fléches, que ses traits soient empennés ou non. » (Dauvois, 1976, p. 15). Subsiste no entanto a possibilidade de as armas serem traçadas posteriormente (num espaço de tempo relativo) havendo a certeza de que em alguns casos o traço pintado foi recuperado por um gravado e vice-versa.

2- Um momento distinto será aquele que se compreende entre as civilizações antigas e o fim da idade média.

É particularmente evidente nas representações egípcias o modo como a figuração do objecto determina relações icónicas com o poder e simbolismo religioso. Ele instala, como legado ou documento do passado, significados e valores de várias ordens.

Contudo o desenho até á idade média, salvo excepções (por exemplo os desenhos da dinastia Song), no âmbito do interesse por objectos do passado, insere o objecto em contextos de narrativa, historias ou mitos.

3- Um corpo distinto de imagens produz-se a partir do pré -renascimento, com o início do antiquarismo. O registo acontece de forma interessada mas amadora, como quem tira fotografias, constituindo uma ilustração da curiosidade sobre a relíquia. No entanto o advento do desenho como instrumento de observação, em interacção com as ciências desde o Renascimento, transfere para o desenho arqueológico uma capacidade de rigor de observação inédita, sendo que já alguns desenhos manifestam uma tendência para a anulação do plano de fundo, estratégia correntemente usada a partir do séc. XVII.

4- A partir dos finais do século XVII as alterações do desenho arqueológico foram de algum modo paralelas e influenciadas pelos desenvolvimentos tecnológicos na área da reprodução, assinaladamente na gravura.

Um dos pioneiros na ilustração sistemática de objectos arqueológicos foi James Douglas, que publicou em várias partes a Nenia Britannica a partir de 1786.52 Douglas gravava as próprias matrizes para imprimir as ilustrações usando “aquatint”, técnica desenvolvida na Inglaterra uns trinta anos antes. As técnicas de gravação em metal viriam a ser melhoradas por volta do início do séc. XIX, a par com um revivalismo da gravação em madeira, agora também melhorada, ao mesmo tempo que a litografia começa a ser utilizada. Em meados do séc. XIX a xilogravura e a litografia seriam os métodos mais populares para reproduzir ilustrações de objectos arqueológicos.

Embora as ilustrações fossem excelentes, dando detalhes pormenorizados similares aos da qualidade fotográfica dos nossos dias, as imagens mantinham-se associadas a esse carácter realista da imagem.

No entanto, um trabalho do desenhador Delaporte constitui a excepção. Faz aparecer em 1837, num artigo particularmente avançado para o seu tempo (Notice sur

quelques instruments litiques , orientado por Casimir Picard), um desenho (litografia)

que sublinha os elementos tecnológicos do objecto.53

Notice sur quelques instruments litiques, accompagné dune lithographie de

Delaport (...) Ce document, le premier semble-t-il, où un auteur ait tenté d’analyser des

52

Adkins (1989, p. 4)

53

Segundo Dauvois, (1976, p. 17) Delaport terá tido a orientação de Casimir Picard na produção desse desenho.

pièces par ailleurs fort abondamment décrites dans le texte, est d’une importance capitale : il renferme dejá tout le souci actuel de traduire les résultats d’analyse. Son exemple ne devait être repris que bien plus tard. » (Dauvois, 1976, p. 17)

O trabalho de Pit Rivers constitui também um avanço em relação aos seus contemporâneos. Na segunda metade do século XIX, Rivers, desenvolveu um trabalho pioneiro no âmbito da tipologia de modo que as suas ilustrações respondem melhor às necessidades actuais de comunicação que às necessidades de comunicação da sua actualidade.54

5 – Ainda no séc. XIX, o desenho de arqueologia não está alheio à forte evolução que se dá no grafismo técnico de Engenharia, contudo a suas estratégias mantiveram-se distintas. As ilustrações de finais do século sofrem algum avanço em relação às do início, no entanto, na sua generalidade, o rigor de então não se enquadra com as necessidades actuais:

“- Os desenhos limitavam-se a representar uma vista frontal, esquecendo outras tão necessárias para uma descrição ideal dos objectos. (…)

- Era por vezes usada a cor e o excesso de texturas que perturbavam o contraste necessário para um melhor entendimento da forma e decoração (…)

- Em muitos casos, havia total ausência de aspectos normativos, que facilitariam a comunicação entre o desenhador e o leitor (…) por exemplo, escala, titulo, legenda, o uso de secções, traço de ligação e continuidade, entre outros.

- No caso das cerâmicas não se fazia a sua orientação e cálculos de diâmetro, inviabilizando reconstituições morfológicas.

- Na pedra lascada representavam a pontilhado aquilo que hoje seria feito com linhas curvas representativas da fractura concoidal típica desse tipo de artefactos.

- Os metais que poderiam muitas vezes ter texturas (…) eram representados de forma simples, muitas vezes sem sombra.

- (…) a própria construção das pranchas era deficiente na medida em não obedecia a critérios tipológicos mais específicos (ex. ossos juntamente com artefactos de osso).” (Lemos, 2006, p. 8)

Contudo, como temos vindo a constatar, não será difícil encontrar excepções. Decerto descobrimos desenhos oitocentistas em que nem todos estes aspectos se

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verificam. Como já referimos, o desenho de artefactos arqueológicos estava fortemente vinculado a uma vertente realista, a sua função era mais ilustrativa e menos explícita de uma análise, tendo o texto a competência de expor grande parte dos aspectos necessários ao seu estudo (as medidas, o material e dados interpretativos como por exemplo o contexto morfológico de fragmentos cerâmicos). Vejamos ainda que as características apontadas nos desenhos do séc. XIX não se tratam de estratégias convencionadas sendo que o rigor dos desenhos variava conforme o rigor dos estudos e as orientações fornecidas pelos arqueólogos de então. De igual modo tal sucede, ainda, grosso modo, na primeira metade do séc. XX, ao mesmo tempo que a fotografia ganha bastante relevância como imagem documental.

6- As alterações no Desenho serão progressivas até à segunda metade do séc. XX, altura em que o processualismo, a par com incrementos tecnológicos e comunicativos, permitiram ao Desenho Arqueológico um desenvolvimento rápido, com profundas alterações técnicas e teóricas, cuja configuração e estratégias se referiram brevemente, e se apresentam detalhadamente na Parte II deste estudo.

Os mais recentes aspectos da globalização tendem ainda a envolver a comunidade arqueológica mundial na importante tarefa da normalização do Desenho, ao mesmo tempo que o potencial tecnológico da actualidade nos apresenta um conjunto de novas possibilidades de representação do objecto. Por outro lado, a criação de novos tipos de imagem na Arqueologia está dependente das orientações estabelecidas pelo pensamento arqueológico, ou pelo entendimento desta ciência e dos seus objectivos, de cujos processos e estratégias não pode ser dissociada.

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No documento O desenho como substituto do objecto (páginas 56-63)