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Valorização do desenho documental nos séculos XVII e X

No documento O desenho como substituto do objecto (páginas 37-41)

Das origens do Desenho à descrição cientifica na Arqueologia

2. Da arte à ciência: percurso de finalidades do desenho até ao séc

2.4. Valorização do desenho documental nos séculos XVII e X

“As ilustrações dos tratados medievais sobre plantas medicinais cumpriam, na sua essência

a função da ilustração científica, embora ainda de forma rudimentar. Contudo foram os trabalhos de Leonardo Da Vinci, e em especial de Durer no século XVI, que marcaram o inicio da era da ilustração cientifica tal como a entendemos hoje.” (Salgado, 2005, p. 1)

As origens da ciência moderna remontam ao Renascimento, altura em que a necessidade de descoberta a todos os níveis sofre uma catalisação decisiva. A capacidade do Desenho em apresentar soluções resolutas para problemas de ordem documental estabelece na alta renascença a visualização integral do saber graficamente transmissível.

“ Essa valorização da imagem didáctica e documental, em progressão desde o Renascimento, e com óbvias interacções com os novos horizontes introduzidos pela imprensa e pelos meios de reprodução gráfica, atingiu uma extensão relevante no quadro do iluminismo seiscentista.” (Faria, 2001, p. 31)

No início do séc. XVII Cassiano dal Pozzo estabelecia uma colecção de desenhos que em muito diferia dos seus contemporâneos. Ele não estava interessado nos desenhos dos grandes mestres cujas qualidades intrínsecas os validavam como obras de arte. Apenas se interessava e comissionava cópias, reproduções, desenhos de coisas cujos temas seriam esculturas, artefactos arqueológicos e achados, pinturas, mosaicos romanos ou medievais, e elementos do campo do naturalismo como animais, plantas, minerais e fenómenos naturais de geral interesse científico.

A sua perseguição erudita impelia-o a juntar documentação gráfica que pudesse ser usada como ferramenta para as suas investigações, especialmente na área da arqueologia e ciências naturais, sem excluir outros assuntos.

Cassiano constitui um agrupamento de desenhos, de uma intenção megalómana e heterotópica, em vários volumes a que chamou de Museo Cartaceo24 (Museu de Papel).

Graças ás suas indagações metódicas lançou o seu grande interesse pelo antiquarismo na direcção daquilo que viria ser a arqueologia. Contratou uma equipa de desenhadores para levar a cabo uma vasta documentação gráfica de monumentos antigos e artefactos na altura visíveis nos arredores de Roma. Seria para ele um ponto de partida para uma base científica segura sobre a qual poderia formular uma hipótese de reconstrução histórica da civilização clássica.25

Cassiano tinha um zelo enciclopédico pelo saber e tentava acumula-lo à sua volta, ao seu alcance. Para si o desenho era de algum modo um proceder de estudo, que permitia articular e reter. Mais do que um testemunho a sua colecção era um substituto, prático e condensado, uma plataforma de dados que lhe proporcionava o acesso às coisas do seu interesse e cuja informação se constituída por imagens com características objectivas.

O extrapolar do Desenho da área artística ou com funções assumidamente plásticas acompanhou o espírito científico empenhado no entendimento do mundo, da natureza e seus fenómenos. Isto permitiu, em função de participações colectivas, que os

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AA.VV (1989) Cassiano dal Pozzo’s Paper Museum (volume II) / AA.VV. (1989) Il Museuo Cartaceo Di Cassiano Dal Pozzo – Cassiano naturalista; (volume I)

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Fusconi (1992, p. 62)

Fig. 11 – Ancient ionic capitals; Anónimo italiano (colecção Cassiano Dal Pozzo)

Fig. 12 –Selection of corals, fossils, minerals and polished stones (sem referência ao autor) (colecção Cassiano Dal Pozzo)

desenhadores se embrenhassem no domínio das ciências exactas que impuseram ao artista um progressivo domínio técnico da representação “cuja função predominante consistia em comunicar sem corpos culturais estranhos a realidade sensorialmente tangível.” (Faria, 2001, p. 31)

Estabelecia-se a no século XVII um novo campo de imagens que significa o início de uma época de princípios enciclopedistas, consagradora do Desenho como fonte de desenvolvimento e progresso.

A partir do século XVIII com os trabalhos das expedições a outros continentes, a ilustração zoológica e botânica assumiram papel preponderante na universalidade, acompanhando a época de entrada em vigor da classificação de Lineu (todos os animais e plantas com dois nomes em latim). O Desenho sublinha aqui o seu carácter utilitário e credibilizador do discurso científico numa altura em que os relatos e descrições acerca das terras distantes se podiam entender como interpretações subjectivas e por vezes fantasiadas.

Um caso que assinala a nível mundial um ponto alto desta actividade será o de José Joaquim Freire (1760-1847)26, desenhador topógrafo e de história natural, que integra um grupo de desenhadores numa série de incursões pelo território brasileiro, armazenando informação visual complementar às memórias escritas pelo cientista que liderava a expedição e que coordenava a sua acção.

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Ver Faria (2001)

Fig. 14 – Espécie Piscícola do Rio Negro; José Joaquim Freire (espólio de viagem ao Pará – 1783 – 1792)

Fig. 13 – Por menor de uma pintura de Manoel Tavares da Fonseca onde se identifica um desenhador de História Natural em acção

Nos registos executados prevalecia a função informativa embora ainda não estivesse totalmente ausente a preocupação estética. Mas a orientação dada era de produzir um registo rigoroso e exacto do que lhes era dado a observar; desde plantas, animais e mesmo numa vertente antropológica os nativos e as suas aldeias, etc: “tudo o que fosse estranho (…) tudo o que não pudesse ser descrito (…) ou ainda tudo o que não pudesse ser transportado”.27 A ilustração científica prosseguiu assim orientada na busca e documentação do mundo ainda debilmente conhecido.

O Desenho ganhava nestas áreas características específicas, por vezes orientadas para o mundo da edição, com vista a responder a interesses científicos: representando os espécimes isolados do seu habitat natural num close-up a que por vezes se acrescentavam planos de corte e pormenores à escala real ou ampliados; ou no caso da ilustração botânica onde havia a preocupação de reconstruir na mesma imagem o ciclo da espécie; surgiu ainda em alguns casos a necessidade de representar certas associações de animais e insectos a determinadas plantas; os desenhos eram muitas vezes acompanhados de notas explicativas manuscritas pelo próprio naturalista coordenador da recolha.

O tipo de documentação estabelecida terá que ser entendido em função de trabalho colectivo, dados os diversos tipos de informação recolhida, teórica e prática: selecção de objectos, respectiva classificação, desenho, localização geográfica, etc. O peso desse espírito de colaboração seria absolutamente decisivo para o trabalho documental final não só no que diz respeito à divisão de tarefas mas principalmente no que diz respeito ao entendimento e registo de determinado ‘objecto’: “ Os olhos e a mão de White para registar cada detalhe, o intelecto de Harriot para identificar, descrever e ordenar as coisas descobertas” (Hulton)28

O Desenho seria entendido para lá do seu poder de testemunho e além de um campo de representação cuja leitura dispensa intermediários.

Não obstante esse carácter didáctico ou ilustrativo, o Desenho insere-se numa área de rigor científico e técnico constituindo não só uma forma de ilustração mas também de informação. O uso do desenho estabelecia-se com base no reconhecimento de que o texto seria insatisfatório na exposição de determinados aspectos do ‘objecto’ em análise. Por outro lado, como veremos, o desenvolvimento de imagens documentais não é por si só satisfatório ou completo funcionando em complementaridade com a escrita, e é neste

27

Ibidem, (p. 82)

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entendimento entre imagem e texto que a ciência procederá na representação do ‘objecto’ e articulará um discurso.

“ He verdade, diz M. Adanson, que ha muitas coizas nos entes organicos, que não se podem exprimir nas Estampas, e são so próprias das descripções; mas não se pode duvidar tãobem que há algumas nos dictos entes, e hum não sei quê nas suas physionomias, que so he privativo à pintura ou desenho de exprimir e de que nenhuma descripção pode dar noções claras. He por esta razão que será sempre necessário reunir as figuras ás descripções, e as descripções às figuras, como servindo de humas às outras de hum recíproco socorro.” (Félix Avelar Brotero, Compêndio de Botânica, Paris 1788)29

Como temos vindo a expor, o desenho cientifico parte da necessidade de um ‘corpo’ de imagens, como plataforma de estudo e testemunho, cuja articulação é instalada por um pensamento, abrindo-o e credibilizando-o.

O desenho com fins científicos será sujeito a um progressivo nivelamento de códigos de comunicação, dado que a utilização científica de um material procederá no conhecimento das características próprias de cada objecto e depois a sua confrontação. No decorrer desse desenvolvimento a articulação das imagens passa a efectuar-se de um modo próprio: pelo estabelecer de tipologias e dos conceitos que viabilizam a sua comunicação.

No documento O desenho como substituto do objecto (páginas 37-41)