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Desenho enquanto entidade organizativa de uma relação própria

No documento O desenho como substituto do objecto (páginas 166-171)

O desenho como reflexo de um ‘modo de ver’ e comunicar

1. Entender o desenho do objecto num sentido alargado

1.3. Desenho enquanto entidade organizativa de uma relação própria

Ao longo do tempo o Homem forneceu-se de instrumentos que lhe permitiram dominar a natureza. De igual modo procurou manipulá-la, circunscreve-la, substitui-la através de imagens. No seu entendimento do mundo o Homem desenvolveu processos sistematizados, ferramentas teóricas e instrumentos práticos de registo, que lhe permitissem tal domínio. O desenho, tal como o entendemos neste estudo, surge como manifestação desta procura, onde ele instala um poder para recriar ou reorganizar o que nos rodeia e participar num possível entendimento do mundo.

Partindo do princípio que a produção de imagens afere constantemente o conhecimento que temos da realidade, estamos a interiorizar que existe um constante fluxo de presenças e de consciências diferentes do objecto, tanto ao longo da vida de cada um de nós como ao longo da história da humanidade. O importante papel da representação reside numa fixação da relação homem/objecto, no sentido de criar uma disposição de figuras onde se encontram e testam estruturas, se definem identidades e significados, mas essencialmente onde interagimos e nos posicionamos física e mentalmente em relação ao que nos envolve.

O objecto que o Homem vê e procura conhecer, representando, transforma-se em figura, contendo um significado, “ (...) es dicir, que se articula con otras figuras, delimitando en su enfrentar, destinguirse, parecerse, etc.” (Bozal, 1987, p. 21)

As imagens com funções taxonómicas da ciência são uma articulação muito característica do mundo fáctico em figuras, ou seja, a sua representação125

. Estes desenhos constituem figuras pensadas dentro de um conjunto de imagens de determinada área de conhecimento. Por exemplo, na Zoologia os desenhos de animais representam apenas as espécies: significa como na representação de um peixe apenas figurarem as características particulares da sua espécie, excluindo para isso todos os traços desviantes do indivíduo particular, transformando-o em indivíduo emblemático. Neste caso ser emblema significa encerrar em si, ou representar, um conjunto de características exemplares, os traços considerados pertinentes do ‘objecto’, que permitem distinguir de outras espécies ou variantes, no entendimento da Zoologia. Com

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efeito, constitui-se como generalização, que permite identificar e comunicar determinado animal enquanto conceito126.

“ O desenho com funções taxonómicas, realizado a partir de referentes da realidade e segundo determinações prévias – simultaneamente princípios concretos, de isomorfia ou semelhanças, e princípios conceptuais, que distinguem e designam a informação a observar – contêm, num certo sentido, mais do que o próprio referente, já que forma evidentes características que estão inseridas num conjunto aparentemente distinto.” (Vaz, 2001, p. 79)

Mas os desenhos da arqueologia divergem das ciências naturais, pelo facto de o artefacto ser o resultado de uma acção deliberada do Homem para cumprir uma função, encerrando em si uma existência prévia de ideias, pensamentos, significados, ainda não decifrados; não constitui portanto um objecto que de modo pacífico é ‘dado’ pela natureza. Os artefactos são a matéria da natureza sujeita a transformações que o homem deliberou com determinado objectivo. Os conteúdos conceptuais dessa transformação, estão incorporados na constituição material do objecto arqueológico e terão que ser evidenciados nas imagens que a arqueologia produz dele.

O desenho de objectos arqueológicos situa-se num sentido de representação que cria uma continuidade de figuras, no representar segundo predeterminações de observação e de registo, contudo os desenhos de materiais, enquanto registo de informação científica e completamente à parte de funções ilustrativas didácticas, não representam tipos.

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“ O conceito é, em princípio, o produto da abstracção e da generalização a partir das imagens ou dos objectos particulares.” (Legrand,. 1991, p.86)

No caso de fragmentos cerâmicos, existe a constante procura de os inserir num contexto morfológico para que se possa determinar o tipo a que pertence; contudo os dados representados estão vinculados à análise daquele fragmento específico.

Também no caso de vasos completos se procura enfatizar elementos tipológicos para que desse modo se articule com as ideias difundidas da cultura que representa, mas mesmo assim não constitui uma representação fruto de generalização: os dados que o constituem são representados com exactidão; não são objectos tipo constituídos a partir de uma média dos particulares. Vejamos que a representação do tipo, por exemplo, tipo

homem, implica uma média das estaturas de todos os homens e dos elementos que o

caracterizam. Dentro do tipo homem podemos ainda encontrar o tipo caucasiano, e dentro deste, o português, depois o lisboeta, o habitante do bairro alto, do prédio X, da casa Y; até aqui teremos que estabelecer médias para representar tipos, ou seja, uma generalização; já para representar o Sr. João, que vive com a sua família na casa Y, podemos então representar as suas características, como sejam as suas próprias medidas, etc. Não procedendo a médias estatísticas que nos permite encontrar um padrão, representamos sempre particulares.

As representações, do fragmento cerâmico e do vaso completo, estão condicionadas pelos dados do objecto particular: as medidas exactas do objecto exumado, incluindo regularmente traços desviantes como fracturas, defeitos e desgastes de uso. No material não cerâmico isto é também particularmente evidente; também não representam tipos, ainda que procurem esclarecer comportamentos típicos do material como por exemplo fracturas e retoques de fabrico, típicos, do material lítico. Representam uma captura de medidas exactas dos objectos particulares, incluindo os seus traços específicos com todo o rigor e importância.

Fig. 114 – Instrumento de sílex; Dauvois; Fanlac (1976) Fig. 113 – Vaso cerâmico Proto-histórico (ou Pré histórico); Madeira (2002)

Estávamos já consciencializados que desenho arqueológico difere da realidade visível do objecto, mas, agora verificamos que difere da sua generalização. “Lithic illustrations are drawings, but they do not represent types; instead, they capture data about particulars which are used in making empirical generalizations.” 127

Os desenhos correspondem portanto a uma visualização racionalizada que, embora contendo os dados concretos do particular, desenvolve uma explicação gráfica mais clara de certos conceitos, de elementos constituintes típicos do objecto, como sejam: forma oval e envasada, fractura concoidal, etc.

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Esta problemática merecerá uma discussão a par com o desenvolvimento do conceito de objectividade e credibilidade, discutidos mais à frente.

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2. Realidade, objectividade e credibilidade

No documento O desenho como substituto do objecto (páginas 166-171)