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Perspectiva e desenho como instrumentos de prefiguração

No documento O desenho como substituto do objecto (páginas 31-34)

Das origens do Desenho à descrição cientifica na Arqueologia

2. Da arte à ciência: percurso de finalidades do desenho até ao séc

2.2. Perspectiva e desenho como instrumentos de prefiguração

Em Itália os renascidos valores clássicos no humanismo racional do quattrocento, a par com alterações técnicas e sociais de variadas ordens, denunciam as representações apócrifas da idade média e atiram-nas para os confins da insipiência.

Leonardo da Vinci instala a experiência óptica contra a tradição formal: ele provoca a absorção do contorno na atmosfera, pela sombra e a sua fusão, pelo sfumato. Em Leonardo e Brunelleschi está latente uma busca, que se prolongará nos séculos vindouros, pela imagem fiel ao real visual – a mimésis.

Filippo Brunelleschi desenvolve a teoria e método da perspectiva linear como resposta à necessidade de um ‘engenho gráfico’ que sistematizasse15, que simulasse na

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superfície plana, a forma como os objectos se distorciam no espaço segundo a percepção visual. É deste modo que a articulação simbólica e hierárquica entre os corpos e a arquitectura das representações da idade média dão lugar a uma visão do acontecimento, articulada e convincente, como se de uma janela aberta para o mundo se tratasse, como diz Alberti. Mas embora a perspectiva seja, tal como Panofsky16 mostrou, um sistema matemático que resulta mais numa ilusão convincente do que na verdade óptica, ela serviu com eficácia as necessidades da época em que surgiu.

“Drawing in perspective poses a double-sided problem: one is the problem of drawing an accurate perspective of something that already exists, other is of something that exists only in imagination.” (Piedmon-Palladino, 2007, p. 63) Segundo Robin Evans17 será este ultimo desafio que distingue o arquitecto do artista tradicional “(…) architects must draw something that does not yet exist. They can not rely on observation.”

A perspectiva está ligada á aparência, mas falsa. Ela permite produzir imagens que reclamam semelhança com a percepção visual do espaço e dos corpos nele inseridos contudo não corresponde à verdade da percepção óptica.18 Enquanto sistema que pretende levar a cabo uma observação do real não pode significar mais do que ver

através de: não será mais do que uma articulação sistematizada e convencionada de

dados observados. Como produtora de um espaço imaginado ela é ilusão ou mesmo aparição. A perspectiva está associada ao imaginário19, ou à sua retenção, à prefiguração de um futuro a existir, também da utopia, apenas existente na ideia.

A partir do Renascimento o Desenho passa a encarar-se no âmbito de duas atitudes essenciais: o Desenho como instrumento de observação e o Desenho como instrumento de prefiguração.20 Estas duas atitudes elementares do Desenho serão absolutamente determinantes tanto no campo da arte como fora dele, até aos dias de hoje.

O Desenho como instrumento de observação, na arte italiana a partir do Renascimento, era entendido como base essencial de aprendizagem artística, levado a alta emulação no Maneirismo. O aspirante ou aprendiz teria de passar uma série de fazes de prática do Desenho de observação (o desenho do desenho do mestre, o desenho da estátua e o desenho do natural) até adquirir a competência de desenhar de

16

Ibidem

17

Citado por Piedmon-Palladino (2007, p. 63)

18

Panofsky (1989)

19

Silva (2002, anexo III)

20

“De uma maneira simples, podemos considerar que há essencialmente duas atitudes a desenhar: uma, que é de fora para dentro, vulgarmente chamada ‘desenho à vista’(que tende a associar-se mais a uma atitude analítica e de investigação da realidade), e outra maneira, que é de dentro para fora e a que podemos chamar desenho de imaginação.” (Rodrigues, 2002, p. 24)

imaginação;21 como Federico Zuccaro nos dá a ver num conjunto de desenhos realizados em homenagem a seu irmão Taddeo Zuccaro.

O Desenho como algo que torna possível uma imagem de coisa que apenas existe em pensamento aparece como o meio ideal que põe em evidência o processo criativo de uma obra de arte. Os diferentes estados de concepção – primo pensiero, abbozzo,

cartonne, – foram um processo comum à maior parte dos artistas que, para além de

outras vantagens inerentes ao aferir da ideia, permitia prestar esclarecimentos ao patrono sobre a futura obra. O desenho pode apresentar-se numa última fase (cartonne) como resultado da depuração (abbozzo) da ‘ideia primeira’ ou em bruto (primo

pensiero). Posto isto o desenho não pode ser observado como se tivéssemos perante

uma transcrição do pensamento (no sentido da escrita). Ele é ordenador e estruturador do pensamento e é, enquanto manifestação livre, ou á parte de qualquer convenção, uma formulação ou elaboração do pensamento no próprio momento em que se traduz numa imagem, manifestando certezas e incertezas, fluidez e hesitação, arrependimento e reserva. Nestes parâmetros devemos ainda considerar, o Desenho, além da entidade organizativa competente, como um lugar conceptual e formal capaz de estabilizar e formular a ideia nos limites da palavra.

Ao longo de cinco séculos, até Cezanne22 (e possivelmente ainda continua em muitos artistas), a actividade desenhativa permanecerá na sombra das produções

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É com base nessa consciência, de que o ensino do desenho facultava o ensino das artes, que se desencadeia mais tarde uma produção de manuais e tratados com ampla difusão pelo menos até ao século XIX.

artísticas. Vassalo das artes maiores, o Desenho serviu a Pintura, a Escultura e a Arquitectura, ficando estigmatizado como trabalho preparatório para qualquer coisa mais importante.

O desenho feito para executar mais tarde, nomeadamente na arquitectura, no design e na engenharia, incorpora aquilo a que hoje chamamos de projecto e que entendemos como sendo de grande utilidade em vária áreas para produzir seja o que for.

Já em 1571 Francisco de Holanda23 falava “De quanto serve o entendimento do Desenho da pintura no serviço de Deus (…) De quanto serve a ciência do desenho no serviço de El-Rei (…) De quanto pode servir o entendimento da pintura e Desenho no tempo da guerra (…)”. A profusa sucessão de “pode-o servir” e “ de quanto serve” ou “sirva-se do desenho para”, muito sublinha as múltiplas aplicações utilitárias previstas na altura, quer se trate de “ fazer a feição do cálix em perfeita proporção”, “na invenção de divisas”, “ornamentos e vestidos e roupas de festa” ou “ para fazer fortes as suas fortalezas”, etc.

A seu tempo o Desenho acaba por se difundir em outras áreas de produção pois evoca de maneira fixa conteúdos do pensamento a comunicar.

No documento O desenho como substituto do objecto (páginas 31-34)