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Breves apontamentos sobre a noção de jogo

3. O JOGO ESCOTEIRO EM CENAS

3.2. O Jogo Escoteiro

3.2.1 Breves apontamentos sobre a noção de jogo

Conforme vimos no primeiro capítulo, Baden-Powell formulou a pedagogia escoteira a partir dos valores que concebia como necessários para formação de cidadãos, tendo o jogo como metodologia central das práticas pedagógicas escoteiras. Nessa época, a educação já passava por reformulações para atender as necessidades da sociedade pós- revolução industrial, e um desses movimentos de reformulação da educação, conhecido hoje como escolanovismo ou educação renovada passou a reconhecer o jogo como uma importante ferramenta de aprendizagem, apontada a época como uma inovação educacional.

De acordo com Arce (2002), as ideias de Rousseau, Pestalozzi e Fröbel no século XIX influenciaram a utilização de atividades lúdicas nas pedagogias da época. O escotismo e sua pedagogia nascem nesse período, influenciado por essas ideias. Para Silva (2006) que analisa o uso dos jogos em sala de aula a partir das analises de Arce (2002),

Em quase todas as épocas, povos e contextos, a educação lúdica esteve presente. Historiadores, filósofos, lingüistas, antropólogos, psicólogos e educadores vêem os jogos como estimuladores da inteligência e da afetividade inter e intra-pessoal que

despertam o interesse, servindo como ferramenta ideal para aquisição e desenvolvimento da aprendizagem, de iniciação ao prazer estético, de fator de auto- estima e do processo de socialização. (SILVA, 2006, p.20)

Para Arce (2002) foi no século XX que os jogos passaram a ser utilizados com maior frequência na educação, sobretudo na educação escolar, de forma que o seu bom uso como material pedagógico trouxe contribuições significativas ao processo educativo. Silva (2006, p.41) aponta que “não é o jogo em si mesmo que contribui para esse fim, mas sua utilização como meio, como instrumento em um conjunto controlado por regras que lhe permite propiciar mecanismos essenciais ao desenvolvimento do educando”. Na sequência a autora ainda faz uma ressalva, que para o bom uso desses jogos “a formação acadêmica do educador deve estar vinculada a essa realidade, visando a uma melhor compreensão sobre a propriedade formativa dos jogos” (SILVA, 2006, p.41).

De acordo com a União dos Escoteiros do Brasil (UEB, 2014c, p.129) “A importância dos jogos no Escotismo é bem ilustrada pela definição dada por B-P, o fundador do Movimento: O Escotismo é um jogo para jovens”. Segundo o próprio Baden-Powell afirmou, a atração dos jovens ao escotismo estaria baseada “no princípio do jogo educativo, numa recreação que levava o rapaz à auto-educação” (BADEN-POWELL, 1986, p.53).

A literatura escoteira diz que “o jogo pode ser visto como uma atividade, um meio espontâneo de exploração de si mesmo, dos demais e do mundo. Jogar implica experimentar, provar até onde se pode chegar, aventurar, se esforçar, comemorar” (UEB, 2012, p.94).

Para entender como o escotismo faz uso dos jogos em sua pedagogia, apresento aqui breves apontamentos do entendimento que se tem dos jogos hoje.

Silva (2006) sintetiza a ideia de jogo na educação hoje como “uma situação artificial, controlada por regras e limitada a fatores do seu contexto” (2006, p.35). Ainda segunda a autora “As regras dos jogos orientam as ações dos jogadores, propiciando a estes limites de comportamento e possibilidades diferentes de ações”. (2006, p.38).

Para Brougère98 (1998), antropólogo e filósofo dedicado às ciências da educação,

o conceito de jogo só pode ser dado a partir do fenômeno que faz uso dele, “(...) o jogo só existe dentro de um sistema de designação, de interpretação das atividades humanas”. Ainda

98 Gilles Brougère, francês, Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Paris (Paris 5, 1993) é docente e chefe do Departamento de Ciências da Educação da Universidade de Paris-Nord. Desde os anos 1970, se dedica aos estudos sobre o universo infantil e a ludicidade (LEAL, 2014). Especializado em pesquisas sobre Educação Infantil, cultura lúdica infantil, sociologia da infância, educação comparada e intercultural e educação informal, Brougère “estuda as questões relativas ao jogo e à brincadeira infantil em uma perspectiva sociológica, envolvendo as relações que esta atividade mantém com a cultura do mundo adulto e com a cultura escolar, mais especificamente, da Educação Infantil” (OLIVA, 2012).

para o autor, o que caracteriza o jogo “(...) é menos o que se busca do que o modo como se brinca, o estado de espírito com que se brinca. Isso leva a dar muita importância à noção de interpretação, ao considerar uma atividade como lúdica (BROUGÈRE, 1998).

Huizinga (2000)99, historiador holandês que se dedicou a pensar as culturas

europeias, sobretudo no período da idade média, afirma que o jogo constitui-se como a base da cultura humana, vindo antes mesmo da própria ideia de cultura, ele não se restringe apenas aos seres humanos, mas é também utilizado por outros animais como forma de aprendizado. Apesar da possibilidade de se aprender por meio do jogo, Huizinga o define como “diametralmente oposto à seriedade”, “não-sério” e “exterior à vida habitual” (HUIZINGA, 2000, p.8 e 13). Para ele o jogo é

Uma atividade livre, ficando conscientemente tomada como ‘não séria’ e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. Promove a formação de grupos sociais com tendência a rodearem-se de segredo e a sublinharem sua diferença em relação ao resto do mundo por meio de disfarces ou outros meios semelhantes. (HUIZINGA, 2000, p.13-14).

Roger Caillois100, sociólogo francês que se dedicou a compreender o jogo,

concorda em partes com Huizinga quando o define como “atividades livres, separadas da realidade, de desenrolar incerto, necessariamente improdutivas, regulamentadas e fictícias” (CAILLOIS, 1986 apud WEILLER, 2012, p.18).

99 O holandês Johan Huizinga (1872-1945) foi professor e historiador. “Nascido em Groningen, Países Baixos, especialista holandês em línguas e literaturas hindus e estudioso das transformações culturais como da mentalidade medieval no último reduto do feudalismo, a Borgonha do século XV, e também da crise moral, intelectual e estética que acompanhou a crise política do período pré-nazista. Estudou nas universidades de Groningen e Leipzig e lecionou literatura em Haarlem, Groningen e Leiden. Reitor da Universidade de Leiden quando os alemães ocuparam os Países Baixos (1942), foi detido e confinado em De Steeg, perto de Arnhem, onde morreu. Conhecido por seus trabalhos sobre a última etapa da Idade Média, a Reforma e o Renascimento, durante sua atividade como intelectual construiu uma reputação por toda a Europa. Considerado o fundador da moderna história cultural, suas obras mais conhecidas foram Herfsttij der Middeleeuwen (1919), sua obra clássica e mais conhecida, traduzida como O outono da Idade Média, Erasmus (1924), uma monumental biografia do humanista Erasmo de Rotterdam, In de shaduwen van Morgen (1935), sobre a crise moral, intelectual e estética que acompanhou a crise política do período pré-nazista, e Homo Ludens(1938), onde propunha um novo modelo de civilização, sua principal contribuição social” (FERNANDES, 2015).

100 “Roger Caillois (1913-1978), intelectual francês, desenvolveu uma abordagem particular sobre o homem em suas relações com o jogo, o sagrado, o profano, o mito, o ritual, a festa e as diferentes culturas. Escritor, antropólogo e ensaísta, Caillois denota uma articulação teórica elaborada, marcada por linguagem coesa e, sobretudo, inovadora. A obra O homem e o sagrado atenta para a atualização dos mitos e ritos na sociedade, revelando as características concernentes ao sagrado, ao profano, ao jogo e ao lúdico. Mas é, sobretudo, com Os jogos e os homens, do original LesJeux et leshommes, de 1967, que se percebe a contribuição preciosa de Caillois para o estudo dos jogos” (LARA & PIMENTEL, 2006).

De acordo com Weiller (2012), para Caillois o jogo não era a base central da cultura humana, mas resíduos dela. Brougère (1995) concorda, afirmando que o jogo pressupõe uma aprendizagem social, e, portanto, é resultado de “relações inter-individuais”. Para ele, aprende-se a jogar como resultado de uma cultura.

O jogo em si pode ser considerado uma situação problema, na qual o jogador precisa elaborar alternativas, fazer descobertas, experimentar a realidade e tomar decisões. Para Vygotsky101, psicólogo que se dedicou a pensar sobre os processos educativos, mais

especificamente em como as crianças aprendem, a brincadeira estimula a imaginação, sendo a regra e a situação imaginária os princípios do conceito de jogo (1998 apud SILVA, 2006, p.29). Para ele, brincar e jogar não só contribuem com a aprendizagem das crianças, mas são também a aprendizagem em si. Segundo Vygotsky (Apud OLIVEIRA, 1995), o aprendizado se dá também na relação com o meio social, na interação dos indivíduos com o ambiente e não apenas por fatores cognitivos. Para Vygotsky como o ambiente ou a relação que os indivíduos têm com o meio contribuem no processo de desenvolvimento das crianças, as brincadeiras e as relações que se dão dentro de uma brincadeira também se constituem como processos de aprendizagem.

De acordo com esses autores, a ideia de jogo esta diretamente ligada a cultura, sendo produções do homem em diferentes sociedades. O jogo reúne em suas características a noção de lúdico ou fictício, regulamentado, ou seja, orientado por regras específicas ao próprio jogo, sendo ele delimitado num tempo e espaço previamente combinados, é livre ou voluntário uma vez que os jogadores não são obrigados a fazê-lo, o que o torna prazeroso e atraente a aqueles que participam, sendo incerto o seu resultado.

Buscarei, na sequência, contextualizar a ideia de jogo no escotismo. Para isso farei dois apontamentos iniciais: o primeiro como o escotismo se apropriou da ideia de jogo como forma de ensino-aprendizagem; o segundo sobre os sentidos que o jogo tem para os

101 Lev Semenovitch Vygotsky (1896-1934) foi um cientista bielorrusso. Formado em Direito pela Universidade de Moscou em 1918, destacou-se na área da Psicologia, tendo sido professor do Instituto de Treinamento de Professores na Bielorrússia, lá criou um laboratório de Psicologia. Em 1925 defendeu tese de doutorado sobre a Psicologia da Arte. Denominou sua linha de estudos como “psicologia cultural-histórica”, baseado no materialismo histórico de Karl Marx e Friedrich Engels (PURIZEI, 2000). A experiência vivida na formação de professores levou-o ao estudo dos distúrbios de aprendizagem e de linguagem. Graduou-se posteriormente em Medicina, onde tinha um grupo de pesquisa sobre neuropsicologia junto de Alexander Luria e Alexei Nikolaievich Leontiev. Foi convidado a trabalhar no Instituto de Psicologia de Moscou tendo chefiado o Departamento de Educação. Suas críticas ao regime stalinista fizeram com que suas obras fossem destruídas ou proibidas na União Soviética. Sua primeira obra traduzida para o inglês, Pensamento e Linguagem foi publicada em 1962 nos Estados Unidos da América. Além dessa, outras obras foram descobertas pelo Ocidente a partir de então, com destaque para Formação Social da Mente, nela Vygotsky organiza boa parte de seus conceitos sobre psicologia e neurologia a partir do referencial teórico marxista (TUNES & PRESTES, 2009).

indivíduos que dele participam. Trata-se de compreender o jogo no escotismo por meio de sua jogabilidade102, ou a forma como os escoteiros interagem com as atividades ou, como

Huizinga (2000) apontou, como contraponto a ideia de “Uma atividade livre, ficando conscientemente tomada como ‘não séria’ e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total” (HUIZINGA, 2000, p.13 – grifos meus).

O jogo parece então estar ligado diretamente à ideia de lúdico que, por sua vez, pressupõe regras previamente definidas, que orientam os jogadores na resolução dos problemas. O ato de jogar pode provocar uma sensação prazerosa que parece ser muito mais motivada pela própria ação do jogar do que o resultado do jogo em si.

Esse ato de jogar é diferente em cada situação, uma vez que o jogo só pode ser entendido a partir dos elementos que o compõem, como o contexto em que ocorre, seus participantes – jogadores e árbitros – e suas regras.