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Cena 5 – quebra-gelo, corrida de biga, dengue e corre cotia

3. O JOGO ESCOTEIRO EM CENAS

3.1 As cenas

3.1.5 Cena 5 – quebra-gelo, corrida de biga, dengue e corre cotia

Após a cerimônia de hasteamento, o chefe Cleber do Grupo Escoteiro Bororô apitou três vezes; os(as) escoteiros(as) logo compreenderam o código e correram em sua direção. Neste momento o chefe iniciava o quebra-gelo, uma atividade usada na pedagogia escoteira com o objetivo de “quebrar o gelo”, ou seja, ser um momento dinâmico, com foco na socialização. As patrulhas formaram em frente ao chefe, cada uma deu o seu grito; eram quatro patrulhas, duas de meninos – leão e urso –, e duas de meninas – jiboia e onça. Feita a apresentação das patrulhas por seus monitores e monitoras o chefe deu mais dois apitos. Os monitores e as monitoras gritaram para suas patrulhas: “alerta, sub assume”. Os membros da patrulha ficaram em posição de alerta e os submonitores e submonitoras correram em direção aos monitores e monitoras, saudando-os(as) e assumindo os seus lugares. Os monitores e as monitoras seguiram em direção ao chefe que explicou o quebra-gelo apenas para eles que, posteriormente deveriam explicar as suas respectivas patrulhas. No momento em que o chefe

disse que as meninas deveriam juntar suas patrulhas, assim como os meninos juntar a deles houve um desentendimento. O chefe acreditava que as patrulhas gostavam de competir e que a competição entre meninos e meninas era “notória”, porém ao sugerir que as meninas se juntassem, elas reagiram: duas delas de uma das patrulhas (com três meninas) se negaram a participar. O chefe Cleber insistiu, e não havendo acordo pediu a elas que fossem conversar sobre o acontecido com a chefe Miriam, diretora-presidente do grupo. Apenas uma menina aceitou se juntar a outra patrulha e participar da atividade.

O quebra-gelo seguiu com duas patrulhas, uma de meninos e outra de meninas. O objetivo é uma corrida de revezamento, em que os escoteiros e as escoteiras deveriam percorrer uma área demarcada da quadra e retornar até suas patrulhas, porém, ao invés de passarem o bastão, deveriam se juntar e realizar o percurso de forma que o primeiro a correr faria o percurso por seis vezes seguidas. Cada patrulha fez uma estratégia diferente e ao final as meninas ganharam o quebra-gelo. De acordo com o chefe Cleber, os meninos “brincaram muito” entre eles durante essa atividade, perdendo o foco muitas vezes e depois reclamaram do resultado, afirmando que o chefe havia beneficiado as meninas tirando duas delas da corrida, mesmo as meninas tendo feito a mesma quantidade de voltas que eles. Segundo os chefes Cleber e Miriam, os meninos costumam “brincar muito”, em especial nos acampamentos e, consequentemente, perdem e se dizem sempre lesados, acusando os(as) chefes de proteger as meninas. Após dar o resultado do quebra-gelo, o chefe Cleber, solicitou aos meninos que dessem um bravo em homenagem às meninas, mas, os meninos se negaram. Esse bravo, parte da tradição escoteira, é um ato de reverência aos vencedores, ao final de uma atividade. Os vencedores, por sua vez, devem agradecer esse grito de “bravo”, dando um grito de “grato”! A princípio, os meninos se negaram a clamar “bravo”; depois “toparam”, mas ao invés de gritarem “bravo, bravo, bravo”, gritaram “ladras, ladras, ladras”. O chefe pediu para pararem com o “ladras” e gritassem “bravas”. Eles se negaram de novo, mas o chefe quase os obrigou e exigiu que gritassem “corretamente”, o que fizeram. Por sua vez, as meninas ao invés de gritarem, apenas balbuciaram, desqualificando o grito dos meninos que se irritaram e cobraram do chefe a mesma postura em relação às meninas: deveriam agradecer gritando. No final o chefe acabou se exaltando com os meninos e com as meninas que deram um grito bem alto de “gratas”, e tudo aparentemente foi resolvido.

Em outro momento, o chefe Cleber propôs como quebra-gelo uma atividade que ele intitulou de “dengue”, que os(as) escoteiros(as) conheciam como “pega-pega corrente”. Ao explicar as regras para aos escoteiros e escoteiras, eles(as) disseram que já conheciam,

porém com outro nome e toparam jogar. A ideia do chefe Cleber foi usar a brincadeira já conhecida para discutir a epidemia de dengue. Na atividade um dos escoteiros foi o “pegador”, ou seja, o “mosquito infectado pela dengue”; na medida em que “pegava” alguém, ou seja, encostava, este também “contaminado” com dengue ajudaria a pegar os demais, vencendo aquele ou aquela que fosse o último(a) a ser “contaminado(a)”.

Notei que os escoteiros e as escoteiras, conheciam a brincadeira melhor do que o chefe e até podiam ter brincado quando estavam ansiosos aguardando o início da atividade; mas não o fizeram.

Terminado essa atividade, um dos escoteiros pediu ao chefe Cleber para jogarem futebol americano. O chefe negou, dizendo que este não estava previsto na programação daquele sábado. Quando perguntei ao chefe porque ele não atendeu ao pedido, ele alegou que o jogo poderia causar algum acidente e que isso não seria bom, depois não havia um local adequado, terceiro porque ele não conhecia bem as regras desse jogo e, por fim, para não ceder aos escoteiros sobre quem determina a programação.

Na sequência, o mesmo chefe Cleber propôs outro quebra-gelo, o corre cotia; dessa vez, preferiu manter o nome já conhecido entre os escoteiros e as escoteiras. Todos(as) conheciam a música e sabiam brincar. Não foi necessário esperar pelas explicações do chefe que apenas disse em voz alta: “o jogo será o corre cotia”. Isso bastou para que os escoteiros e as escoteiras se organizassem em círculo; ficaram apenas em dúvida se ficariam em pé ou sentados. Mas, rapidamente concluíram que deveriam ficar sentados. Com certeza, já conheciam a brincadeira e a praticavam com frequência. Como o anterior, esse jogo também ganhou um sentido muito maior que uma simples brincadeira. Como todos se conheciam, sabiam quem corria mais rápido o que gerava estratégias diferentes. Os que não queriam perder a vez, escolhiam os que corriam menos e aqueles que queriam desafiar os mais velozes propunham-lhes o desafio. Mas logo esse jogo perdeu o seu sentido. Os escoteiros e as escoteiras mais antigos no grupo perceberam e me relataram que o fato do chefe Cleber ter organizado dois jogos seguidos com características de quebra-gelo96, era porque ele não havia

“preparado a programação com antecedência”, e que estava apenas “preenchendo o horário”. O chefe negou, mesmo sabendo que a afirmação era verdadeira, uma vez que no sábado anterior, nem ele, nem a chefe Paula que o acompanhava estavam presentes, pois tinham ido

96 Como o nome diz, o objetivo desse jogo é quebrar o gelo, ou seja, quebrar a rotina da atividade não tem um objetivo pedagógico mais profundo.

fazer um curso de formação para adultos escoteiros e não haviam conversado com a chefe Cintia durante a semana97.

Após os questionamentos, o chefe Cleber deu dois apitos; neste momento apenas os monitores e monitoras seguiram até sua direção. Pediu que juntassem as patrulhas em duas equipes, uma de meninos e outra de meninas. Nesse dia havia duas guias, Joana e Natália, que acompanhavam a atividade. Elas pediram ao chefe para participarem. Mesmo com idades bem diferentes dos demais, tanto os chefes quanto a tropa escoteira consentiram que participassem uma vez que a tropa sênior não teria atividade naquele sábado, e que para aquelas meninas, nas palavras de Natália: “um final de semana sem atividade escoteira seria uma tortura”. Sendo assim, o chefe Cleber sugeriu que uma das guias ficasse com a equipe das meninas e a outra com a equipe dos meninos. Ele explicou aos monitores e monitoras que o jogo seria uma corrida de biga, uma atividade que exigiria que eles(as) construíssem um objeto feito de bambus que fosse capaz de transportar um(a) dos(as) escoteiros(as). O objeto a ser construído se assemelha a um “jogo da velha”, com dois bambus amarrados com outros dois bambus de forma perpendicular. Em cada junção dos bambus deveria ser feita uma amarra escoteira, aprendida no sábado anterior. O jogo teria duas etapas, a primeira que seria a construção da biga, e a segunda parte que seria a própria corrida. De acordo com a chefe Paula, ganhava quem vencesse a corrida, porém quanto melhor estivesse a biga, menos dificuldades, supostamente, haveria na corrida. Durante a corrida quatro escoteiros(as) deveriam erguer a biga de sua patrulha com um(a) escoteiro(a) na parte de cima e vencer um percurso determinado pelos chefes.

Explicado o jogo, dois escoteiros reclamaram que não queriam perder tempo “fazendo amarras”, queriam apenas jogos simples. Houve uma certa discussão entre o chefe Cleber e esses meninos, com o chefe sugerindo que fossem embora caso não quisessem participar da atividade. Eles não foram e nem cogitaram essa possibilidade. Mesmo mostrando algum descontentamento, eles fizeram o que o chefe havia proposto. Quanto à alternativa de ir embora, conforme a sugestão do chefe, os escoteiros sabiam que estavam lá voluntariamente e que podem fazer isso a qualquer momento. A sugestão do chefe, portanto, pareceu não ter resolvido o problema dos meninos, apenas do próprio chefe. Cada patrulha foi até o interior da sede e escolheu os bambus e o sisal que acreditavam serem mais adequados a esta atividade. A guia Joana que ficou na patrulha dos meninos, deu várias broncas neles,

97 Antes do início da atividade, a pedido dos chefes Cleber e Paula, fiz uma espécie de release da semana anterior, que eles usaram como base para programarem as atividades daquele sábado.

dizendo que “no tempo” dela (aproximadamente quatro anos antes) “os escoteiros não reclamavam tanto e ainda produziam mais e melhor”.

Enquanto as patrulhas preparavam as bigas, o chefe Cleber foi preparar o percurso da corrida, e percebeu que ao invés de as patrulhas correrem ao mesmo tempo, seria mais seguro que fosse uma de cada vez e os chefes marcariam o tempo de cada patrulha. Como o gramado estava molhado e o corredor cimentado era estreito, seria mais seguro que fizessem dessa forma, pois evitaria que as patrulhas se esbarrassem com os bambus e que uma patrulha machucasse a outra. Nesse caso o fator segurança foi determinante para o formato final da atividade. Preparado o percurso, o chefe chamou o monitor e a monitora e explicou todo o percurso, dizendo que seria uma patrulha de cada vez e que os tempos seriam marcados num cronometro, cada patrulha poderia dar duas voltas, de forma a superar o próprio tempo.

Durante a construção das bigas, a patrulha dos meninos “bagunçou muito”, eles “brincavam” entre eles, e por várias vezes perdiam o foco na atividade. A guia Joana que acompanhava essa patrulha perdeu a paciência algumas vezes dando muitas broncas nos meninos, porém eles não demonstravam nenhuma preocupação. Um dos meninos, o monitor, parecia ser conhecedor das técnicas escoteiras, sabia fazer as amarras e conduziu a montagem da biga da maneira que julgou ser melhor; por outro lado, para a guia Joana, ele era quem mais “bagunçava”, e como era monitor dos demais deveria dar “o exemplo”, que se ele parasse com a bagunça os demais parariam. Ele não deu muita atenção e continuou com a construção e a “bagunça”. Para a chefe Paula, apesar desse escoteiro “ser um bom conhecedor das técnicas escoteiras, ele não é um bom exemplo para os demais”, uma vez que não sabia, ou não queria se comportar de acordo com o decoro de uma atividade escoteira. A ideia de os mais velhos serem exemplos no escotismo é muito reforçada. Esse escoteiro que é o monitor parece saber disso, porém a qualidade ou o valor atribuído ao seu exemplo não correspondia às expectativas da chefe Paula e da guia Joana; Porém, ciente de seu exemplo ou de sua importância para os mais novos, usou de sua influência sobre eles para fazer o que queria – brincar, ou, nas palavras da chefe Paula, “bagunçar”.

A corrida se iniciou com a patrulha dos meninos. Eles foram mais rápidos que a patrulha das meninas na primeira tentativa e conseguiram baixar ainda mais o tempo na segunda tentativa, vencendo a corrida de biga. Apesar de todos os questionamentos em relação ao jogo, e toda a “bagunça”, os meninos se saíram realizados, ganharam um jogo que

consideram mais difícil, pois precisavam ter, além dos conhecimentos escoteiros das amarras, força física.

Esse mesmo jogo, uma corrida de biga, foi realizado no Grupo Escoteiro Santo Antonio. Lá, como as patrulhas tinham no mínimo cinco escoteiros ou escoteiras não foi necessário que se juntassem. O procedimento inicial foi muito parecido: o chefe Josué apitou duas vezes, e logo os monitores e monitoras correram em sua direção. Ele explicou que cada patrulha deveria construir uma biga para que pudessem completar o percurso e que um(a) dos(as) escoteiros(as) deveria ser carregado nela. Mostrou onde estavam os materiais, bambu e sisal e disse que teriam 15 minutos para construírem a biga. Cada um deles correu para sua patrulha explicando qual seria o jogo e logo os(as) escoteiros(as) foram pegar os materiais; todas as quatro patrulhas iniciaram a montagem, algumas escolheram bambus menores, outras maiores. Em uma das patrulhas de meninas, a monitora aproveitou a oportunidade para ensinar as amarras à lobinha que tinha há pouco tempo passado (ou sido promovida) para tropa escoteira; nas duas patrulhas de meninos não havia muita organização, com os monitores tentando fazer a amarra de modo apressado, com um ou dois escoteiros ajudando e os demais brincando. Quando deu os 15 minutos combinados, o chefe Josué perguntou se haviam terminado, e todas as patrulha safirmaram ter concluído. O chefe então apitou três vezes e todas as patrulhas formaram em sua frente, com os monitores e as monitoras a frente e suas respectivas patrulhas atrás. O chefe Josué então explicou qual seria o percurso, e pediu que um(a) voluntário(a) de cada patrulha o acompanhasse para conhecer todo o trajeto, nesse meio tempo foi possível que as patrulhas fizessem alguns ajustes em suas bigas. O chefe Josué pediu um(a) voluntário(a) de cada patrulha e não o(a) monitor(a) porque sabia que “todas as patrulhas ainda precisariam fazer alguns ajustes”. Quando esses(as) voluntários(as) retornaram às suas patrulhas e explicaram o trajeto, o chefe Josué perguntou se estavam prontos e se poderiam começar. Diferentemente do Grupo Escoteiro Bororô, as patrulhas aqui correram todas juntas e de uma única vez, isso porque havia espaço no parque suficiente para que todas corressem sem risco de se esbarrarem e de alguém se machucar.

No início da corrida de biga uma das patrulhas de meninas teve dificuldades em carregar a biga, visto que elas não estavam aguentando o peso da menina que estava em cima. Já às outras três patrulhas começaram o percurso em ritmo acelerado. A patrulha das meninas que ainda não tinha conseguido iniciar o trajeto precisou reorganizar a distribuição delas, de forma que as mais fortes segurassem a maior parte do peso. Mais ou menos próximo da metade do trajeto, a biga de uma das patrulhas dos meninos começou a desmontar; isso

porque as amarras começaram a se desfazer. Eles pensaram em parar e arrumar as amarras, mas preferiram seguir correndo torcendo para que a biga não se quebrasse por inteiro. As outras duas patrulhas completaram o percurso bem próximas uma da outra, com a patrulha dos meninos chegando em primeiro e a das meninas na sequência. Quando todas atingiram o ponto final, o chefe Josué pediu às três patrulhas darem um bravo para a patrulha vencedora, e assim foi feito. A patrulha ganhadora agradeceu com três gritos de Gratos! Antes de o chefe Josué explicar a próxima atividade, os meninos da patrulha vencedora disseram que só conseguiram ganhar porque a patrulha deles tinha mais escoteiros, como a biga deles havia ficado muito grande, isso dificultou um pouco nas curvas, porém o peso que tiveram que carregar foi dividido por mais pessoas; reconheceram que a biga das meninas havia “ficado melhor”, mas que eles ganharam pela força física, “própria dos meninos”.