• Nenhum resultado encontrado

O Jogo Escoteiro : uma análise da pedagogia escoteira

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "O Jogo Escoteiro : uma análise da pedagogia escoteira"

Copied!
158
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

CARLOS EDUARDO SAMPAIO BURGOS DIAS

“O JOGO ESCOTEIRO: UMA ANÁLISE DA

PEDAGOGIA ESCOTEIRA”

CAMPINAS

2016

(2)

CARLOS EDUARDO SAMPAIO BURGOS DIAS

“O JOGO ESCOTEIRO: UMA ANÁLISE DA

PEDAGOGIA ESCOTEIRA”

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestre em Educação na área de concentração de Ciências Sociais na Educação.

Orientadora: Prof. Dra. Helena Maria Sant´Ana Sampaio Andery

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO CARLOS EDUARDO SAMPAIO BURGOS DIAS E ORIENTADA PELA PROFA. DRA. HELENA MARIA SANT´ANA SAMPAIO ANDERY

CAMPINAS 2016

(3)

Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca da Faculdade de Educação

Rosemary Passos - CRB 8/5751

Dias, Carlos Eduardo Sampaio Burgos,

D543j DiaO Jogo Escoteiro : uma análise da pedagogia escoteira / Carlos Eduardo Sampaio Burgos Dias. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.

DiaOrientador: Helena Maria Sant'Ana Sampaio Andery.

DiaDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação.

Dia1. Escotismo. 2. Educação não-formal. 3. Etnografia. 4. Jogos. 5. Prática pedagógica. I. Andery, Helena Maria Sant'Ana Sampaio,1961-. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The Scout Game : an analysis of scout pedagogy Palavras-chave em inglês: Scouting Non-formal education Ethnography Game Pedagogical practice

Área de concentração: Ciências Sociais na Educação Titulação: Mestre em Educação

Banca examinadora:

Helena Maria Sant'Ana Sampaio Andery [Orientador] Ronaldo Rômulo Machado de Almeida

Ana Maria Fonseca de Almeida

Data de defesa: 18-02-2016

Programa de Pós-Graduação: Educação

(4)

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

“O JOGO ESCOTEIRO: UMA ANÁLISE DA

PEDAGOGIA ESCOTEIRA”

Autor: Carlos Eduardo Sampaio Burgos Dias

COMISSÃO JULGADORA:

Helena Maria Sant´Ana Sampaio Andery Ronaldo Rômulo Machado de Almeida Ana Maria Fonseca de Almeida

A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

(5)

Dedico esse trabalho primeiramente aos meus pais, Claudio e Fátima por todo apoio incondicional que me deram para a realização desse curso de mestrado. Dedico também a Carolina Magina, companheira e crítica de minhas conclusões e que desde o princípio me apoiou para a continuidade da pesquisa, levantando dúvidas essenciais ao desenvolvimento do próprio trabalho. Dedico também ao meu irmão Cesar e minha família pelo apoio e compreensão em relação às ausências em diversas reuniões de família. Por fim, dedico a todos os meus amigos e amigas que me apoiaram durante esses anos, algumas vezes me retirando desse universo para que fosse possível ver o mundo para além do próprio trabalho de pós-graduação.

(6)

Gostaria de agradecer primeiramente ao meu pai Claudio e a minha mãe Fatima. Foram alguns anos investidos nesse processo desde a inscrição e a realização das provas até a defesa dessa dissertação. Anos de muita correria que exigiram diversos tipos de reorganização da família, que me apoiou desde o início dando todo o suporte para que eu chegasse até aqui. Agradeço também ao meu irmão Cesar e familiares pelo apoio e compreensão durante esses anos. Faço também um agradecimento especial a Carolina Magina por todas as contribuições durante esse período. Companheira de vários momentos, não se furtou em opinar e contribuir com este trabalho, compreendendo inclusive que a realização do mesmo me distanciava dela em alguns momentos. Agradeço também aos meus amigos e amigas que me incentivaram a iniciar a pesquisa e a terminá-la, muitas vezes me socorrendo em outros afazeres que precisava me ausentar e até mesmo me distraindo com outros assuntos.

Além disso, agradeço a professora Helena Sampaio, que com seu trabalho atencioso não apenas me orientou como também me ensinou como deve ser a dedicação de um orientador, pautada no diálogo e no respeito as ideias. Agradeço também a todos os colegas de GEPEDISC, Ramayana, Charles, Helena e Francisco que durante o curso de mestrado muito contribuíram com discussões e reflexões sobre a minha pesquisa.

Faço também um agradecimento especial a todos os meus amigos e amigas do Laboratório Especial de História da Ciência do Instituto Butantan que me apoiaram desde o início, com um destaque especial ao Professor Nelson Ibañez que oportunizou espaços para que eu realizasse o mestrado. Agradeço também a CAPES pelo tempo que fui bolsista.

Além disso, agradeço a todos os escoteiros e escoteiras, crianças, jovens e adultos(as) que me receberam em seus grupos escoteiros acolhendo minha pesquisa.

(7)

escoteira. Situado no campo da educação não formal, seu objetivo principal é compreender como o escotismo se realiza e, se a sua prática no Brasil, especialmente na região metropolitana de São Paulo, se diferencia nos grupos escoteiros em função da origem social e econômica de seus membros.O estudo foi feito por meio de um levantamento bibliográfico sobre o tema e uma pesquisa de campo de inspiração etnográfica com observação participante e realização de entrevistas informais. Com esse material chegou-se a dois conjuntos de resultados: o primeiro refere-se às semelhanças e às diferenças observadas entre os dois grupos escoteiros pesquisados: Santo Antonio e Bororô; o segundo remete à noção de “Jogo Escoteiro” construída a partir da categoria nativa “jogo”, identificada nesta pesquisa como a principal ferramenta pedagógica do escotismo. Para se chegar a esses dois conjuntos de resultados, segue, primeiramente, um breve histórico do escotismo e de sua construção a partir da figura do seu herói fundador: Baden-Powell. Na sequência são apresentados, a estrutura organizacional e números do escotismo no Brasil, dados que permitem contextualizar a dimensão dessa instituição e, discutir as especificidades dos dois grupos escoteiros pesquisados. Dentre as especificidades dos grupos escoteiros, destaca-se a diferença nos perfis socioeconômicos dos participantes desses grupos, em especial de seus adultos voluntários e os possíveis efeitos dessa diferença junto as expectativas das famílias desses escoteiros. A partir da pesquisa de campo são apresentadas cenas das atividades escoteiras observadas junto aos dois grupos escoteiros, construídas a partir de elementos comuns a eles. Nelas, pode-se notar o jogo como recurso metodológico central da pedagogia escoteira e a presença indispensável dos adultos voluntários para a realização das atividades escoteiras. A pedagogia escoteira se realiza por meio do “Jogo Escoteiro”, um sistema moral que acontece nos grupos escoteiros por meio de rituais próprios do movimento escoteiro os quais são conhecidos e valorizados por seus iniciados. No “Jogo Escoteiro” o adulto voluntário também é um brincante, que joga o escotismo a partir de regras previamente definidas para a sua atuação. Realiza-se em realidades socioeconômicas e culturais diferentes, acontecendo de forma muito semelhante nelas, adaptando-se às características locais de cada grupo escoteiro. Parafraseando Geertz (1978), o “Jogo Escoteiro”, é absorvente. Nele, escoteiros – crianças, jovens e adultos – parecem esquecer-se de suas próprias vidas, sendo, para eles, uma espécie de educação sentimental, cuja moral ou ethos educam meninos e meninas a partir das experiências nas atividades realizadas em seus respectivos grupos escoteiros. Essas experiências se dão por meio das atividades tipicamente escoteiras, as tradições, ou como aponta Vallory (2015) os meios educacionais do escotismo, mas que são parte importante das motivações dos escoteiros e elemento indispensável na constituição do sentido de pertença destes com seus grupos escoteiros e com o escotismo. Sem seus meios específicos, ou seus rituais próprios, a pedagogia escoteira não dá conta de sua finalidade. Palavras-chave: Escotismo; Educação não formal; Etnografia; Jogo; Práticas pedagógicas

(8)

Rooted on the field of non-formal education, this paper aims to comprehend how Scouting is done, and if its practice in Brazil, and specialy within the metropolitan region of the state of São Paulo, may vary among different scout groups in function of social and economical origins of their members. This study has been led through bibliographic data collection on the chosen theme and ethnographic-based field research, along with participant observation and informal interviews. With the collected material, there have been formed two sets of results: the first one referring to similarities and differences observed between two scout groups chosen for analysis, Santo Antonio and Bororó; the second set refers to the concept of “Scout Game”, built upon the native category of “game”, identified along this research as the main pedagogical tool of Scouting. To come to both these sets of results, inicialy is presented a brief history of Scouting and its construction upon the figure of its founder hero, Baden-Powell. In the sequence there are presented the movement’s organizational structure and numbers of Scouting in Brazil, data that allow us to contectualize the dimensions of this institution and discuss particularities of both scout groups analyzed. Among the specificities of scout groups, we may highlight the notable differences of socieconomic profiles of group members, specialy among adult volunteers; and the possible effect of this difference over scouts families’ expectations. From the field research observation, there’s the presentation of scout activities’ scenes, taken through immersion in both groups, based on common elements of both. In these scenes, it’s remarkable how the game plays a central methodological role in scout pedagogy, and how adult volunteering is indispensable for perforrming the activities. Scout pedagogics is accomplished through the “Scout Game”, a moral system that estabilishes itself within each scout group, rooted in the rituals and traditions of the Scout Movement, which are known and valued by its initiates. In the “Scout Game”, every adult volunteer is also a player, having a previously defined set of rules made just for his role in the playing activity. The “Game” is performed in and with different socioeconomic and cultural realities’ sets, happening in very similar ways among them, adaptating itself to local characterictics of each scout group. Paraphrasing Geertz (1978), the “Scout Game” is absorbent. Playing it, kids, youngsters and adults seem to forget their own lives, being the game, for them, a sort of sentimental education, whose moral or ethos, educates girls and boys directly through their experiences brought up during the activities in their respecitve scout groups. These experiences are deeply anchored in tipical scout activities, traditions, or as points out Vallory (2015), the educational means of Scouting, which are also an important part of scouts’ motivations and an impertative element to the constitution of a sense of belonging of the members with their groups, other members and the Scout Movement itself. Without specific means and proper rituals, the Scouting pedagogics can’t handle its purpose;

(9)

vii

Figura 1 Organograma do escotismo no Brasil ... 41 Figura 2 Organograma de um Grupo Escoteiro ... 44

(10)

Tabela 1 - Distribuição dos grupos escoteiros e escoteiros por região geográfica ... 46 Tabela 2 - Participação percentual do número de jovens escoteiros por sexo no período 2007-2013 ... 50 Tabela 3 - Número de escoteiros por sexo e ramo no Brasil (2013) ... 51 Tabela 4- Número de adultos escoteiros em 2007 e 2013 por gênero ... 51

(11)

Quadro 1 - Comparação entre os grupos escoteiros Santo Antonio e Bororô ... 69 Quadro 2 – Atividades e competências por “ramo” do escotismo da “área de desenvolvimento físico” ... 74

(12)

Gráfico 1 - Número de associados escoteiros no período de 2003-2013 ... 47 Gráfico 2 - Evolução do número de escoteiros adultos no período de 2007-2013 ...47 Gráfico 3 - Evolução do número de associados isentos no período de 2007-2013 ... 48 Gráfico 4 - Evolução do número de grupos escoteiros no Brasil no período de 2003-2013 .. 49 Gráfico 5 - Evolução do número de escoteiros jovens por sexo no período de 2007-2013...49

(13)

AEBP – Associação Escoteira Baden-Powell B-P. – Baden-Powell

CAN – Conselho Administrativo Nacional

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CEBAS – Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social DEN – Direção Executiva Nacional

EACH – Escola de Artes e Ciências Humanas FBB – Federação de Bandeirantes do Brasil FET – Federação dos Escoteiros Tradicionais

GEPEDISC – Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Diferenciação Sociocultural IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IBICT – Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia IDHM – Índice de Desenvolvimento Humano do Município

NSO – National Scout Organization

OMME (Organização Mundial do Movimento Escoteiro ONU – Organização das Nações Unidas

PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento POF – Pesquisa de Orçamentos Familiares

POR – Princípios, Organização e Regras RMSP – Região Metropolitana de São Paulo UBA – Universidade de Buenos Aires UEB – União dos Escoteiros do Brasil

UEB-SP – União dos Escoteiros do Brasil – Região de São Paulo UEL – Unidade Escoteira Local

UNESCO - Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas

UPEB – União Parlamentar Escoteira do Brasil USP – Universidade de São Paulo

WIFS – World Federation of Independent Scouts WOSM – World Organization of the Scout Movement WSB – World Scout Bureau (Bureau Escoteiro Mundial)

(14)

INTRODUÇÃO ... 16

1. BREVES APONTAMENTOS SOBRE O MOVIMENTO ESCOTEIRO:

HISTÓRIA, ESTRUTURA E NÚMEROS NO BRASIL ... 27

1.1O herói fundador ... 28

1.2 A institucionalização do escotismo ... 35

1.3 A estrutura organizacional do movimento escoteiro ... 38

1.4 O escotismo no Brasil ... 40

2. OS GRUPOS ESCOTEIROS SANTO ANTONIO E BORORÔ:

SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ... 52

2.1 Os Grupos Escoteiros e seus chefes ... 54

2.2 As motivações em ser escoteiro ... 61

2.3 Escotismo e família ... 65

2.4 O adulto e a pedagogia escoteira ... 70

3. O JOGO ESCOTEIRO EM CENAS ... 75

3.1 As cenas ... 77

3.1.1 Cena 1 – cerimônia de bandeira ... 79

3.1.2 Cena 2 - cerimônia de passagem ... 84

3.1.3 Cena 3 - cozinha escoteira ... 85

3.1.4 Cena 4 – sistema de progressão e as especialidades ... 86

3.1.5 Cena 5 – quebra-gelo, corrida de biga, dengue e corre cotia ... 89

3.2. O Jogo Escoteiro ... 95

3.2.1 Breves apontamentos sobre a noção de jogo ... 95

3.2.2 Do jogo ao ar livre ao Jogo Escoteiro ... 99

(15)

REFERÊNCIAS ... 124

BIBLIOGRAFIA ESCOTEIRA ... 128

BIBLIOGRAFIAS CONSULTADAS ... 130

APÊNDICES ... 133

Apêndice A ... 133 Apêndice B ... 135

ANEXOS ... 141

Anexo 1 ... 141 Anexo 2 ... 150 (page 1) Anexo 3 ... 155 Anexo 4 ... 156 Anexo 5 ... 158

(16)

INTRODUÇÃO

O tema desta dissertação é o escotismo, mais especificamente o escotismo no Brasil. Ao estudá-lo, o meu propósito é contribuir para aprofundar a discussão sobre a educação em suas dimensões formal e não formal.

O objeto desse estudo é a pedagogia escoteira, sua teoria e prática.

Meu objetivo principal é compreender como os valores escoteiros são transmitidos, ou seja, como o escotismo se realiza enquanto prática pedagógica.

Dentre os objetivos específicos, o estudo busca: a) identificar as práticas e atividades escoteiras; b) entender como essas práticas se realizam; c) entender os sentidos que os diferentes atores atribuem a essas práticas; d) verificar se em diferentes grupos escoteiros essas práticas são diferentes;

Para responder a essas indagações realizei uma pesquisa de campo junto a dois grupos escoteiros da região metropolitana de São Paulo.

O ponto inicial desse estudo é a educação não formal, visto que na literatura escoteira1, o escotismo se define como uma instituição que propicia a educação não formal, em complementaridade ao sistema formal de educação e cuja missão é formar cidadãos e cidadãs. Vale dizer que nas primeiras definições do escotismo brasileiro e dos textos legais que o reconheceram no país, a expressão então utilizada é “extraescolar”, por ser compreendida como uma forma de educação complementar ao sistema oficial de educação.

Com efeito, naquela época, meados dos anos 1940, a expressão “extraescolar” ainda era utilizada para se referir à educação não escolar. Foi somente no final da década de 1960, que a expressão “educação não formal” foi utilizada por Philip Hall Coombs2, em seu relatório encomendado pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) para “International Conference on World Crisis in Education”, realizada em 1967, nos Estados Unidos da América. Nesse relatório Coombs e sua equipe empregaram

1 O escotismo brasileiro, leia-se, a União dos Escoteiros do Brasil (UEB), em seu artigo 1º de seu estatuto se define como uma “associação de âmbito nacional, de direito privado e sem fins lucrativos, de caráter educacional, cultural, ambiental, beneficente e filantrópico, e reconhecida de utilidade pública, que congrega todos quantos pratiquem o Escotismo no Brasil” (UEB, 2011, p.5). Ainda de acordo com o estatuto, no item III do artigo 2º que define os fins da UEB, é finalidade dessa Associação Escoteira “propiciar a educação não-formal, valorizando o equilíbrio ambiental e o desenvolvimento do propósito do Escotismo, junto às crianças e jovens do Brasil, na forma estabelecida pelo P.O.R. - Princípios, Organização e Regras e pelo “Projeto Educativo” da UEB”. (UEB, 2011, p.6).

(17)

pela primeira vez a “educação não formal” para se referirem às formas de educação que não estivessem vinculadas ao sistema oficial de ensino3.

A proposta ocorria no contexto de uma ampla discussão internacional sobre uma crise da educação formal em cumprir com seus objetivos maiores, ligados, principalmente, à formação de valores para a cidadania ou de determinadas moralidades. O entendimento era de que outras formas de educação não formais pudessem responder melhor que a escola a esses objetivos. Nesse sentido, a educação não formal surge em um contexto de crítica à educação formal que não estava atendendo a essa demanda de formar cidadãos.

A expressão passou a ser bastante empregada na literatura pedagógica como um contraponto ao que se caracterizou como educação formal, aquela vinculada ao sistema oficial de ensino e que acontece, via de regra, em escolas. A discussão atual vai muito mais além. Trilla (2008) aponta que a educação formal, não formal e informal possuem pontos de intersecção, e propõe, inclusive, que uma deve complementar a outra, e não competir; ressalta que a expressão continua sendo usada para demarcar uma diferença em relação ao sistema oficial (educação formal), sendo a educação não formal aquela que é intencional e organizada, sistematizada e institucionalizada; a educação informal, em oposição, é aquela que tenta dar conta de outras formas educacionais não enquadradas nas duas primeiras.

Quando Baden-Powell criou o escotismo a expressão educação não formal ainda não existia, embora hoje seja comum o escotismo caracterizar-se como uma instituição de educação não formal; a própria organização escoteira assim se auto define, mas não no seu sentido de negar as práticas escolares e sim de complementá-las naquilo que, segundo os escoteiros, não consegue atender: a formação para a cidadania.

No parágrafo 1º do artigo 5º do estatuto, já citado, a associação escoteira nacional define que o propósito do movimento escoteiro é contribuir na formação do caráter dos jovens, “ajudando-os a realizar suas plenas potencialidades físicas, intelectuais, sociais, afetivas e espirituais, como cidadãos responsáveis, participantes e úteis em suas comunidades, conforme definido pelo seu projeto educativo” (UEB, 2011, p.8). Ainda completando o artigo 5º, em seu parágrafo 3º, “O Escotismo, como força educativa, propõe-se a complementar a formação que cada criança ou jovem recebe de sua família, de sua escola e de seu credo religioso, e de nenhum modo deve substituir essas instituições” (UEB, 2011, p.8).

3 Uma revisão do conceito de educação não formal foi proposto pela própria UNESCO mais recentemente, e pode ser encontrado no documento: SIRVENT, Maria Teresa; TOUBES, Amanda.; SANTOS, Hilda.; LLOSA, Sandra.; LOMAGNO, Claudia. “Revisión del concepto de Educación No Formal” Cuadernos de Cátedra de Educación No Formal - OPFYL; Facultad de Filosofía y Letras da Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires, 2006.

(18)

Este estudo foi feito por meio de um levantamento bibliográfico sobre o tema e uma pesquisa de campo de inspiração etnográfica com observação participante e realização de entrevistas informais.

A pesquisa bibliográfica resultou em um conjunto de dados de diferentes naturezas. Comecei pela literatura escoteira4 produzida e disponibilizada pelo próprio escotismo a qual contribuiu para o entendimento do escotismo enquanto organização e pedagogia. Desse primeiro grupo de dados, destaco os livros escritos por Baden-Powell (Escotismo para Rapazes e Lições da Escola da Vida) que permitem compreender as bases teóricas do escotismo, seus valores e práticas. Além desses livros, dois trabalhos historiográficos sobre o escotismo merecem destaque: o trabalho de Laszlo Nagy 250 milhões

de escoteiros (1987) e o de Jorge Carvalho do Nascimento A escola de Baden-Powell: cultura escoteira, associação voluntária e escotismo de Estado no Brasil (2008); ambos,

respectivamente, apresentam um amplo levantamento da história do escotismo no mundo e no Brasil.

Num segundo momento da pesquisa realizei um levantamento das produções acadêmicas sobre o escotismo no Brasil, a partir do Banco de Teses e Dissertações da CAPES, do site Domínio Público, da Biblioteca Digital do IBICT e do site da própria União dos Escoteiros do Brasil que criou uma aba própria intitulada “Trabalhos Acadêmicos” que, no decorrer dessa pesquisa, foi se ampliando, sobretudo em relação aos trabalhos de conclusão de cursos5.

O levantamento mostrou que o escotismo parece ser um tema pouco abordado nas pesquisas acadêmicas no país. Localizei apenas uma tese de doutorado sobre escotismo, doze dissertações de mestrado e dezenove trabalhos de conclusão de curso. Também encontrei em buscas online, vinte e dois artigos e quinze textos apresentados em congressos, seminários e simpósios6. Foram utilizadas como palavras-chave nessa busca online: escotismo, movimento escoteiro, Baden-Powell, escoteiro e Scout. Os artigos e textos foram encontrados nos principais navegadores de internet do Brasil, como o Google Chrome e o Internet Explorer a partir de pesquisas com as cinco palavras-chave já citadas. O período das buscas se deu de março de 2013 a junho de 2015. Também localizei dois livros na loja virtual da União dos

4 Ver Apêndice A – Quadro de publicações escoteiras, p.129-130.

5 De acordo com a última atualização, constam disponíveis 31 trabalhos acadêmicos, distribuídos entre dissertações, trabalhos de conclusão de curso em nível de pós-graduação lato-sensu, ou especialização, em nível de graduação, artigos científicos e textos apresentados em congressos, simpósios, etc. Fonte:

http://escoteiros.org.br/downloads/trabalhos_academicos.php. Acesso: 23/06/2015. 6 Ver Apêndice B – Quadro de publicações acadêmicas sobre escotismo, p.131-136.

(19)

Escoteiros do Brasil7 que não eram publicações escoteiras, mas estudos sobre o movimento escoteiro e cinco livros sobre escotismo na loja virtual da Amazon8.

As produções acadêmicas disponibilizadas online nos sites pesquisados apresentam as seguintes características:

Das doze produções acadêmicas brasileiras9 encontradas em nível de Pós-Graduação Stricto Sensu, oito autores se reconhecem como escoteiros, dois afirmam não terem sido escoteiros e outros dois não explicitaram seus vínculos. É possível deduzir dessas informações que o interesse acadêmico pelo escotismo se dá, sobretudo por parte, de escoteiros que, ao ingressarem no sistema acadêmico, buscam aproximar suas reflexões teóricas de suas práticas. Desses doze trabalhos10, a maioria aborda o escotismo a partir de estudos de casos, buscando estabelecer relações entre o escotismo e outras instituições. Três deles apontam para as relações entre o escotismo e a formação do estado nacional, sugerindo o incentivo dos estados para o desenvolvimento do escotismo durante o Estado Novo11. Quase metade dos estudos sobre escotismo está inserida em Programas de Pós-Graduação em Educação, embora o enfoque principal deles seja o desenvolvimento do escotismo em

7 Ver em www.escoteiros.org.br/loja: Laszlo Nagy (1987) 250 milhões de escoteiros e Jorge Carvalho do Nascimento (2008) A escola de Baden-Powell: cultura escoteira, associação voluntária e escotismo de Estado no Brasil.

8Verem:www.amazon.com: Tim Jeal (2011) Baden-Powell founder of the boy scouts; W. Francis Aitken (2013) Baden-Powell - The Hero of Mafeking; Eleanor Clark (2010) The Legacy of Lord Baden-Powell: Founder of Scouting (Young Men of Honor); Tim Jeal (1990) The Boy-Man: The Life of Lord Baden-Powell; Eduard Vallory (2012) World scouting: educating for global citizenship.

9 Foram feitas buscas também de produções acadêmicas internacionais sobre o movimento escoteiro, mas que apenas citarei, sem traçar comparativos por não dispor de ferramentas necessárias para essa mensuração. Citamos: BOWIE, Katherine. Rituals of national loyalty. New York: Columbia University Press, 1997. GRANJA, Sandra Filipa da Costa. Pedagogia escutista como complemento à educação escolar. [dissertação] Universidade de Aveiro: Departamento de Ciências da Educação, 2007. KUA, Paul. Scouting in Hong Kong: citizenship training in a Chinese context, 1910-2007. [tese] the University of Hong Kong: Doctor of Philosophy, 2010. MACLEOD, David. Building character in the american boy. Madison: The University of Wisconsin Press, 1983. MECHLING, Jay. On my honor. Chicago and London: The University of Chicago Press, 2001. Vallory, Eduard. Global Citizenship Education. Study of ideological bases, historical development, international dimension, and values and practices of World Scouting. [tese] Universitat Pompeu Fabra: Departament of Political and Social Sciences. Doctor of Philosophy, 2007.

10 Desses trabalhos, cinco foram defendidos em Programas de Pós-Graduação em Educação, um em Programa de Graduação em História, um em Programa de Graduação Sociologia, um em Programa de Graduação Antropologia, um em Programa de Graduação Administração, um em Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, um em Programa de Pós-Pós-Graduação em Educação Física e um em Programa de Pós-Graduação Ciências da Informação. Há uma predominância desses estudos na área das ciências humanas, principalmente em educação.

11 Adalson de Oliveira Nascimento (2004), Sempre Alerta! O Movimento Escoteiro no Brasil e os projetos nacionalistas de educação infanto-juvenil 1910–1945; Bruno Martins Cardoso (2008), Escotismo e educação integral em Juiz de Fora: o Grupo Cayuás do Instituto Metodista Granbery (1927-1932); Luiz De Souza R. Sanson (2012), A educação em tempos de nacionalismo: as representações do escotismo em Laguna (1917-1960).

(20)

diferentes espaços geográficos e durante períodos históricos específicos. Seis desses trabalhos apresentam estudos de base empírica, com pesquisa de campo12.

Neste estudo dialoguei mais diretamente com os trabalhos de Nagy (1987) e Nascimento (2008), além da dissertação de mestrado de Souza (2010). Do ponto de vista histórico, Nagy (1987) e Nascimento (2008) se complementam; o primeiro trata da história do escotismo em âmbito internacional e o segundo aborda o escotismo brasileiro. Ambos priorizam a história do escotismo do ponto de vista organizacional e relacionam a pedagogia escoteira com a contextualização histórica que fazem do período e da organização escoteira. Nagy (1987), ao analisar a organização escoteira no mundo, sugere haver uma distinção entre a filosofia escoteira e a sua aplicação, identificando uma corrente “mais filosófica” e outra “mais pragmática”, a primeira, mais europeia, estaria, segundo o autor, mais preocupada no “por que” ensinar, já a segunda, mais americana, preocupada no “como” ensinar. Já Nascimento (2008) divide a história do escotismo brasileiro em dois períodos: um que chamou de “escotismo de estado” e outro de “associativismo escoteiro”, atribuindo ao fim do Estado Novo esse marco histórico. Souza (2010) fez um estudo de caso a partir do movimento escoteiro sobre o pensamento social conservador na modernidade brasileira contemporânea, apontando como esse pensamento social é percebido em um grupo de indivíduos conservadores – o movimento escoteiro; o autor conclui que esse fenômeno do pensamento conservador brasileiro segue uma lógica própria, chamada por ele de “conservadorismo progressista” que se manifesta, por exemplo, no escotismo brasileiro (SOUZA, 2010).

Esses trabalhos contextualizam a dimensão histórica do enraizamento nos ideais liberais e conservadores do começo do século XX, os quais acabam por situar o escotismo, segundo esses autores, como uma proposta de educação progressista para a época de sua criação.

A motivação para esta pesquisa teve como base a minha vivência de praticamente dezoito anos como escoteiro, dez deles como membro juvenil13 em um grupo escoteiro e

12Carlos Tadeu Miranda Cavalcante (2002), A importância da responsabilidade social na iniciativa privada. Estudo de caso: o escotismo como opção de investimento em educação não-formal; Adriana Bogliolo Sirihal Duarte (2006), Informação, comunicação e sociabilidade via Internet: um estudo das interações no ciberespaço entre membros do Movimento Escoteiro; Max Eduardo Brunner de Souza (2010), Pensamento social conservador na modernidade brasileira contemporânea: um estudo de caso sobre o movimento escoteiro; Blair de Miranda Mendes (2012), A influência do movimento escoteiro na formação do cidadão ecológico; Aldenise Cordeiro Santos (2012), A educação no canto do uirapuru: subjetividades de mulheres no movimento escoteiro; Caio Fernando Flores Coelho (2013), A Dádiva de si: uma etnografia sobre movimento escoteiro; Samara dos Santos Carvalho (2014), O Movimento Bandeirante e as relações de gênero no contexto social brasileiro do século XX.

(21)

outros oito anos como escotista14 em outro grupo; ambos os grupos escoteiros são localizados na região metropolitana de São Paulo. A partir dessa vivência pude conhecer outros grupos e escoteiros da mesma região, do estado, do país e até mesmo estrangeiros. Percebia que embora o escotismo se apresentasse como um movimento único, ele tem suas especificidades regionais e locais e até mesmo interpretações diversas sobre situações idênticas. Dentre algumas especificidades curiosas, cito a incorporação do chapéu de cangaceiro no uniforme dos escoteiros de um grupo na região do nordeste ou ainda da presença do chimarrão nas atividades escoteiras no Rio Grande do Sul e na Argentina.

Minha experiência como escoteiro, aliada à minha formação acadêmica, levaram-me a construir como objeto de estudo as práticas pedagógicas do escotismo no campo da educação não formal.

Embora presente em diversas partes do mundo, o escotismo se diferencia como prática pedagógica de lugar para lugar o que me sugeria a seguinte questão: os grupos escoteiros no Brasil, especialmente na região metropolitana de São Paulo, se diferenciariam em função da origem social e econômica de seus membros?

Esta questão me levou a definir como campo empírico de estudo dois grupos escoteiros localizados geograficamente em distintas regiões socioeconômicas da Grande São Paulo.

Usando como referência o IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano do Município) essa diferença seria pouco perceptível, pois ambos os grupos se localizam em cidades com índice considerado “Muito Alto15

pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). O Grupo Escoteiro Bororô16 atende, em sua maioria, crianças e jovens de outra cidade limítrofe, seu IDHM é considerado “Alto”. Como esse índice é uma média das cidades, usei também como referência o Mapa da Pobreza e Desigualdade nos

14 De acordo com o Glossário Técnico & Manual de Traduções da UEB (UEB, 2014c) “Membro adulto voluntário responsável pela orientação e aplicação do Programa Educativo aos membros juvenis”. Ver mais expressões do Glossário em Anexo 1 (p.137-145).

15 O IDHM é classificado no Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil como: Muito Alto 0,800 - 1,000; Alto 0,700 – 0,799; Médio 0,600 – 0,699; Baixo 0,500 – 0,599; Muito Baixo 0,000 – 0,499. Esse índice leva em consideração: longevidade, renda e educação. A Região Metropolitana de São Paulo apresentou em 2010 índice de 0,794, sendo considerado seu IDHM como “Alto”. Ver mais em: Atlas do Desenvolvimento Humano nas Regiões Metropolitanas Brasileiras. Acesso: 03/09/2015. Disponível em: http://atlasbrasil.org.br.

16 Os nomes dos grupos escoteiros e de todas as pessoas pesquisadas foram trocados para preservar suas identidades, garantindo assim que ninguém seja exposto por alguma situação aqui descrita que eventualmente não venha a concordar. Os nomes fictícios dos grupos escoteiros mantiveram-se fieis aos sentidos dos nomes verdadeiros, sendo um referido a um santo católico e o outro a uma tribo indígena. Os nomes dos grupos escoteiros, em geral, dizem respeito ao nome das cidades ou bairros em que estão localizados, assim como de tribos indígenas e personagens da história local ou regional.

(22)

municípios brasileiros. Os dados apontam maior pobreza e desigualdade na região do Grupo Escoteiro Bororô (IBGE, 2003)17.

Todavia, esses dados seriam insuficientes e, somados a eles, levei em consideração os relatos dos diretores presidentes de ambos os grupos escoteiros, que reconhecem as diferenças socioeconômicas dos públicos que atendem. Para o diretor do Grupo Escoteiro Santo Antonio, o público majoritário atendido é “de crianças e jovens de classe média”, e para a diretora do Grupo Escoteiro Bororô o seu público é majoritariamente composto “de crianças e jovens de classes populares”.

A escolha inicial, portanto, pautou-se na hipótese de que esses grupos escoteiros, em função de suas inserções em realidades urbanas distintas na região metropolitana de São Paulo também seriam compostos de crianças e jovens provenientes de famílias com perfis socioeconômicos também distintos.

Ao iniciar a pesquisa a pergunta que a orientava era: o fato de o Grupo Escoteiro Santo Antonio e de o Grupo Escoteiro Bororô estarem situados em distintas regiões geográficas e socioeconômicas implicava na existência de práticas pedagógicas também distintas?

A pesquisa em campo foi realizada entre os meses de março e junho de 2014 nos grupos escoteiros Santo Antonio e Bororô. O Grupo Escoteiro Santo Antonio conta com cerca de 70 crianças e jovens, entre lobinhos, lobinhas, escoteiros, escoteiras, seniores, guias,

pioneiros e pioneiras, e aproximadamente 15 adultos escoteiros entre chefes, assistentes e diretoria, além de aproximadamente dez pais e mães que participavam com assiduidade. O

Grupo Escoteiro Bororô é um pouco menor; conta com aproximadamente 50 crianças e jovens, entre lobinhos, lobinhas, escoteiros, escoteiras, seniores e guias, e cerca de oito adultos escoteiros entre chefes, assistentes e diretoria, além de quatro mães que eventualmente estavam presentes nos encontros.

O Grupo Escoteiro Bororô é vinculado a uma instituição assistencial e educacional que atende moradores de baixa-renda dos bairros de seu entorno. A instituição conta com creche e pré-escola, além de oferecer atividades técnico-profissionais para adolescentes e oficinas de corte e costura para idosos. Oferece ainda refeição e banho para moradores de rua. Nesta instituição, o Grupo Escoteiro Bororô é considerado uma atividade educacional complementar às demais oferecidas. A instituição atende crianças de 0 a 6 anos

17 Ver mais em IBGE Cidades: “Mapa de pobreza e desigualdade – municípios brasileiros 2003”. Acesso:

(23)

de idade, acolhendo-as na creche e na pré-escola. Essas crianças não frequentam o escotismo18. Embora o Grupo Escoteiro Bororô pertença a uma instituição, e tenha um “patrocinador”19

, é aberto a outras crianças e jovens do bairro. Ocorre, todavia, que o público do escotismo coincide com o público da instituição assistencial: famílias beneficiadas por algum tipo de programa social dos governos federal, estadual ou municipal. Os custos referentes à prática do escotismo, como uniforme e materiais para atividades, são pagos pela instituição social, compreendida pelos escoteiros como uma instituição patrocinadora.

A pesquisa de campo começou no início de 2014 quando fui aos dois grupos escoteiros, Santo Antonio e Bororô, apresentar meu projeto de pesquisa aos diretores-presidentes, Hiroshi e Miriam, respectivamente. Nessas conversas iniciais disse-lhes que o meu objetivo era estudar as práticas escoteiras ou, mais especificamente, a pedagogia escoteira, verificando o seu desenvolvimento em dois grupos escoteiros localizados em duas regiões distintas.

Hiroshi e Miriam concordaram com a realização da pesquisa e a autorizaram, porém sugeriram que eu apresentasse o projeto também aos chefes das tropas escoteiras20 para que os mesmos consentissem o seu desenvolvimento nos grupos. A pesquisa foi apresentada aos chefes no mesmo dia21. Em ambos os grupos escoteiros, conversei também com os meninos e com as meninas das tropas escoteiras, informando que nos meses seguintes eu estaria com eles realizando minha pesquisa de mestrado. Como o termo “mestrado” não foi bem compreendido pelas crianças, apresentei a pesquisa como um “trabalho para a faculdade” e lhes perguntei se permitiriam que acompanhasse algumas atividades ao longo dos meses seguintes. Não houve nenhuma oposição.

Os(As) chefes e os(as) escoteiros(as), portanto, sabiam desde o início que eu estava lá como pesquisador, embora em muitos momentos tenha sido chamado para contribuir como um escoteiro e ajudar na organização das atividades. Em alguns momentos fui chamado a compartilhar minhas observações sobre algumas ações dos(as) adultos(as) escoteiros(as),

18 Em alguns países, como o Canadá, por exemplo, há experiências escoteiras com crianças de 0 a 6 anos de idade. No Brasil, alguns grupos escoteiros possuem ramos conhecidos como “castorzinho”, que atendem crianças de 4 a 6 anos de idade, porém essa prática não é regulamentada pela União dos Escoteiros do Brasil. 19 Em seu estatuto a União dos Escoteiros do Brasil permite que grupos escoteiros sejam mantidos por seus sócios associados ou por instituições mantenedoras que patrocinariam a prática do escotismo. (UEB, 2011). 20 No primeiro capítulo apresentarei as definições das expressões escoteiras. Destaco, para esta Introdução que Tropa Escoteira é o agrupamento de meninos e meninas na faixa etária entre 10 e 14 anos de idade.

(24)

transformando-me em uma espécie de pesquisador-consultor. Embora procurasse evitar ao máximo esses momentos não pude furtar-me deles22.

A pesquisa de campo contemplou, assim, a observação participante e a realização de entrevistas informais. Realizar um trabalho de campo de inspiração antropológica não sendo antropólogo requereu algumas leituras e contatos prévios com uma literatura específica sobre o tema: Becker, 1987; Foote-White, 1980 e 2005 e Malinowski, 1978. Ressalto, porém, que os trabalhos de Gilberto Velho, especialmente os textos reunidos em Um Antropólogo na

cidade (2013), foram fundamentais ao chamarem a minha atenção em relação à proximidade

que tinha com o meu objeto de pesquisa, alertando para a distinção entre o que me parece familiar eo que me é, de fato, conhecido.

Tentei me manter vigilante em relação às minhas convicções iniciais, buscando não necessariamente transformar em exótico aquilo que me era familiar, mas em compreendê-lo para além disso, naquicompreendê-lo que ainda me sugeria ser desconhecido. Para Velho (2013), é possível transcender em determinados momentos limitações de origem do antropólogo “e chegar a ver o familiar não necessariamente como exótico, mas como uma realidade complexa do que aquela representada pelos mapas e códigos básicos nacionais e de classe através dos quais fomos socializados” (VELHO, 2013, p.78).

Em paralelo a essas leituras, Observando o Islã, de Clifford Geertz (2004) me serviu como uma espécie de inspiração inicial. Ao apresentar a religião islâmica em dois países diferentes – Marrocos e Indonésia –e de como essa religião havia se conformado em cada realidade, Geertz me apontou um caminho até então desconhecido para a interpretação do escotismo: observá-lo como um fenômeno social semelhante à religião, que se molda às culturas e contextos históricos locais ressignificando a própria interpretação desse fenômeno em cada local.

Como um neófito em antropologia, tentei neste trabalho evitar cair no “vazio” da costura interdisciplinar23 conforme adverte Fonseca (1999):

Ao cruzar dados, comparar diferentes tipos de discurso, confrontar falas de diferentes sujeitos sobre a mesma realidade, constrói-se a tessitura da vida social em que todo valor, emoção ou atitude está inscrita. Sem estes recursos, é fácil o neófito

22 As reflexões de Heloisa Pontes em seu trabalho Inventário sob forma de fichário. Paixão e compaixão: militância e objetividade na pesquisa antropológica (PONTES, 1994, p.123-136) me serviram de alerta para a dialética da relação pesquisador-militante.

23 Quando estudantes de educação (ou comunicação ou medicina etc.) soltam as amarras de suas tradições disciplinares e se atiram na direção da antropologia sem preparação adequada, podem, em vez de realizar uma costura interdisciplinar, cair no vazio — um território nem lá, nem cá, onde o que mais floresce é o senso comum da cultura do pesquisador. (FONSECA, 1999, p.62).

(25)

descambar para uma visão simplificada da realidade em que, por exemplo, o informante é visto como sendo “falso” ou “verdadeiro”. Quando existe uma empatia entre os dois, o pesquisador chega a quase entregar ao seu interlocutor a tarefa analítica. Transcreve as palavras deste como sendo a versão definitiva da realidade. (FONSECA, 1999, p.64)

O processo de transformar a experiência de campo em interpretações analíticas, como ainda propõe Fonseca (1999) nas cinco etapas do “método etnográfico24”, me levou, observar, registrar, esquematizar, ler e reler o material, comparando-o a outros materiais etnográficos e teorias antropológicas, chegando assim à sistematização desse material, conforme alerta Gilberto Velho: “Estou consciente de que se trata, no entanto, de uma interpretação e que, por mais que tenha procurado reunir dados “verdadeiros” e “objetivos” sobre a vida daquele universo, a minha subjetividade está presente em todo o trabalho”. (VELHO, 2013, p.76).

***

Além dessa introdução, a dissertação conta com três capítulos e as considerações finais. O capítulo 1 “Breves apontamentos sobre o movimento escoteiro: história, estrutura e números no Brasil” apresenta o movimento escoteiro, sua história, estrutura e alguns números de sua distribuição no Brasil. Ele se divide em dois níveis: o primeiro traz a literatura nativa em que há a construção do mito de origem; o segundo traz informações sobre a estrutura do escotismo. Neste capítulo mostro a origem do escotismo e sua institucionalização, a partir da literatura escoteira, analiso a narrativa do mito de origem do escotismo associada à biografia de seu fundador; depois apresento a estrutura organizacional do movimento escoteiro em seus níveis mundial, nacional e local; na sequência exponho alguns números referentes ao movimento escoteiro no Brasil, sua distribuição no território nacional e a evolução dos números relativos aos grupos escoteiros e seus membros, analisando-os no período entre 2003 e 2014.

No segundo capítulo “Os grupos escoteiros Santo Antonio e Bororô: semelhanças e diferenças” apresento as estruturas organizacionais e os arranjos internos de cada um desses grupos, destacando seus chefes como parte dessa estrutura. Faço uma breve apresentação das características das regiões geográficas em que esses grupos escoteiros estão situados, analisando-as a partir do IDHM. Na sequência apresento cada um dos grupos escoteiros a

24 1. Estranhamento (de algum acontecimento no campo); 2. Esquematização (dos dados empíricos); 3. Desconstrução (dos estereótipos preconcebidos); 4. Comparação (com exemplos análogos tirados da literatura antropológica) e 5. Sistematização do material em modelos alternativos. (FONSECA, 1999, p.66).

(26)

partir de sua demografia interna, suas formas de financiamento e da composição de seus adultos voluntários, apresentando brevemente suas trajetórias de vida e no escotismo. Ainda neste capítulo trago algumas motivações em ser escoteiro de algumas crianças, jovens e adultos de ambos os grupos escoteiros. Essas motivações foram organizadas em três categorias: ambiente, relações interpessoais e aprendizagem, e dizem respeito tanto às crianças e jovens quanto aos adultos. Além disso, destaco que para o grupo de adultos pesquisados de ambos os grupos, essas motivações estão intrinsecamente ligadas aos sentimentos de sacrifício e de recompensa. Na sequência abordarei as relações entre o escotismo e as famílias, chamando a atenção para as relações de parentesco na estrutura dos grupos escoteiros e para presença das famílias dos escoteiros nas atividades escoteiras. Finalizando o capítulo discuto as relações dos adultos escoteiros com a pedagogia escoteira, mais especificamente, o processo de formação de adultos para atuarem no escotismo.

O terceiro capítulo está organizado em duas partes. Na primeira apresento cinco cenas construídas a partir das anotações do caderno de campo. Essas cenas nos permitem analisar as práticas pedagógicas no cotidiano desses grupos escoteiros, o que nos possibilita discutir semelhanças e diferenças nos grupos escoteiros pesquisados para além de suas estruturas, a partir da relação com as próprias práticas. Na segunda parte do capítulo busco desenvolver, a partir das categorias nativas, a noção de Jogo Escoteiro. Para isso, faço uma breve digressão sobre a noção de jogo, relacionando-o com a ideia de “jogo ao ar livre” de Baden-Powell.

Por fim, nas Considerações Finais recupero o diálogo do escotismo com a educação não formal, refletindo sobre suas características e âmbitos de atuação e discutindo a pedagogia escoteira por meio desse referencial. Na sequência retomo os principais resultados deste estudo, apontando , para as semelhanças e diferenças dos grupos escoteiros pesquisados e os seus possíveis efeitos para os públicos atendidos desses grupos. Concluo o trabalho retomando a ideia de “Jogo Escoteiro” como um sistema moral que reúne diversas práticas pedagógicas e que tem o jogo como ferramenta principal de sua metodologia.

(27)

CAPÍTULO 1 – BREVES APONTAMENTOS SOBRE O MOVIMENTO

ESCOTEIRO: HISTÓRIA, ESTRUTURA E NÚMEROS NO BRASIL

Neste capítulo apresento o movimento escoteiro, sua história, estrutura organizacional e alguns números de sua distribuição no Brasil. Para isso utilizo de dois conjuntos de fontes: as produções acadêmicas sobre o escotismo no Brasil e a literatura escoteira.

Busco neste capítulo mostrar a origem do escotismo e sua institucionalização, analisando como a literatura escoteira apresenta a narrativa do seu herói fundador; na sequência, mostro a estrutura organizacional do movimento escoteiro em seus níveis mundial, nacional e local; por fim, apresento alguns números referentes ao escotismo no Brasil, sua distribuição no território nacional e a evolução dos números relativos aos grupos escoteiros e seus membros.

Dizer quando começou o escotismo não é das tarefas mais fáceis. O próprio movimento crava como data simbólica o ano de 1907, quando se realizou um acampamento na Ilha de Brownsea, Inglaterra, e Baden-Powell, seu fundador, reuniu alguns jovens entre 12 e 16 anos de idade (NASCIMENTO, 2008).

Porém, o escotismo começou a ganhar corpo um pouco antes. Inscreve-se em um contexto histórico em que muitos educadores discutiam novas propostas de educação, no que ficou conhecido como movimento de reforma da educação, ou escolanovismo (LIBÂNEO, 2005). Dentre as ideais pedagógicas da época, podemos destacar como influências na concepção da proposta pedagógica escoteira autores como Pestalozzi, Fröebel, Freinet, Montessori, Clapàrede e Bovet e mais adiante Dewey25.

Baden-Powell estava propondo um conjunto de práticas rituais e simbólicas, que servissem à disseminação de valores e normas sociais, tal como desejavam os reformadores da educação, contemporâneos seus. Eram muitos os projetos e as experiências aos quais alguns estudiosos como Franco Cambi preferiam designar no plural – as escolas novas. Muitos profissionais da Educação, como Montessori, Freinet, Clapàrede e Bovet se entusiasmaram com as vantagens da auto-educação, opondo-as aos métodos convencionais de ensino. Pierre Bovet chegou a publicar um livro elogiando o movimento escoteiro, destacando a importância da educação cívica para a formação do caráter (NASCIMENTO, 2008, p.48).

25 Para Nascimento (2008) “O Escotismo foi uma das muitas maneiras de apropriação das práticas pedagógicas no início do século XX. Assim, o movimento escoteiro se expandiu internacionalmente no mesmo período em que havia grande interesse em todo o mundo pelo ativismo pragmatista da Pedagogia de John Dewey (...)” (p.49).

(28)

Libâneo (2005) caracterizou essas pedagogias reformistas do final do século XIX e início do XX como pedagogias de “tendência liberal renovada progressivista”, cuja tônica seria o “aprender a aprender”, em que o processo de aquisição de um saber seria mais importante que o próprio saber. Nessa concepção, a construção do conhecimento resulta dos interesses e das necessidades dos sujeitos. Nessa pedagogia, o foco é o sujeito que aprende, e não o que ensina.

Nascimento (2008), um dos historiadores do escotismo, aponta para a importância de se estudar a vida e a obra de um indivíduo, dado que seus vínculos serem muito fortes. Logo, falar do escotismo sem falar de Powell seria um erro. Para o autor, Baden-Powell foi um homem marcado pelo pragmatismo que embalava a mentalidade norte-americana no início do século XX e também um entusiasta do liberalismo e das ideias sobre tolerância difundidas por John Locke

Bem humorado e antidogmático, independente das suas posições o lord Baden-Powell tinha uma identidade – a de inglês – e um projeto comum a todo o mundo no início dos anos 900 – educar a juventude. O fundador do escotismo era um patriota, qualidade valorizada naquele período. Tal condição, associada à sua mentalidade internacionalista, foi importante para que ele definisse o modelo de homem que propunha para a formação dos seus escoteiros (NASCIMENTO, 2008, p.29).

1.1 O herói fundador

Robert Stephenson Smyth Baden-Powell nasceu em Londres em 1857, filho do professor e reverendo Baden Powell, “membro de uma família bem posicionada socialmente, porém economicamente modesta” e de Henrietta Grace Smyth, “filha do almirante inglês W. T. Smyth, bem conceituado médico, astrônomo e membro da Royal Astronomical Society e da Royal Geographical Society” (NASCIMENTO, 2008, p.30). Filho do terceiro casamento do reverendo, Baden-Powell filho teve nove irmãos, porém não recebeu influência direta do pai que faleceu quando ele tinha apenas três anos. A mãe, viúva, “manteve a tradição familiar, reunindo em sua casa muitos poetas, escritores, intelectuais e artistas” (NASCIMENTO, 2008, p.30). O ambiente familiar em sua infância era repleto de histórias de aventuras contadas por seu avô materno e de acampamentos com os irmãos mais velhos em períodos de férias, experiência que, segundo seus biógrafos fizeram com que Baden-Powell adquirisse gosto pela natureza e aventura (BOULANGER, 2000).

Ainda de acordo com Nascimento (2008), em 1870, Baden-Powell ingressou como bolsista na Escola Chaterhouse, uma das mais importantes de Londres, onde cursou os estudos secundários. Durante o curso, “teve como principal professor o reverendo William

(29)

Haig Brown. Brown defendia como princípio educativo o desenvolvimento das potencialidades juvenis, de modo a desenvolver o intelecto e o caráter” (NASCIMENTO, 2008, p.31).

Ao concluir os estudos secundários, em 1876, Baden-Powell tentou ingressar na Universidade de Oxford, mas não teve êxito. No ano seguinte seria aprovado nos exames admissionais para o Exército inglês. Com 19 anos e já ingresso na carreira militar, Baden-Powell viajava muito, “convivendo com tribos de guerreiros da África, vaqueiros norte-americanos, índios da América do Norte e Canadá” (NASCIMENTO, 2008, p.32), experiências que mais tarde contribuíram na formulação do escotismo.

A experiência como militar, sobretudo na guerra contra a República do Transvaal - território africano em disputa durante o período imperialista ou colonial26 -, hoje África do Sul, fez de Baden-Powell não apenas um líder militar reconhecido na Inglaterra, mas um precursor de uma nova metodologia educacional, focada na utilidade e eficiência do método, baseada na organização militar e sustentada por valores típicos do Império Britânico nos finais do século XIX e início do XX (NASCIMENTO, 2008).

Na guerra contra a República do Transvaal (1899-1900) o exército inglês lutava contra um contingente muito superior de colonos holandeses, os bôeres27.Coube a

26 A segunda metade do século XIX assinalou a grande competição entre as nações europeias mais importantes, que ampliaram sua influência na Ásia e na África. O Congresso de Berlim de 1884/1885, repartindo o continente africano entre as principais potências europeias (Alemanha, Bélgica, França, Holanda, Inglaterra), caracterizou e consagrou o colonialismo como sistema. (...) Os fins, ainda que políticos, são acentuadamente econômicos. Em lugar da exportação, o fomento da produção de matérias primas ao lado da prospecção de minérios e pedras preciosas. A conquista colonial é feita através da força de tratados. Explorar os recursos naturais do território colonial, expandir o capitalismo, exportar, faziam do colonialismo uma “necessidade histórica” (AZEVEDO, 1999 p.109). É neste contexto que se tem a guerra na República do Transvaal.

27 BOERS: Nome pelo qual ficaram conhecidos os fazendeiros holandeses que, na África do Sul, entre 1899 e 1902, mantiveram-se em luta contra os ingleses. Os holandeses tinham-se estabelecido na região do Cabo desde o século XVI, formando, juntamente com os alemães, franceses e escandinavos, uma população extremamente peculiar. A partir do século XVIII, esses fazendeiros, por pressão das próprias autoridades locais, deslocaram-se para o interior do país, mas as diferenças que logo surgiram com a administração inglesa, então dominante, fizeram com que os boers emigrassem para além do rio Orange. Essa expansão (the big trek, “a grande viagem”), feita não sem lutas e repressão, teve como consequência a fundação de dois Estados independentes: as repúblicas de Orange e do Transvaal. Nesses Estados, os boers adotaram rígida política racial, baseada no princípio da desigualdade social, econômica e religiosa. A posse de terra, base do direito de cidadania, ficava reservada aos brancos, e os africanos negros apenas eram considerados como força de trabalho. Em 1852, a Inglaterra reconheceu a independência dos novos Estados. Não obstante, 25 anos depois, anexou Transvaal ao patrimônio territorial britânico, o que provocou o imediato protesto dos boers. Por outro lado, a descoberta de minas de ouro e diamantes no território africano trouxe o afluxo de estrangeiros (uitlanders), muitos dos quais ingleses que, apoiados pelo seu governo, não demoraram a entrar em choque com os boers. Receosos de que a Inglaterra viesse a exercer completo domínio sobre suas repúblicas, os holandeses declararam guerra, que durou três anos, ficando conhecida como guerra dos BOERS, só encerrada em 1902 com vitória inglesa. No decorrer da luta, as mais impiedosas medidas foram tomadas pelos britânicos, tais como o confinamento de centenas de boers em áreas especiais, verdadeiros campos de concentração, ou ainda a execução de prisioneiros rebelados. O tratado de Vereeniging, assinado em 1902, encerrou o conflito, com a anexação das duas repúblicas boers ao patrimônio e administração da Inglaterra. (AZEVEDO, 1999 p.65)

(30)

Powell organizar a resistência até a chegada de reforço de soldados ingleses28. Para isso, além de estratégias militares de defesa, Baden-Powell mobilizou jovens e mulheres nativos da cidade de Mafeking que estava então cercada por colonos holandeses, tornando-os ajudantes do exército inglês em serviços de primeiros socorros, cozinha, comunicação, etc. Com o envolvimento de mulheres e jovens nativos, o exército inglês conseguiu aumentar seus efetivos, uma vez que os homens, liberados desses serviços, puderam compor as linhas de frente do exército (NAGY, 1987).

Essas estratégias militares e de apoio militar, a vitória na guerra, supostamente consequência dessa estratégia, e o reconhecimento de Baden-Powell pelos ingleses como líder militar, lhe conferiram notoriedade no cenário político inglês no início do século XX. Em 1901, Baden-Powell escreveu o livro Aids to Scouting29, voltado aos jovens militares,

contando essa experiência; mais do que relatar as estratégias de guerra, Baden-Powell explicava como tarefas tidas como aparentemente simples – como de observação e de apoio –, podiam ser importantes e dava dicas de como realizá-las. Essas dicas funcionavam como um guia de campo para exploradores30 que aprendiam observar a natureza (as nuvens, os rios, o clima, os animais), caçar, se alimentar, etc.

Esses episódios retratados na literatura escoteira transformam as experiências militares de guerra em fatos heroicos. A “astúcia” de Baden-Powell é transformada em um valor intrínseco ao movimento escoteiro, descontextualizando-a de um cenário de dominação imperial, de subjugação dos povos dominados e, principalmente, da própria finalidade da guerra que é a morte do inimigo. A partilha do continente africano entre as potências europeias e, nesse caso, a disputa entre ingleses e holandeses por um território, não levava em consideração os interesses dos nativos. Toda “astúcia” atribuída a Baden-Powell, mesmo que localizada dentro das guerras coloniais, é narrada de forma acrítica; desconsiderando os objetivos bélicos na literatura escoteira, numa ideia de que a criação do “método escoteiro” dissociado de seu contexto fosse neutro. A seleção de episódios que compõem a construção da história do escotismo, transformando elementos negativos da guerra em positivos, em especial, a ênfase na “astúcia” de Baden-Powell, aponta para o caráter corretivo da própria

28 Nota-se que essa guerra envolveu países europeus pela partilha do continente africano, naquilo que depois ficaria conhecido como neocolonialismo. Os povos nativos não estavam em questão, nem diretamente em guerra, mas eram parte das disputas territoriais.

29 Baden-Powell. Aids To Scouting For N. -C.Os. & Men. London: Gale & Polden, LTD, 1915.

30A palavra escoteiro foi uma adaptação para língua portuguesa a partir do inglês literal “scout”, que à época significava explorador. Para saber mais ver: http://www.geubirajara.org.br/index.php/2012-03-03-14-48-13/25-palavraescoteiro e http://www.escoteiros.org.br/escotismo/escotismo_no_brasil.php. Acessados em: 29/11/2014.

(31)

pedagogia escoteira que viria mais tarde a se constituir: capaz de corrigir até as próprias tragédias de uma guerra31.

De acordo com Nagy (1987), passado algum tempo da publicação de Aids to

Scouting, Baden-Powell se deparou com crianças e jovens que utilizavam seu livro como

fonte de inspiração para brincar em praças. Nessa época, surgia, na sociedade inglesa, um sentimento de pessimismo em relação à sua juventude, pois os métodos educacionais, então em voga, pareciam não dar mais conta do que se propunham realizar. Segundo esse autor, havia um sentimento generalizado de juventude transviada, que não se apegava aos valores morais da sociedade inglesa. Para os adultos que comungavam desses valores, supostamente em desuso pelos jovens, era preciso restaurá-los.

Baden-Powell, asseguram seus biógrafos, teria percebido o valor educacional de uma atividade ao ar livre e prática para a formação de valores junto aos jovens ingleses. Em 1907, ele organizou o acampamento de Brownsea que ficou conhecido como primeiro acampamento escoteiro do mundo. Nesse acampamento, de acordo com a literatura escoteira, com jovens Baden-Powell colocou em prática os ensinamentos de seu livro: organizou os jovens em patrulhas e, em cada uma, colocou um jovem como líder, uma clara inspiração do modelo militar (NAGY, 1987, BOULANGER, 2000 e NASCIMENTO, 2008). Nesse acampamento ainda, segundo os historiadores do escotismo, foram dadas as bases da pedagogia do movimento, das quais destaco: o sistema de patrulhas, a transmissão de valores por meio do exemplo e a presença de um adulto como elemento mediador no processo educacional.

Em 1908, Baden-Powell publica releituras e adaptações de seu livro de 1901 sob o título: “Scouting for boys”. Ele foi publicado inicialmente em seis fascículos quinzenais vendidos em bancas de jornal. Trata-se de quase 400 páginas com o subtítulo: “Manual de Instrução de boa cidadania” (BADEN-POWELL, 2013). O objetivo de Baden-Powell, de acordo com seus biógrafos, era atingir os jovens de forma geral e não apenas os jovens militares. Segundo a literatura escoteira, o sucesso de vendas e o crescente aumento de jovens ingleses brincando em praças e locais públicos, levaram Baden-Powell a reunir em uma única

31 Na edição atual da versão em português de Escotismo para Rapazes há um tópico chamado “A segunda vida de B.P” (BADEN-POWELL, 2013, p.13), que traz a ideia de uma outra vida de Baden-Powell narrada a partir da criação do escotismo. Essa narrativa traz as experiências anteriores desse mito reorganizadas após sua grande criação, como por exemplo, o treinamento militar, podendo ser usado para fins bélicos, porém que é narrado como uma cultura ou filosofia de paz. Assim, o herói Baden-Powell torna-se o elemento que consegue superar os “usos” e meios negativos das derivações e revertê-los em positivo.

(32)

publicação todos esses periódicos. Foi assim que publicou o livro Escotismo para Rapazes32, base teórica do que viria a ser uma organização mundial baseada em uma pedagogia ativa. A partir dessa publicação, o escotismo se espalhou para diversas partes do mundo, com o próprio Baden-Powell incentivando a sua difusão (NAGY, 1987 e NASCIMENTO, 2008).

Procuro analisar nesta seção o surgimento e a criação da narrativa mítica do herói fundador do escotismo. Assim como Maluf (2005), “O interesse maior aqui é sobre o aspecto narrativo do mito e menos sobre sua estrutura e seu quadro formal” (p.515).

Utilizo-me ainda de Marilena Chauí (2001) para essa compreensão. Segundo ela,

Ao falarmos em mito, nós o tomamos não apenas no sentido etimológico de narração pública de feitos lendários da comunidade (isto é, no sentido grego da palavra mythos), mas também no sentido antropológico, no qual essa narrativa é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade (2001, p.5-6).

No movimento escoteiro, nota-se que ele é construído em torno da figura de Baden-Powell a partir de sua história, por meio da seleção de fatos, contados e recontados no escotismo até os dias de hoje. Essa seleção de fatos para fundação do mito passa a ser a história do próprio escotismo enquanto instituição.

Se também dizemos mito fundador é porque, à maneira de toda fundatio, esse mito impõe um vínculo interno com o passado como origem, isto é, com um passado que não cessa nunca, que se conserva perenemente presente e, por isso mesmo, não permite o trabalho da diferença temporal e da compreensão do presente enquanto tal. Um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e idéias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo. (CHAUÍ, 2001, p.6)

Toda literatura escoteira se remete a uma história comum do surgimento do movimento. A história do escotismo (pelos escoteiros) lança mão de uma estrutura que se assemelha aos mitos de fundação. A substância do mito fundador do escotismo está em sua história, na seleção de relações que se combinam adquirindo função significante.

As unidades constitutivas que compõem esse mito de Baden-Powell como um herói são múltiplas, e em diversos campos: político, religioso, pedagógico, militar, etc. Constituem-se de relações superestimadas e de relações depreciadas, entre aqueles que são parte do movimento e aqueles que não são. Trata-se também da vitória dos escoteiros sobre os

32Edição atual em português reeditada em 2006 pela União dos Escoteiros do Brasil reimpressa em sua terceira versão em 2013.

Referências

Documentos relacionados

Com base na literatura revisada, conclui-se pela importância da implantação de um protocolo de atendimento e execução de exame de Ressonância Magnética em

Ao fazer pesquisas referentes a história da Química, é comum encontrar como nomes de destaque quase exclusivamente nomes masculinos, ou de casais neste caso o nome de destaque

EXPERIMENTANDO E DESCOBRINDO: A CONTRIBUIÇÃO DE UMA OFICINA PARA DESPERTAR ALUNOS DE NÍVEL MÉDIO PARA AS DIMENSÕES DA ÓPTICA COMO DISCIPLINA E CAMPO DE PESQUISA..

Por esta razão, objetivamos analisar a política de expansão da Igreja Católica na Bahia, na década de 1950, e sua correlação com a criação do Primeiro Bispado em Vitória

Como estratégia de combate ao insucesso, a Escola aderiu ao Plano de Acção para a Matemática (PAM) – que no presente ano lectivo, para além dos 7.º e 8.º anos, abrange,

Os filmes finos dos óxidos de níquel, cobalto e ferro, foram produzidos por deposição dos respectivos metais sobre a superfície de substratos transparentes no

O processo adotado foi o resultado de uma crescente participação dos engenheiros da MMA na pesquisa: no lnlclo, simples compradores de processo; após,

PROGRAMA: Situação ENFERMAGEM Pontuação Final Colocação Cotas Ampla Concorrência Forma de Ingresso:.. MARYAH PONTES