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Breves nostas sobre o rap na cidade de São Paulo e Mapas da Desigualdade

No documento DiverCity: diversity in the city (páginas 61-66)

Nos últimos anos o rap vem ganhando espaço na cena cultural brasileira. Contudo, não é de agora que o gênero vem sendo produzido no país. O Rap, desde sua origem, é o gênero musical da resistência e da luta social. Repente da vida real, dele faz emergir uma cidade escamoteada pelo discurso dominante, revela a posição do dominado e do lugar que ele ocupa na sociedade e na cidade – “Favela ainda é senzala Jão” - o rapper Emicida2, em sua música

acende a questão.

O rap3 já bastante consolidado nas periferias norte americanas desde a década de 1970, superou as barreiras

linguísticas e geográficas, e começou a ser elaborado na cidade de São Paulo em meados da década de 1980, como expressão cultural e meio comunicacional, capaz de reunir por meio da crítica e do discurso engajado, a dura experiência na qual os periféricos da cidade estão inseridos. Originalmente produzido no Bronx, possibilitou aos

2 Emicida é um rapper, cantor e compositor natural da cidade de São Paulo, Brasil. Considerado uma das maiores revelações do rap nacional

da década de 2000.

3 Cabe aqui esclarecer que dentre uma enorme gama de segmentos e variações dentro do estilo musical, o trabalho busca analisar o segmento

“rap engajado”, aquele que não compactua ou convive de modo amistoso com a ordem instituída, a do capital. O rap engajado recheia suas letras sobre o cotidiano de inúmeras dificuldades.

jovens de outros contextos questionar as formas de opressão que os atingiam, adquirindo contornos locais e particulares.

A cidade de São Paulo é considerada o berço do hip hop no Brasil, isto é, na qual o movimento surgiu com força. Em meados dos anos 1980, o estilo musical teve sua produção assentada nas periferias. Não por acaso, se trata de um momento aonde acentuadas transformações entraram em curso no cenário nacional, nos planos da economia, da política e das esferas sociais e se consolidaram nas ideias e práticas neoliberais.

Apesar das influências norte-americanas, o rap adquiriu contornos locais face aspectos culturais e às transformações urbanas da capital paulista. A segregação socioespacial, o desemprego, a violência policial, o preconceito e as diferentes formas de exclusão que atingem os jovens paulistanos de forma mais aguda a partir da década de 1980 relacionam-se com aspectos socioeconômicos mais amplos de reestruturação da metrópole paulistana. A exemplo, trecho da música Fim de Semana no Parque:

Olha só aquele clube que da hora Olha aquela quadra

Olha aquele campo, olha Olha quanta gente

Tem sorveteria cinema piscina quente Olha quanto boy

Olha quanta mina

Afoga esta vaca dentro da piscina Tem corrida de kart dá prá vê

É igualzinha ao que eu vi ontem na TV Olha só aquele clube que da hora

Olha o pretinho vendo tudo do lado de fora Nem se lembra do dinheiro que tem que levar Do seu pai bem louco gritando dentro do bar Nem se lembra de ontem

De hoje e o futuro?

Ele apenas sonha através do muro

(Trecho da música: Fim de Semana no Parque, Racionais MC´s, 1993, grifos nossos).

Os autores e atores sociais do rap, do grupo Racionais MC’s4, fizeram o registro a partir da sua perspectiva (de

quem se encontra do lado de fora) do momento em que os muros dos condomínios das classes média e alta começam a subir como febre nas áreas nobres, delimitando fronteiras físicas e sociais na cidade. É possível perceber a falta de perspectiva de quem mora na periferia e os problemas causados pela apartação social e racial. O processo de erguimento de muros e a fortificação da cidade resultaram, entre outras consequências, no esvaziamento da vida cultural no centro urbano e no aprofundamento da vida cotidiana da periferia.

Através de categorias próprias, as músicas têm se fixado em questões relativas à segregação socioespacial. Registram inclusive as implicações territoriais da desigualdade social: do processo de fortificação urbana que separa a elite em condomínios fechados e as classes populares nas periferias carentes de infraestrutura.

4 Racionais MC's é um grupo paulista de rap, fundado em 1988, e formado pelos MC's Mano Brown, Edi Rock e Ice Blue e o DJ KL Jay. É o

Possivelmente, a difusão do rap (rhythm and poetry, dos guetos norte americanos) na cidade de São Paulo pode estar associada à opressão e desigualdade existentes na capital paulista, a mais opressiva das cidades brasileiras. Dentre os elementos constitutivos do movimento hip hop, o rap consolidou-se como o mais expressivo. O número significativo de grupos de rap, a produção de discos, as gravadoras independentes, as posses, e as rádios comunitárias, fizeram do rap de São Paulo uma referência nacional.

A explicação que se dá para o rap ter se desenvolvido mais expressivamente nas periferias de São Paulo do que em qualquer outra periferia do país é dada por outros diversos fatores. A reflexão desenvolvida por Wacquant (2005) evidencia que a trajetória de reestruturação econômica, e os seus impactos na sociedade se diferenciam em razão das matrizes históricas sob as quais em cada região (ou país) se deram a formação das classes, do Estado e da hierarquia social. A análise das semelhanças e diferenças entre os periferizados no Rio de Janeiro e São Paulo é contestada, por exemplo, quando vista apenas como resultado socioterritorial da globalização econômica:

Uma favela brasileira pode ser muito semelhante a um gueto negro norte-americano quando comparamos as suas respectivas condições sociodemográficas, pois ambos são territórios de concentração de camadas pobres com forte presença de segmentos não-brancos, jovens e velhos, de alta taxas de desemprego, especialmente entre os jovens, de família chefiadas por mulheres etc. Quando comparamos, porém, os lugares ocupados por uma e outro em seus respectivos espaços sociais, verificamos a existência de fortes diferenças. Em primeiro lugar, o termo "favela", embora pretenda descrever uma situação socialmente homogênea, esconde fortes diferenças quanto ao papel dos territórios pobres na economia e na sociedade das grandes cidades brasileiras. O vocabulário favela e seus congêneres (vilas, palafitas etc.) nem sempre exprimem posições sociais semelhantes na hierarquia socioespacial brasileira. As favelas na cidade de São Paulo, por exemplo, constituem uma posição hierarquicamente mais inferior do que no caso do Rio de Janeiro. (Wacquant, 2005: 15. Grifos nossos.)

Desse fato se pode entender que a exclusão social em São Paulo é mais declarada, pois a diferenciação entre as classes no espaço também o é. Além da hierarquia social, outra grande diferença colocada pelo autor é a relação dos territórios da pobreza com o conjunto metropolitano. Trazendo essa reflexão para os casos de São Paulo e Rio de Janeiro, as duas cidades de maior PIB do Brasil, os "favelados" apresentam diferentes graus de isolamento social. Estão inseridos na divisão social do trabalho, embora em posições marginais, mantendo relações de troca com o mundo social exterior. No Rio de Janeiro a sua grande maioria trabalha fora da favela e consome fora delas. Além disso, no caso da cidade do Rio de Janeiro, as favelas se encontram localizadas muito próximas do tecido metropolitano.

A conexão da favela com a sociedade, ainda que subalterna, permite ao seu morador experimentar a alteridade. Por outro lado, se a favela é majoritariamente preta e parda, nem todos os pretos e pardos pobres estão nas favelas, o que dá ao “favelado” (em certa medida) a oportunidade de escapar da estigmatização e circular no espaço social sem portar insígnias da desqualificação social. (Wacquant, 2005: 15)

Em São Paulo, ao contrário do Rio, a população negra e parda está distribuída de forma mais apartada no território, aumentando a distância e a separação social. A segregação urbana evidencia vulnerabilidades sociais a que está submetida a população das regiões periféricas da cidade, como falta de acesso a água, saneamento básico e menor

acesso a saúde, educação, ao emprego formal assim como maior índice de violência. Variáveis que, juntas, criam um ambiente desfavorável para quem está fora dos grandes centros da cidade.

Figura 1 Porcentagem da População Por Raça/Cor em São Paulo. Disponível em http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/arquivos/mapa-da- desigualdade-2017.pdf. Acesso: 20/11/17

Os indicadores sociais expõem desigualdades étnico-raciais uma vez que há maior presença da população negra e parda nas áreas periféricas, regiões que apresentam os piores índices e têm menor oferta de empregos formais. Nos extremos Sul e Leste da cidade, essa população chega a representar mais de 50% dos moradores. É preciso entender que se os negros e pobres estão nas periferias não por mero acaso, e sim como resultado da política do Estado e os mecanismos utilizados por ela e pela classe dominante para manter a imobilidade social e física dessa parte da população na cidade.

Figura 2 Empregos Formais em São Paulo. Disponível em http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/arquivos/mapa-da-desigualdade- 2017.pdf. Acesso: 20/11/17

O colapso das instituições públicas resultante das políticas estatais de abandono urbano e repressão punitiva do proletariado negro/pardo emerge como manutenção das disparidades e causa (não o efeito) mais importante para continuação de uma severa segregação e marginalidade entrincheirada na cidade de São Paulo. Dessa forma, se rompe com a ideia pelos administradores públicos, com ostensivo apoio da mídia, de “desorganização”, “má gestão das verbas” etc. Vê-se uma concepção institucionalista da favela/periferia como uma concatenação histórica determinada e espacialmente estabelecida de mecanismos de controle etnorracial.

Figura 3 Homicídio Juvenil em São Paulo. Disponível em http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/arquivos/mapa-da-desigualdade-2017.pdf. Acesso: 20/11/17

Figura 4 Porcentual da População Urbana que Reside em Favelas. Disponível em http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/arquivos/mapa-da- desigualdade-2017.pdf. Acesso: 20/11/17

Ao analisar os mapas, dados como violência juvenil, a miséria e a divisão etnorracial em São Paulo, tornam evidente nexos entre cor, classe e política do Estado. O Rap ressalta os efeitos da estigmatização territorial nas estruturas e estratégias sociais locais, e põe a descoberto os princípios de visão e de divisão social que moldam a consciência e as práticas do sistema capitalista neoliberal e o regime de clausura excludente e de exílio socioespacial que lhes são impostos.

O rap paulistano põe a descoberto os dados levantados nos mapas. O rappers optaram por uma posição crítica e comprometida com o orgulho negro. Durante a década de 90, os rappers mantiveram relativo distanciamento dos meios de comunicação, estavam consolidando os de parâmetros centrais do estilo musical - como a valorização da letra, do discurso inteligente, crítico e mordaz.

Em São Paulo, os rappers cantam e contam os dramas sociais dos seus cotidianos sem fazer nenhum tipo de concessão, pois sabem que vivem em um estado de guerra permanente que não foi inventado por eles, e sim mantido pelas políticas do Estado, da qual são os maiores prejudicados. Talvez por isso, não se permitam ser otimistas e mantenham diálogo criterioso com as mídias hegemônicas, que ao contrário de suas letras, contam a cidade pela perspectiva dominante e, muitas vezes, de forma distorcida.5

No documento DiverCity: diversity in the city (páginas 61-66)