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Rua Augusta hoje: registo fotográfico

No documento DiverCity: diversity in the city (páginas 48-54)

Não há paredes em branco na rua Augusta. Cada centímetro quadrado de seus muros está, ou será em breve canibalizado por cartazes, frases ou pichações. A rua com identidade mais boêmia e camaleônica da cidade de São Paulo expõe seus muros como telas efêmeras, repletas de conteúdo visual, ideológico e imagético.

Testemunhando as mudanças constantes na via, nos ocupamos em realizar o seu registro fotográfico diariamente em dois períodos de cem dias, entre Fevereiro e Maio de 2016 e 2017, totalizando mais de 1.400 fotos15.

Não foi nossa intenção, nesse levantamento de predominante subjetividade, realizar um mapeamento total das superfícies onde a arte urbana é encontrada na via. Buscamos exemplificar as mudanças de conteúdo e formas de expressão artística encontradas em áreas onde, cotidianamente, pudemos observar uma maior variedade de ocorrências. Nesse sentido, elegemos 7 painéis que julgamos representativos de um conjunto muito maior de muros e fachadas que constitui a via. Buscamos, desta forma, compreender o discurso visual encontrado na arte da rua Augusta, a partir do registro de parte de seu acervo.

Os primeiros painéis fotografados ficam no cruzamento com a rua Antônio Carlos e são as faces de um amplo pilar de edifício localizado na esquina. Por se localizar em um alargamento na calçada, é local de encontro e permanência constante de pedestres, pequena área de estar em meio à via. Espaço de grande visibilidade, disputado não apenas entre os artistas de rua, mas também entre vendedores informais e por pessoas em situação de rua. Ali encontramos com frequência trabalhos em lambe-lambe do artista Luis Bueno16, denominados “Pelé Beijoqueiro”,

cuja imagem do ídolo do futebol brasileiro Pelé, beijando diversas celebridades, se tornou conhecida, já foi exposta em galerias, e hoje estampa também camisetas. Em nossos registros fotográficos na rua pudemos observar esta

15 Parte das fotografias foi, posteriormente, exposta em uma galeria pública, localizada a poucas quadras dos locais fotografados. Galeria

Passagem Literária da Consolação, Agosto - Outubro 2016, rua da Consolação, sem número, esquina com avenida Paulista, São Paulo.

16 O trabalho mencionado, “Pelé Beijoqueiro”, foi exposto na galeria do Sesc 24 de Maio, na exposição “São Paulo não é uma cidade –

Invenções do Centro”, de 22/8/2017 a 28/1/2018. O mesmo trabalho estampa camisetas e cartazes vendidos, entre outros lugares, na loja El Cabritón, localizada na rua Augusta, 2008 <<disponível em: https://www.elcabriton.com/masculino/camiseta/bueno-caos>>

obra sofrendo alterações: sendo rasgada, rasurada, recoberta por intervenções do próprio autor e de anônimos. Também vimos diversas manifestações de reconhecimento, afeto e até zelo pelo trabalho: a constante parada de passantes para tirar fotografias, e a remoção de cartazes colados sobre a obra, quando recoberta por outros cartazes.

Figura 5 A sequência de imagens acima mostra as transformações frequentes na superfície do pilar no ano de 2016. Autora, 2016.

Figura 6 A sequência de fotografias acima mostra a manutenção da obra de Luis Bueno no mesmo pilar, em 2017. Também se observa o aumento da população de moradores de rua e vendedores informais no local. Autora, 2017.

A observação das sequências fotográficas realizadas nos 7 muros em 2016 e 2017 nos permitiu comparar a trajetória de obras como o “Pelé Beijoqueiro” ao longo dos dois anos. Percebemos que em 2016 a maioria das superfícies fotografadas passou por muito mais transformações do que no ano seguinte, momento em que a prefeitura instaurou o programa “Cidade Linda”, removendo de parte das vias da cidade obras consagradas. Apesar de não termos identificado nenhuma ação desse programa removendo trabalhos instalados na rua Augusta, percebemos o forte impacto que ele teve na prática artística, notada pela redução do número de intervenções aplicadas à via, o que, por um lado, empobreceu e dificultou a atividade dos artistas, mas, por outro, prolongou a vida de obras ali já instaladas, como os lambe-lambes de Bueno.

O que se viu nas demais paredes fotografadas foi uma grande variedade de intervenções artísticas. Frequentemente provocativo, o conteúdo dessas obras não se vale só das palavras como elementos de significado. Exploram formas, tipologias, cores, sonoridades, estranhamentos, significados ambíguos. Fazem dos muros canais de comunicação compartilhada, espaços de opinião, de investigação e de diálogo, exibidos a centenas de pessoas que passam por ali todos ou dias.

Os muros da rua Augusta estão repletos de significados aos que a eles voltam os olhos. Sua (boa) leitura vai muito além da mera decodificação dos caracteres e imagens. É preciso perceber o contexto, o que implica olhar além dos assuntos dos quais as intervenções falam individualmente, é necessário reconhecer também o entorno e a sociedade com o qual elas dialogam.

Figura 5 Montagem com fotografias de trabalhos de anônimos encontrados na rua Augusta, cartazes do coletivo “Frida Feminista” e de divulgação da 21ª Parada LGBT de São Paulo. Autora, 2017.

É importante observar que a metamorfose vista nas superfícies da rua Augusta também refletiu as intensas transformações no plano político vivenciadas no país durante o período fotografado, sendo impossível ignorar o teor político de muitos dos cartazes e inscrições.

Figura 7 Cartazes que expressam o (turbulento) cenário político brasileiro com mensagens convocatórias para manifestações políticas, de impeachment e novas eleições gerais (01/04/2016). Autora, 2016.

Figura 8 Cartazes convocatórios para greve geral (25/04/2017) Autora, 2017.

impeachment da presidente Dilma Roussef e sua substituição pelo impopular vice-presidente Michel Temer, que implementou reformas trabalhistas e previdenciárias17; chegou ao fim o mandato na prefeitura de São Paulo de

Fernando Haddad, que apoiava a arte de rua, e foi eleito o prefeito João Doria, que implementou o programa “Cidade Linda”, já citado anteriormente. Sendo assim, a pesquisa também apresentou interesse enquanto registro histórico de um momento bastante turbulento da história brasileira.

Figura 9 A sequência acima mostra a rica sobreposição em camadas das intervenções, passando de um conteúdo diverso para cartazes convocando eleições gerais, onde lê-se a mensagem “Fora todos eles! Eleições gerais já!”. Autora, 2016

Figura 10 A sequência acima mostra, no mesmo local das fotos anteriores, um ano depois, a sobreposição de pichações e grafites por cartazes convocatórios para greve geral (25/04/2017). Também vê-se o cobrimento dos cartazes políticos por irônica obra com a imagem da

efígie da República encontrada nas cédulas da moeda brasileira.Autora, 2017.

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