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Escola de Comunicação e Artes, da Universidade de São Paulo (professora colaboradora) Universidade de Guarulhos (professora titular)

No documento DiverCity: diversity in the city (páginas 106-108)

Resumo

Esta comunicação tem o propósito de levantar alguns elementos para discussão acerca de como a São Paulo do início do século XIX delimitou os territórios de circulação, trabalho e lazer da população negra que vivia na cidade. Atuando como vendedores ambulantes, de alimentos, lenha e capim ou trabalhando como carregadores de gente e de objetos, negros escravizados, libertos e livres compunham um quadro urbano marcado por uma delimitação espacial que estabelecia quais eram os locais onde era permitido seu fazer social. Neste sentido, é também objetivo desta comunicação discutir os processos pelos quais os marcos territoriais que assinalam a presença negra na cidade de São Paulo foram progressivamente “apagados”, em função da construção de uma versão de urbe “civilizada”, moderna e pujante, erguida a partir da imigração europeia.

Palavras-chave

São Paulo, escravidão, resistência negra.

Abstract

This text has as its purpose to bring some elements up for discussion about how the São Paulo from the beginning of the 19th century delimited the territories of circulation, work and recreation of the black population which lived in the city. Working as hawkers of foods, firewood and grass or working as carriers of people and objects, black individuals enslaved, frees and freed made up an urban framework marked by its territorial delimitation that established which were the places where it was allowed to live daily. In this sense, it is also the purpose of this text to discuss the processes through which the territorial marks that pointed out the black presence in São Paulo’s city were wiped out, in order to construct a version of a civilized society, modern and strong, erected from the European immigration.

Key-words

Introdução

No dia seguinte percorri toda a cidade e o que me impressionou imediatamente foi não encontrar vadios de todas as cores, como até então tinha visto nas ruas e praças das cidades do Norte. (...) A classe baixa predominante compõe-se de italianos e portugueses e entre os operários há muitos alemães. (Lamberg, 1896, pp 321)

Em julho de 1887, o fotógrafo alemão Moritz Lamberg desembarcou na cidade portuária de Santos, vindo do Rio de Janeiro. Cerca de vinte dias mais tarde uma locomotiva à vapor pertencente à São Paulo Railway Company levou Lamberg até São Paulo, ponto a partir do qual o fotógrafo planejava iniciar suas explorações pelo Estado. Como um entusiasta da imigração europeia para o Brasil, o viajante percorreu as ruas da cidade observando e registrando aspectos capazes de conferir sustentação à uma argumentação favorável à substituição da mão-de-obra escrava pela de imigrantes europeus (Lamberg, 1896, pp 319-321)

Em seu relato, o “progresso” paulistano das últimas décadas do século XIX aparece justaposto à constatação de que os “europeus que têm emigrado para São Paulo, mais do que para qualquer outra parte, parecem ter influído também bastante e de modo favorável” no processo de “modernização” da cidade. Aos constatar que a estrada de ferro capaz de vencer as escarpas da Serra do Mar fora “bem construída” por “engenheiros ingleses” e que estes, além de erguê-la, ainda administravam e exploravam suas operações, Lamberg sublinhava a contribuição europeia para a “cultura e civilização” paulistana. Para o fotógrafo alemão, a rara presença de “vadios de todas as cores” às ruas seria um indício desse “progresso” (Lamberg, 1896, p 321). Mas afinal, quem seriam os “vadios” que circulavam pelas “ruas e praças das cidades do Norte”, cuja ausência em São Paulo havia frustrado as expectativas do viajante?

A resposta a esta questão pode ser intuída a partir da leitura de outros capítulos de seus escritos. Para compor sua obra, O Brazil, Moritz Lamberg empreendeu viagens por cidades do Norte, Nordeste, Sul e Sudeste do país. Em seus registros é possível notar o olhar minucioso de um viajante preocupado em recolher ao longo de seu percurso observações que lhe garantiriam a sustentação de um discurso fundado na ideia de que a “civilização” e “modernidade” do país se concretizariam com a imigração europeia. Tal como outros viajantes estrangeiros que percorreram o Brasil ao longo do século XIX, Lamberg era um europeu que escrevia para leitores da Europa. E ao ocupar esse locus de enunciação, ele nos permite vislumbrar como seu relato “produziu o resto do mundo”, fazendo aqui uso da expressão cunhada por Mary Louise Pratt, para um público europeu que consumia esse tipo de literatura (Pratt, 1999, p 28). Assinalando a preexistência de portugueses, italianos e alemães, o fotógrafo lançou mão de um recurso narrativo que apagava uma presença muito anterior à dos imigrantes: a de negros, escravizados, livres e libertos que, no ano de 1887, eram uma população bastante numerosa na cidade de São Paulo.

Segundo Pratt, as narrativas produzidas por viajantes como Lamberg revelam “estratégias de representação por meio das quais os agentes burgueses europeus procuram assegurar sua inocência ao mesmo tempo em que asseguram a hegemonia europeia” sobre as colônias por onde passam (Pratt, 1999, p 32). No caso específico dos escritos deixados pelo fotógrafo, discurso e realidade se cruzam numa espécie de sincronia reveladora de uma São Paulo que se esforçou por excluir a parcela negra de sua população, a fim de se equiparar ao paradigma de “modernidade” da virada do século XIX para o XX.

Esse era o momento da grande explosão demográfica decorrente da chegada de imigrantes europeus que, em 1887, às vésperas da abolição da escravidão, alcançaram a cifra dos 70 mil (Love, 1982, pp 25-30). Tamanha transformação populacional explica a concentração de pesquisas contemporâneas que se preocupam em compreender esse período da história da cidade. Na contramão deste conjunto de estudos já bastante amplo e consolidado, a presente comunicação propõe refletir acerca de um período anterior à instalação de imigrantes em São Paulo: o início do século XIX, quando sua porção urbanizada se concentrava na colina do Piratininga e muitas ruas, pontes, chafarizes e casebres eram ocupados e/ou frequentados por negros.

Seguindo as pistas deixadas por pesquisadores que se dedicaram à compreensão das dinâmicas sociais, econômicas e do cotidiano que envolveram a população negra que vivia na cidade na primeira metade do século XIX, fiz uso de um corpus documental formado por dois conjuntos de fontes. O primeiro é constituído por relatos escritos por viajantes europeus que estiveram na cidade durante esse período. E o segundo grupo de documentos é composto por registros oficiais produzidos pela Câmara Municipal de São Paulo. Resta ainda mencionar que esse artigo é fruto de uma pesquisa desenvolvida para o curso de extensão universitária oferecido nos anos de 2013 e 2014, pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), da Universidade de São Paulo (USP), sob supervisão da profa. Dra. Juliana Pedreschi Rodrigues, docente do curso de bacharelado em Lazer e Turismo.

No documento DiverCity: diversity in the city (páginas 106-108)