• Nenhum resultado encontrado

Revitalização versus identidade

No documento DiverCity: diversity in the city (páginas 54-56)

De acordo com o quadro exposto anteriormente, a rua Augusta se tornou território apropriado por grupos sociais diversos, conformando uma identidade urbana bastante característica, marcada por intensa vitalidade. O amplo interesse que a via desperta na mídia e nas artes em geral confirma seu dinamismo, ainda que mobilizado por um público underground e estigmatizado, como vimos anteriormente. A diversidade assim, parece ser desejada pelo poder público e pela iniciativa privada, mas apenas uma “diversidade controlada”, que atraia um público específico consumidor e gerador de lucro, incompatível com algumas das práticas e usos tradicionais do local.

Nesse sentido, ao mesmo tempo em que a rua Augusta se consolidava como território de diversidade, lazer e arte de rua, assistimos ao aparecimento de ações e legislação repressivas, no âmbito municipal, que deram ênfase à normatização dos usos e espaços da cidade. Destacamos a instauração da Lei Cidade Limpa18 (SÃO PAULO,

2006), e aproximadamente 10 anos depois, o Programa Cidade Linda (SÃO PAULO, 2017), conduzidos pelas gestões dos partidos políticos DEM e PSDB, respectivamente.

18 A Lei nº 14.223, instituída em 26 de dezembro de 2006, pelo então prefeito Gilberto Kassab (DEM), dispõe sobre a ordenação dos elementos

que compõem a paisagem urbana. Regula, portanto, desde a instalação de anúncios publicitários, até a arte urbana, chamada de arte pública, na cartilha Manual Ilustrado de Aplicação da Lei Cidade Limpa e normas complementares (São Paulo, 2016). É importante frisar que o referido manual, determina que a arte pública “não poderá fazer referência a marcas ou produtos comerciais, nem conter referências ou mensagens de cunho pornográfico, racista, preconceituoso, ilegal ou ofensivo a grupos religiosos, étnicos ou culturais.

Em um contexto geral, essas formas de atuação das gestões municipais se revelaram semelhantes no que tange à arte urbana: ambas incorporaram, além da fiscalização extensiva, efetivas ações de remoção de intervenções, bem como de anúncios publicitários, sob pretexto da “revitalização”19 dos espaços urbanos e proteção da paisagem. Em

consonância com esse discurso, percebemos que, durante os anos 2000, a implementação da Lei Cidade Limpa na rua Augusta mobilizou apenas ações restritivas de fiscalização e remoção de publicidade dos muros e fachadas, onde podia-se observar diferentes letreiros das conhecidas casas noturnas da zona do “Baixo Augusta”. Não assistimos ao apagamento de graffitis e pichações, nem à remoção de cartazes das superfícies da via nessas ações municipais. Essa ausência de ação das autoridades, já sinaliza uma assimilação da imagem ou estética da via, constituída em grande parte por arte urbana.

Anos mais tarde, de maneira contundente, as artes aqui analisadas passaram por um processo de valorização, que afetou, de forma análoga, toda a região. Assistimos a um movimento de extrema valorização do solo urbano pelo mercado imobiliário, interessado em valer-se da imagem e localização privilegiadas da região da rua Augusta no contexto paulistano. Dessa forma, a partir da gradual incorporação da região pelo mercado, a fração estudada voltou a constituir-se enquanto centralidade de consumo, contando com uma ampla e diversa oferta de atividades culturais e serviços, vinculados, inclusive, às práticas artísticas objeto deste estudo.

A partir dos anos 2000, assistiu-se a incorporação das artes urbanas pelos estabelecimentos comerciais da região, com a aplicação comissionada de graffitis às fachadas dos novos clubes noturnos20, teatros, bares e restaurantes,

conformando uma ambiência urbana singular. Rapidamente os desenhos dos graffitis e mensagens dos lambe- lambes começaram a aparecer também estampando produtos vendidos na via: camisetas, canecas, posters, imãs de geladeira, etc. Cooptada pelo mercado, a estética da arte urbana converte-se em identidade visual, comercialmente explorada, logomarca turística da região da rua Augusta. Nesses sentido, os graffitis, pichos,

stencils e lambes, muitas vezes contestatórios, que contribuem na conformação de uma identidade urbana com

códigos estéticos e comportamentais específicos, passam a ser dialeticamente incorporados pelo mercado.

Em paralelo assistimos, na primeira década dos anos 2000, a uma grande valorização fundiária da região.

Conforme registrado pelo índice Fipe Zap21, o preço do metro quadrado na rua Augusta atinge um aumento de

aproximadamente 170% em cinco anos, entre 2008 e 2013. Assiste-se ao crescimento do número de construções de caráter residencial voltadas a um público predominantemente jovem, de segmentos sociais médios e altos, atraídos pela ambiência conformada pelas práticas desenvolvidas na região, vinculadas ao lazer, cultura e diversidade.

19 O termo “revitalização” disfarça o caráter moralizador, higienista e repressivo das ações públicas que vieram a caracterizar os anos 2000.

Segundo Moura et al “revitalização assenta na implementação de um processo de planeamento estratégico, capaz de reconhecer, manter e introduzir valores de forma cumulativa e sinergética. Isto é, intervém a médio e longo prazo, de forma relacional, assumindo e promovendo os vínculos entre territórios, actividades e pessoas (...)obriga a intervir na melhoria da qualidade do ambiente urbano, das condições socioeconómicas ou no quadro de vida de um determinado território (‘território de revitalização urbana’), baseando-se numa visão global, actuando de forma integrada e concertando um grande número de domínios e dimensões de intervenção” (Moura et al, 2006, p.21).

20 Conforme exposto em reportagem da revista Veja S.Paulo, em 2008 o clube noturno Vegas comissionou a pintura de painéis nas fachadas

de diversos estabelecimentos comerciais da via, dando um visual de destaque à zona do Baixo Augusta. Disponível em: < https://vejasp.abril.com.br/cidades/grafite-saida-para-evitar-pichadores/>.

21 Conforme exposto em reportagem da revista Exame de 30 de Dezembro de 2013. Disponível em: < https://exame.abril.com.br/seu-

É importante ressaltar que a chegada de novos frequentadores, juntamente com novos empreendimentos, acaba interferindo nas práticas pré-existentes na via, e acarreta em sua transformação pela substituição do perfil econômico de seus habitantes e usuários, constituindo-se enquanto parte importante de um processo denominado por “gentrificação”. Ao se ver forçado a fechar as portas de seu empreendimento – o clube noturno “Vegas”, o empresário Facundo Guerra se diz justamente vítima do processo de valorização imobiliária da região:

(...) A rua Augusta, antes desolada, hoje representa a cara de nossa cidade. E ironicamente foi o sucesso do clube e, por consequência, da rua Augusta, que acabou por vitimar o Vegas: o galpão onde o mesmo se encontra recebeu uma proposta de compra milionária para ali ser montado um empreendimento imobiliário. Como inquilinos nunca poderíamos cobrir a oferta que o imóvel recebeu e batalhamos até o último segundo, mas nesta segunda-feira resolvemos jogar a toalha. O Vegas tombou não por conta da falência do projeto, mas em virtude do preço do metro quadrado na região, hoje uma das mais valorizadas de São Paulo.22 (G1, 17/04/2012 apud Pissardo,

2013, p.161)

Nesse sentido, entendemos que o conjunto que compõe os usos, consumos e as práticas presentes na rua Augusta, incluindo a arte urbana, passou a ser valorizado e agenciado pelo capital imobiliário que viu na ambiência conformada na região, junto aos símbolos e lifestyle a ela vinculados, um grande potencial para a sua (re)produção.

No documento DiverCity: diversity in the city (páginas 54-56)