• Nenhum resultado encontrado

3. DO LÚDICO AO MAKER: DAS REFERÊNCIAS AOS REFERENCIAIS DESTE

3.4 Brincar é coisa séria: quando Gadamer e Luckesi se entregam ao jogo

No âmbito das abordagens de enfoque objetivo e subjetivo da ludicidade apensadas por Massa (2015) é possível encontrar um ponto que une o pensamento de autores que tem seus fundamentos em polos opostos, como é o caso de Gadamer (2007) e de Cipriano Luckesi (2005). Esse ponto em comum diz respeito à característica de entrega exigida pelo jogo, sendo ele lúdico ou não, e pela atividade ou manifestação lúdica, seja ela regida por regras prévias ou não.

Para Gadamer (2007), o jogo é mais que um faz-de-conta, haja vista que encerra uma dimensão específica, objetiva, com regras próprias e tempo delimitado, espaço definido e resultado imprevisível, e acontece na mais absoluta seriedade – mesmo sendo um jogo.

Gadamer ( 2007 apud LAWN, 2010, p. 123) realça que “o jogo pode, muitas vezes, começar como uma simples diversão e, repentinamente, se transformar num caso muito sério.”. Ela ainda ressalta no jogo o movimento constante, que não tem ponto de partida e nem de chegada, sendo que este movimento é o que legitima o jogar e não quem ou o que joga (na educação, professores ou alunos)

O movimento de vaivém é obviamente tão central para a determinação da essência do jogo que chega a ser indiferente quem ou o que executa esse movimento. O movimento do jogo como tal também é desprovido de substrato. É o jogo que é jogado ou que se desenrola como jogo; não há um sujeito fixo que esteja jogando ali. O jogo é a realização do movimento como tal. (GADAMER, 2007, p. 156-157).

Para Gadamer (2007) o jogo, como elemento na educação, se conceitua como interpretativo, autocrítico, auto compreensivo e subjetivo. É no espaço do jogo e de abertura dialógica proporcionada pela entrega dos partícipes (professores, alunos e quem mais) que se dá a imersão nos conteúdos da aprendizagem, e o aluno pode realizar sua própria experiência: a experiência educativa.

Essa experiência, segundo Gadamer (2007), é o que possibilita o ato de compreender, que não pode ser considerado apenas uma das faculdades do ser humano, mas sim a condição prévia para a existência do próprio homem enquanto ser inteligente, ou seja, para a consciência de que ele próprio e também o mundo existem.

O aprendizado, então, se realizaria através desse jogo dialógico, e o diálogo propiciaria uma transformação que acontece quando, do entregar-se ao jogo, o reconhecimento da alteridade, do outro, propicia o conhecimento da verdade. Apesar de na educação de uma maneira geral, o conceito de jogo esteja ligado a atividades físicas, e tido como atividade restrita ao universo infanto-juvenil, é ainda Gadamer (2007) que ressalta a seriedade como um dos atributos principais do jogo - estando ele dentro de uma concepção lúdica ou não.

Nesse aspecto, pode-se mesmo aproximar a noção gadameriana de jogo ao pensamento de Claparède (1973) para quem o brincar (jogar) não é uma simples diversão, mas uma atividade que a criança leva muito a sério e à qual pode entregar-se inteiramente.

O jogo é a forma de atividade normal da criança (...) e que, na escola, será exercido com mais seriedade e mais fervor. Pois o trabalho exigido dela na escola só amoldará nela uma pessoa, se a ele se dedicar inteiramente, de todo coração. (CLAPARÈDE, 1973, p. 129).

Esse “se dedicar por inteiro, de todo coração” perfila-se com a ideia gadameriana de seriedade segundo a qual o jogo está impregnado, uma vez que quem joga sabe que o jogo não é mais que jogo e este só cumpre o objetivo que lhe é próprio quando o jogador se entrega inteiramente (GADAMER, 2007, p. 257).

Luckesi (2005, p. 1) também realça esse “entregar-se por inteiro”, porém, não discutindo, especificamente, a noção de jogo, mas, sim, o processo de conceituação do

“fenômeno da ludicidade”. Para este autor “brincar, jogar, agir ludicamente, exige uma entrega total do ser humano, corpo e mente, ao mesmo tempo” (2000, p. 21).

Luckesi (2005) se mostra particularmente interessado naquilo que, em sua opinião, falta às discussões a respeito do assunto: que a ludicidade é um estado interno do sujeito e tem como característica básica de sua manifestação um estado de plenitude e de entrega total. As atividades ou manifestações lúdicas, tendo regras pré-estabelecidas ou não, sendo jogo ou brincadeira, seriam aquelas que propiciariam uma experiência de plenitude, em que o sujeito, estando flexível e saudável, se envolve por inteiro, “de todo coração”52

. Nas suas palavras:

Tomando por base os escritos, as falas e os debates, que tem se desenvolvido em torno do que é lúdico, tenho tido a tendência em definir a atividade lúdica como aquela que propicia a ‘plenitude da experiência’. Comumente se pensa que uma atividade lúdica é uma atividade divertida. Poderá sê-la ou não. O que mais caracteriza a ludicidade é a experiência de plenitude que ela possibilita a quem a vivencia em seus atos. (LUCKESI, 1998, p. 24).

Assim, a partir dessa conceituação de Luckesi, é possível compreender que ludicidade não é sinônimo restritivo de brincadeira, por exemplo. Além disso, também é possível, no rastro do autor, compreender que a brincadeira será lúdica quando levar quem brinca à vivência plena e à entrega total no momento de sua realização, prefigurando que nem toda brincadeira configura-se como lúdica e nem toda atividade ou manifestação lúdica constitui-se em brincadeira.

Uma atividade descrita amiúde como lúdica, como, por exemplo, jogar futebol, pode ou não oferecer à pessoa um “estado de plenitude da experiência”, um “entregar-se totalmente”. Jogar bola poderá dar alegria e prazer aquele indivíduo que o pratique por inteiro, mas para este outro, que não saiba jogar, não conheça as regras, ou que tenha tido uma experiência dolorosa com esse jogo que não lhe permita vivenciá-lo com alegria e integridade, o jogo poderá lhe trazer desprazer. Nas palavras de Luckesi (2002 apud MASSA, 2015, p.121) isso se dá porque a ludicidade se caracteriza como um estado de consciência que ultrapassa as experiências externas observáveis, isto é, ela é um estado de ânimo, resultante das atividades praticadas com plenitude, leveza e prazer.

Nessa perspectiva, para que uma atividade seja considerada lúdica, torna-se necessário que alcance o centro de interesse e/ou a necessidade do sujeito, aflorando-lhe a vontade de participar dela. Além disso, deve conter uma série de elementos que o mantenha

integralmente na experiência durante seu acontecer. Entre esses elementos podem ser citados a adrenalina, a curiosidade, a diversão, a competição, o faz de contas.

Entretanto, para pensar a ludicidade na sala de aula, é fundamental refletir antes o jogo como abertura da experiência educativa dialógica do conhecer do que acontece no diálogo que se estabelece para a compreensão mútua de alunos e professores (GADAMER, 2007).

Nesse sentido, e procurando realizar um forçoso crossover53 dessa ideia com o pensamento de Rogers (1978), para quem “as pessoas teriam que reunir-se se quisessem aprender” (p. 256), é possível destacar que o pensamento de Gadamer (2007) sobre o jogo, no âmbito educacional, encaixa-se mesmo na chamada Pedagogia da Atividade, cujo centro do processo ensino-aprendizagem deixou de ser o professor e passou a ser o estudante. A esse respeito Rogers (1978) confessou que “uma das melhores maneiras, mas das mais difíceis, [para ele], de aprender, é abandonar [suas] defesas, pelo menos temporariamente, e tentar compreender como é que a outra pessoa encara e sente sua própria experiência.” (ROGERS, 1978, p. 253).

A perspectiva, segundo Gadamer (2007), é de que através desses jogos dialógicos, o próprio sujeito se educa com o outro. E nesse caso, o sujeito não é apenas o aluno, mas também o professor, já que o jogo em que o jogador se entrega ao jogar propicia uma verdadeira passagem à outra coisa e que aquilo que era antes já não é mais, ou seja, se transforma. Essa transformação acontece quando, da entrega ao jogo, a alteridade reconhecida propicia o conhecimento da verdade.

Se para Gadamer (2007), o jogo é mais que um faz-de-conta, para Luckesi (2005), as atividades lúdicas não são mero passatempo. São de suma importância para o ser humano, devido a suas características exponenciais de provocar a sensação de liberdade, promover um estado de plenitude e de entrega total do indivíduo à tarefa que realiza (ou desfruta). Seus benefícios incorporam a assimilação de novos conhecimentos, o intercâmbio de ideias, o desenvolvimento de habilidade e competências, além de hipotecar equilíbrio entre o real e o

53 Evento em que dois ou mais personagens, cenários ou acontecimentos sem qualquer relação anterior em produtos de mídia ou literatura (filmes, quadrinhos, seriados, jogos eletrônicos) passam a interagir num mesmo produto. O crossover é uma técnica que mistura personagens de núcleos ou universos diferentes interagindo entre si. Revistas em quadrinhos e desenhos animados fazem esta união quase que constantemente e são constantes também os encontros entre personagens da DC Comics (à qual pertencem famosos personagens como Superman, Batman, Mulher-Maravilha , Aquaman e Flash) e Marvel Comics (à qual pertencem personagens famosos como Homem-Aranha, Hulk, Homem de Ferro, Quarteto Fantástico, X-Men). No Brasil, pode-se citar o livro, que se tornou filme, O Xangô de Baker Street, do humorista e escritor JÔ Soares, em que a técnica de crossover foi utilizada para trazer para o Brasil os personagens do escritor inglês Artur Conan Doyle, Sherlock Holmes e Dr. Watson, para tentarem desmascarar um serial killer, que, ao fugir para a Inglaterra, tornar-se-ia o assassino Jack, o Estripador (https://bit.ly/2BT15Ud)

imaginário. Para ele, essa atividade pode ser divertida ou não, a depender da plenitude da vivência, o que torna a ludicidade diferente, por exemplo, da brincadeira.

Pela ótica de Luckesi (2002), uma atividade (brincar, jogar) pode ou não ser lúdica, e para sê-la, deve atingir o centro de interesse ou/e a necessidade do indivíduo, deve despertar a vontade de participação, deve conter constitutivos que façam o indivíduo mergulhar “de cabeça” na experiência durante sua realização. Essa plenitude de experiência leva o sujeito a embarcar num estado lúdico. “O autor denomina de lúdico o estado interno do sujeito e de ludicidade a característica de quem está em estado lúdico” (MASSA, 2015, p. 121).

No contexto acadêmico-escolar é importante sublinhar a formação lúdica do professor que deve ser um “jogador” – no sentido gadameriano - competente, facilitador e estimulador de vivências lúdicas – no sentido luckesiano - em todo o processo de educação.